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Ação que discute tratamento social de pessoas trans está parada há oito anos no STF; julgamento começou em novembro de 2015
O processo que discute o direito de transgêneros serem tratados socialmente de acordo com sua identidade de gênero, Recurso Extraordinário – RE 845779, está parado há oito anos no Supremo Tribunal Federal – STF.
O recurso discute a reparação de danos morais a uma mulher trans que teria sido impedidapor um funcionário de um shopping center, de utilizar o banheiro feminino. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina – TJSC entendeu que não houve dano moral.
No STF, o julgamento começou em novembro de 2015 e acumula dois votos favoráveis às pessoas trans. Os votos são dos ministros Roberto Barroso, relator do caso, e Edson Fachin.
Em seu voto, Barroso destacou que as pessoas trans são uma das minorias mais marginalizadas e estigmatizadas da sociedade e ilustrou a gravidade do problema ao observar que o Brasil é o líder mundial de violência contra essa população.
"O remédio contra a discriminação das minorias, em geral, particularmente dos transgêneros, envolve uma transformação cultural capaz de criar um mundo aberto à diferença, em que a assimilação aos padrões culturais dominantes ou majoritários não seja o preço a ser pago para ser respeitado”, ressaltou.
Para ele, “destratar uma pessoa por ser transexual – destratá-la por uma condição inata – é a mesma coisa que a discriminação de alguém por ser negro, judeu, mulher, índio ou gay. É simplesmente injusto; quando não, manifestamente perverso”.
Barroso diz ser papel do Estado, da sociedade e de um tribunal constitucional, em nome do princípio da igualdade, “restabelecer ou proporcionar na maior extensão possível a igualdade dessas pessoas, atribuindo o mesmo valor intrínseco que todos temos dentro da sociedade”.
Ele acrescenta ser necessário o reconhecimento do direito fundamental dos transgêneros de serem tratados “como pessoa, com respeito à sua identidade, que não é produto de escolha, mas é fenômeno da natureza”.
O julgamento foi interrompido pelo pedido de vista do ministro Luiz Fux e, a partir daí, está parado.
Demora surpreendente
Para a advogada Maria Berenice Dias, presidente da Comissão de Direito Homoafetivo do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a demora no julgamento do recurso é “surpreendente”, uma vez que o STF assegurou alguns dos principais direitos da comunidade LGBTQIA+ no Brasil nos últimos anos.
“Foi o STF que garantiu a possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo; criminalizou a homotransfobia; permitiu doação de sangue por homossexuais; e admitiu que os transgêneros obtivessem a mudança do nome e do gênero diretamente perante o registro civil por autodeclaração. Em face disso, é no mínimo surpreendente que um recurso de tamanho significado para uma população tão vulnerável sofra com esse tipo de demora”, afirma.
Maria Berenice Dias refere-se à Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4277 e à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 132, que reconheceu o direito ao estabelecimento de união estável por casais homoafetivos; à Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO 26 e do Mandado de Injunção – MI 4733, que equipara os crimes de transfobia e de homofobia aos de racismo; à ADI 5.543, que entendeu como inconstitucional o impedimento à doação de sangue por homens que mantêm relações sexuais com pessoas do mesmo sexo; e ao Recurso Extraordinário – RE 670.442, que garante a possibilidade de alteração de registro civil de pessoa trans diretamente em cartórios, sem a necessidade de ajuizamento de ação.
Para a advogada, o tema do RE 845779 pode parecer secundário, mas é, na verdade, “fundamental para quem precisa de uma decisão dessas”. A advogada ressalta que “muitas cidades e estados já têm leis municipais e estaduais que garantem esse direito”.
“O voto do ministro Barroso foi bastante preciso ao destacar tamanha violência a que pessoas trans são submetidas quando não são tratadas socialmente de acordo com sua identidade de gênero”, destaca.
“A aprovação de tal recurso seria significativa porque garantiria mais cidadania e aceitação social para os transgêneros. O Brasil é o país onde mais se matam pessoas trans no mundo. Isso deveria ser motivo de vergonha para todos nós. Temos que acabar com esse dado vergonhoso”, ela pontua.
Influência política
A advogada Ligia Ziggiotti, presidente da Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI – ANAJUDH e membro do IBDFAM, destaca que a prioridade de um tema em relação a outros, no STF, sofre uma influência política, entre outros fatores que afetam o tempo processual.
“Com isso, não quero dizer que é uma decisão de ordem partidária, e, sim, que as minorias políticas sofrem com uma absoluta ausência de preferência das Cortes, já que as decisões que tocam esta população envolvem o enfrentamento de preconceitos e de resistência de um país transfóbico. Sendo o Brasil o país que, há treze anos, lidera o ranking dos que mais assassinam pessoas trans em todo o mundo, considero que a demora para o julgamento do Recurso Extraordinário, definitivamente, não é justificável”, aponta.
“Tratar alguém em conformidade com a sua identidade de gênero significa uma garantia de um direito fundamental irradiado da dignidade da pessoa humana. A recusa encontrada pela população trans em espaços institucionais, educacionais, laborais, familiares, comerciais e sociais, como um todo, em ser tratada segundo o gênero que expressa e no qual se reconhece, significa uma absoluta ausência de acesso a bens materiais e imateriais básicos a certos indivíduos”, explica.
A exemplo disso, ela lista atividades cotidianas que podem se tornar cenários de constrangimento e de violência, tais como ir à escola, candidatar-se a uma vaga de emprego e buscar o serviço de um posto de saúde.
“Para lembrarmos da hipótese que inspirou o RE845779, simplesmente ir a um banheiro de um shopping center configura um enredo de perseguição e de trauma para uma mulher trans, porque, naquele caso, acossada pelos seguranças do estabelecimento e pelos demais clientes, ela foi impedida de usar o sanitário feminino, tendo chegado a uma condição completamente vexatória de não ter conseguido conter, publicamente, as suas necessidades fisiológicas. Percebemos, então, a gravidade de algo que jamais atingiria alguém cisgênero: necessitar da intervenção do STF para ter garantido o singelo direito de usar, confortavelmente, um banheiro”, afirma.
A advogada aponta que a aprovação do recurso teria dois tipos de impacto. Em primeiro lugar, está um ponto de vista prático, que irá impor aos estabelecimentos públicos e privados o comprometimento amplo com o reconhecimento da identidade de gênero dos indivíduos que os frequentam. Em segundo, está o ponto de vista simbólico.
“Este julgado transmite, pelo STF, a mensagem constitucional de respeito à população trans de comprometimento com a tomada de medidas para a concretização de seus direitos fundamentais”, afirma.
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