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Dia da Infância: a fragilidade da proteção a crianças e adolescentes
Os desdobramentos de um caso de violência infantil que, há cerca de quinze anos, chocou o país, repercutiram nas últimas semanas e inflamaram o debate sobre a proteção dos mais vulneráveis no mês em que se comemora o Dia da Infância (24 de agosto). Na medida em que o documentário recentemente lançado pela Netflix resgata a investigação e repercussão do crime contra a menina Isabella de Oliveira Nardoni, em 2008, paralelos podem ser traçados com o cenário atual, em que casos similares ainda ocorrem com frequência.
O Brasil registra 673 casos de violência, por dia, contra crianças de até 6 anos ou 28 a cada hora, e 84% dessas agressões têm pais, padrastos, madrastas ou avós como suspeitos. Os dados são da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, divulgados na pesquisa “Prevenção da Violência contra a Criança”, produzida pelo comitê científico do Núcleo Ciência pela Infância – NCPI.
No primeiro semestre de 2022, as mães foram as principais responsáveis pelas violações (57%), seguida pelos pais (18%), padrastos/madrastas (5%) e avós/avôs (4%). Os principais tipos de violência registrados no primeiro semestre de 2022 foram maus-tratos (15.127 casos), insubsistência afetiva (13.980 casos), exposição ao risco de saúde (12.636 casos), tortura psíquica (11.351 casos) e constrangimento (10.292 casos).
A assessora jurídica Bruna Barbieri Waquim, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, considera que a maior parte das violências tem cunho emocional, psicológico, afetivo. Segundo a especialista, “o brasileiro ainda tem muito a ideia de violência ligada à agressão física e sexual, e pouco conhecimento ou tato quanto às diferentes formas de violência psicológica”.
Ela explica: “É um expediente recorrente nas famílias ‘gritar’ com as crianças, mas estudos científicos já demonstraram que gritar pode causar efeito semelhante à violência física, causando impactos no cérebro humano e no desenvolvimento neurológico”.
Panorama da violência
Conforme dados do Relatório “Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil”, fruto de uma parceria entre o Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foram mortos de forma violenta no Brasil, uma média de 7 mil por ano.
O levantamento constatou que meninos negros são as principais vítimas: foram pelo menos 1.070 mortes violentas de crianças de até 9 anos de idade. No total de crianças de até 9 anos mortas de forma violenta, 56% eram negras; 33% das vítimas eram meninas; 40% morreram dentro de casa; 46% das mortes ocorreram pelo uso de arma de fogo; e 28% pelo uso de armas brancas ou por “agressão física”.
Ainda segundo o relatório, 180 mil crianças foram vítimas de violência sexual entre 2017 e 2020 – uma média de 45 mil por ano. Crianças de até 10 anos são as principais vítimas (62 mil casos), e a grande maioria é menina – quase 80%. Também foi constatado que a maioria dos casos de violência sexual ocorre na residência da vítima e 86% dos autores eram conhecidos da família.
Educação Parental
Bruna Barbieri Waquim entende que a falta de conhecimento dos pais, avós e outros parentes sobre as fases do desenvolvimento infantil e sobre as necessidades específicas de cada etapa de crescimento “ocasiona inúmeros traumas e maus-tratos, em maior ou menor grau”.
A especialista acredita que a Educação Parental deve estar presente nas políticas públicas, e até mesmo nas políticas judiciárias. “Essa falta de conhecimento dos pais e familiares se traduz em maiores chances de serem as crianças submetidas ou expostas a atos de violência, das mais variadas vertentes.”
“Se eu não sei quais os riscos que meu filho pode correr diante desta ou daquela situação, como vou conseguir protegê-lo?”, questiona Bruna.
Ela exemplifica: “Ainda há famílias que desvalorizam o aleitamento materno e iniciam a oferta de alimentos ultraprocessados aos filhos desde tenra idade; permitem o uso indiscriminado de telas desde bebê; não acreditam na importância de ensinar o filho a dormir de forma saudável e a ter rotina; inserem os filhos em conflitos de lealdade com outros adultos; não se importam com o sedentarismo de suas crianças; não têm a menor preocupação sobre ensinar consentimento e prevenção a abusos a seus filhos; não têm consciência dos malefícios do exercício do trabalho infantil; e aquelas que, sedentas pela glamourosa vida de digital influencer, permitem os excessos da vida social digital a suas crianças e adolescentes”.
Democratização do conhecimento
Para a assessora jurídica, o Dia da Infância é uma data oportuna para implementar medidas de valorização da infância, de divulgação e democratização do conhecimento sobre os direitos das crianças e, especialmente, de desenvolvimento de ações e programas de educação parental.
Bruna explica que a data foi instituída pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância – Unicef, especificamente para o Brasil, e não se confunde com o Dia Mundial da Infância, 21 de março.
O Dia da Infância no Brasil, segundo a especialista, é uma iniciativa voltada à conscientização sobre os direitos das crianças e sobre as lutas que ainda existem para a concretização desses direitos. “Nesse sentido, o Direito das Famílias tem muito a contribuir com a valorização da infância, na medida em que os institutos civis devem ser relidos à luz dos princípios da prioridade absoluta, do superior interesse, da informação e também da oitiva e participação obrigatória das crianças e dos adolescentes.”
“Quantos processos que envolvem interesses de direitos de crianças e adolescentes são decididos sem que sejam sequer ouvidos ou consultados? Quantos atos de violência são visualizados no decorrer das ações de família sem que medidas protetivas sejam deslocadas para preservar a integridade psicológica das crianças e adolescentes envolvidos nos conflitos dos adultos? Quantas vezes o processo judicial é polarizado entre os interesses dos adultos que litigam e as crianças são invisibilizadas?”, questiona.
Bruna Barbieri Waquim frisa que as ações de família precisam ser, também, ações de proteção e preservação da infância. “Ainda que não sejam ações tramitando junto à Justiça Especializada da Infância, sob a autoridade do Juiz de Infância e Juventude, nenhuma situação de risco pode ficar sem resposta.”
A assessora jurídica acrescenta que deve haver um compromisso coletivo dos atores do sistema da Justiça em tornar as ações de família espaços saudáveis, colaborativos e positivos às crianças e adolescentes envolvidos – mesmo a contragosto dos adultos ou sendo necessária a adoção de medidas concretas para coibir comportamentos hostis, maliciosos e/ou prejudiciais.
“A defesa da infância não pode ser resumida a comemorar datas comemorativas, mas sim representar uma missão cotidiana e um compromisso diário de concretizar as disposições da Proteção Integral sempre que estivermos diante de uma oportunidade de fazer o bem”, pontua.
Proteção
Bruna Waquim afirma que a etimologia da palavra infância é simbólica. Do latim “infantia”, o termo significa “sem fala” ou “alguém que não fala”.
Ela destaca que a história mundial da infância é dividida em três fases: “A primeira é a fase da infância negada, na qual não existia qualquer consideração especial sobre a infância e as crianças eram tidas como ‘miniadultos’ a partir dos 7 anos de idade, completamente inseridas no universo adulto, nas guerras, nas bebidas alcoólicas, nos divertimentos, nos trabalhos”.
A segunda fase, complementa a especialista, é da infância industrializada. “Nela, temos a separação da infância por classes: a infância da classe operária era maltratada e oprimida nas fábricas, contribuindo com o orçamento doméstico, enquanto a infância da classe burguesa frequentava a escola e podia brincar e ser criança”.
“A última fase, na qual nos encontramos, é a fase da infância com direitos, em que se torna preocupação mundial a previsão de direitos e garantias à infância e à adolescência, por meio de tratados e convenções internacionais e nas legislações internas dos países. Ciências como Pediatria, Psicologia, Pedagogia começam a desvendar o conhecimento científico de que o que acontece na infância causa efeitos diretos e indiretos no futuro adulto. Os traumas, as privações, a falta de assistência, tudo isso são sementes de um adulto disfuncional, não produtivo e problemático”, avalia.
Bruna acrescenta que a infância se torna, neste contexto, um assunto para os Poderes Públicos, interessados em adultos equilibrados e participativos na sociedade. “A fase da infância com direitos é caracterizada pela adoção da Doutrina da Proteção Integral, que eleva a criança e o adolescente à condição de pessoas em desenvolvimento, titulares de um plus de direitos fundamentais específicos ao fato de estarem em pleno processo de desenvolvimento humano, e que devem ser assegurados com prioridade absoluta.”
A especialista lembra da adoção da Doutrina da Proteção Integral a partir do artigo 227 da Constituição Federal de 1988, um ano antes até da Doutrina ser oficialmente acolhida pela ONU em sua Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989. “O constituinte brasileiro escolhe inserir no texto constitucional a expressão ‘criança e adolescente’ em substituição ao antigo termo ‘menor’, tão estigmatizado pelos Códigos de Menores anteriores que faziam referência à infância como um problema social (a infância dos menores ‘vadios’, ’expostos’ e ‘delinquentes’)”.
“Falar em infância é uma conquista recente e falar em direitos e proteção à infância é mais recente ainda, fruto de muitas lutas sociais, políticas e jurídicas para o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos e não meros objetos de tutela. Um dos espaços nos quais percebemos que a proteção às crianças ainda é algo invisível e pouco concreto é justamente no espaço da família, por mais dolorida que essa afirmação possa ser”, reconhece.
Bruna conclui que, durante séculos, o sistema civil “obliterava” a importância das crianças ao considerá-las como “incapazes” e submetidas ao “poder familiar”, “o que, nas entrelinhas, era lido como uma autorização quase absoluta para decidir sobre os aspectos da vida dos filhos e ministrar-lhes disciplina e controle. Isso se reflete nos altos números sobre violência intrafamiliar no Brasil”.
Por Débora Anunciação
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