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Sharenting: especialistas avaliam os riscos da exposição infantil nas redes sociais
Ainda no útero, mas com milhões de seguidores nas redes sociais. Esta é a realidade de muitos filhos de artistas, personalidades da mídia e influenciadores digitais, que já nascem e dão os primeiros passos diante de olhares atentos, e muitas vezes críticos, de internautas de todo o país.
O fenômeno, cada vez mais comum na atualidade, tem nome em inglês e repercussões graves para os direitos daqueles que estão entre os mais vulneráveis na nossa sociedade: sharenting. A expressão, que consiste na junção das palavras share (compartilhar) e parenting (parentalidade), define o hábito de compartilhar, na internet, vídeos e fotos do dia a dia dos filhos.
A influência digital, porém, tem consequências ainda incertas para o desenvolvimento das crianças. É o que explica a advogada Isabella Paranaguá, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, seção Piauí – IBDFAM-PI.
Ela defende que a exposição excessiva de informações pessoais e imagens das crianças causa impactos na privacidade infantil e na segurança on-line. “Por essa ser a geração mais observada em toda a história , as consequências são diversas e por se tratar de crianças e adolescentes, os responsáveis devem avaliar com cuidado antes de decidirem expor seus filhos na internet.”
“Com a excessiva divulgação de detalhes da vida pessoal, o cotidiano fica exposto, ficando fácil de identificar os locais frequentados pela criança ou adolescente. Por isso que pode haver exploração indevida de fotos e informações por terceiros com finalidades criminosas dentro e fora da internet” , afirma a especialista.
A advogada complementa: “Muitos pais não imaginam que os filhos podem se sentir preocupados e terem problemas de imagem e aprovação, alguns podem, no futuro, se sentir constrangidos por não quererem tantos detalhes íntimos de suas vidas compartilhados publicamente sem seu consentimento”.
Nesse cenário, Isabella sugere que os pais respeitem os limites e desejos dos filhos na hora de compartilhar algo, com consciência da sua autoridade parental. Outras sugestões incluem “entender mais sobre configurações de privacidade e limites de postagem de compartilhamento de informações sensíveis, e avaliar a necessidade de limite de acesso a apenas amigos e familiares próximos”.
Segundo a especialista, os pais também devem fornecer o apoio de profissionais da saúde, caso as críticas na internet afetem diretamente o psicológico do infante. “Os pais devem considerar cuidadosamente o que compartilham on-line, equilibrando a vontade de compartilhar momentos felizes com a proteção da privacidade e segurança de seus filhos”, observa.
Atualidade
Isabella Paranaguá destaca que o tema é novo no Brasil e não há um artigo no ordenamento jurídico específico. Ressalta, porém, que o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA pode oferecer algumas respostas.
“Segundo pesquisa realizada em 2022 pela TIC Kids On-line Brasil, do Comitê Gestor da Internet no Brasil, 93% das crianças e dos adolescentes de 9 a 17 anos de idade, estão conectados no país, o que significa que a internet tem 22,3 milhões de usuários mirins em solo brasileiro”, lembra a especialista.
Na visão da advogada, “os pais têm liberdade para o compartilhar sobre os filhos na internet, devido ao livre planejamento familiar ser constitucional, mas os limites estão nas suas obrigações morais”.
“O sharenting, no Brasil, pode levar alguns casos à responsabilidade parental, uma vez que a criança e o adolescente são sujeitos de direitos, mas cada caso será analisado especificamente. Os pais devem ter em mente que todo excesso pode afetar o direito à privacidade, intimidade, vida privada, honra e imagem dos menores”, avalia.
Por outro lado, Isabella reconhece que também há benefícios no sharenting. O fenômeno, segundo ela, “pode gerar conexões familiares on-line excelentes”.
“Hoje, no Judiciário, já existem planos de coparentalidade com cláusula expressa de guarda compartilhada virtual, convivência virtual. O sharenting também pode criar espaços de compartilhamento de experiências entre pais e filhos de diversos lugares, promovendo uma boa comunidade de apoio”, aponta.
Ainda conforme a especialista, por meio da internet também é possível preservar memórias afetivas importantes ou mesmo gerar renda para a família. “O mais importante é os pais buscarem equilíbrio com essas decisões”, conclui.
Subjetividades
Na visão da psicanalista Claudia Pretti, vice-diretora de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, os efeitos das transformações da era digital nas subjetividades são profundos. Ela cita, como exemplo, a “prevalência da imagem em detrimento da palavra e do diálogo e a procura por práticas instantâneas de bem-estar, que se propõem a abolir o trabalho necessário para construir respostas aos enigmas da vida”.
Claudia Pretti explica que as redes sociais, a web e a inteligência artificial mudaram a forma como os laços são constituídos. Contudo, garante: “O novo contexto não extinguiu a necessidade de que uma geração se ocupe da constituição psíquica da geração seguinte”.
A psicanalista defende que os filhos precisam ser acolhidos e enlaçados pela via do cuidado e do afeto para caminhar com segurança em direção à vida adulta. “Repensar os conceitos de liberdade e de laço social é imprescindível.”
“O mundo não é sem limites, apesar de assim apresentar-se em alguns momentos na vida virtual. Felizmente, a reflexão, o questionamento e o uso da palavra, características humanas fundamentais, insistem e ajudam a construir cada vez mais respostas e saídas”, pondera.
Consequências
As bordas entre o público e o privado estão pouco delimitadas na atualidade, opina a diretora nacional do IBDFAM. “Assistimos pais que tornam pública a vida privada de seus filhos desde o momento do parto, na suposição de que a imagem divulgada dará um lugar de valorização positiva”.
Para Claudia Pretti, a exposição atende a uma necessidade dos próprios pais, e não dos filhos. “Sentir-se aprovado e reconhecido pelo outro, a partir da exposição de uma imagem idealizada, dá a ilusão de que as angústias e dificuldades podem ser abolidas.”
“Nas redes sociais, todos são felizes, bem-sucedidos, e os relacionamentos familiares se aproximam da perfeição. Os narcisismos inflados acabam fazendo com que limites sejam ultrapassados”, avalia.
Segundo a psicanalista, a exposição precoce é responsável por efeitos subjetivos diversos, conforme o contexto de cada um. “A restrição ou apagamento da privacidade e a excessiva exposição afetam a imagem que a criança precisa construir de si, podendo levar a quadros de ansiedade excessiva, transtornos alimentares, insegurança e distorção da imagem, e ainda depressão, entre tantos outros.”
Ela destaca que o compartilhamento da imagem pode provocar admiração instantânea, mas, ao mesmo tempo, invocar “um ódio pelo sentimento de impotência diante da impossibilidade de alcançar para si aquele mundo sem os limites impostos pela vida real”.
No entendimento da especialista, as críticas e a desqualificação maciça emergem como recurso do público para lidar com suas próprias limitações. “Assim, os filhos, que deveriam ser protegidos pelos adultos, são lançados no desamparo, em um momento no qual ainda não têm os recursos subjetivos para lidar com as consequências advindas.”
Ela complementa: “Sem contar com a devastação provocada quando estão submetidas a um mau uso dessas imagens, que pode desencadear quadros ainda mais graves como, por exemplo, pensamentos ou mesmo atos suicidas”.
Humanização
De acordo com a diretora nacional do IBDFAM, as redes sociais dão a falsa sensação de que não existem limites. “Os avanços tecnológicos facilitaram a vida de todos, mas não podemos cair no engodo de que eles podem substituir alguns pontos estruturais e que garantem nossa humanidade.
Viver, segundo a especialista, é uma tarefa complexa e implica em renúncias e uma boa dose de mal-estar, impossíveis de serem abolidos. “Os relacionamentos humanos são complexos. Criar e educar filhos é tarefa árdua e requer presença e disponibilidade.”
“As telas e as redes sociais não podem funcionar como garantidores de algumas transmissões fundamentais na relação parental. A transmissão da dimensão desejante, que sustenta e possibilita a humanização de cada um, se dá no caminho da convivência e da troca de afeto. Assim, uma criança elabora respostas e constrói posicionamentos diante dos desafios da vida”, aponta.
Claudia Pretti conclui que os pais não podem se demitir dessa tarefa ou substituí-la por uma imagem idealizada construída nas redes. “Esse é um desafio e uma boa forma de proteger os filhos, como sujeitos de direito e de desejo”, finaliza.
Por Débora Anunciação
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