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Justiça reconhece filiação socioafetiva de homem que respondia por falsidade ideológica
Um homem que respondia na Justiça por registrar uma filha que não era sua teve a paternidade socioafetiva reconhecida pela 3ª Vara Criminal da Comarca de Limeira, em São Paulo. O caso é de adoção informal, também chamada de "adoção à brasileira".
O entendimento é de que a destituição do poder familiar é medida excepcional, que só deve ser tomada quando ficar provado que os pais são totalmente incapazes de zelar pelo interesse dos filhos, e que, ao mesmo tempo, seja impossível entregar a criança para ser criada por parentes próximos.
Presidente da Comissão Nacional de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a advogada Silvana do Monte Moreira entende que a decisão atendeu ao melhor interesse da criança. “Importante, tal qual defendido ferrenhamente pelo IBDFAM, que o valor do afeto seja reconhecido para além da convicção pessoal desse ou daquele magistrado.”
Entenda o caso
Conforme consta nos autos, o réu teve uma relação extraconjugal em 2018. Após receber a notícia de que a mulher com quem se relacionou estaria grávida, ele contou a verdade para a esposa e se comprometeu a cuidar do bebê.
O réu alega que acompanhou toda a gestação e participou dos exames pré-natais. Segundo ele, porém, a gestante agia com desinteresse e teria manifestado o desejo de entregar a criança para adoção.
Após o parto, ficou combinado que a bebê ficaria aos cuidados do réu e de sua esposa, que já o havia perdoado. A genitora, por outro lado, mentiu para sua família e disse que a criança tinha nascido morta.
Ainda conforme o processo, mesmo sem certeza da paternidade, o homem registrou a bebê em seu nome, incluiu-a em seu plano de saúde, custeou todos os gastos do parto e internação e passou a criar a menina junto com a esposa.
A história foi contestada pela avó paterna da criança, mãe do pai biológico, que denunciou o caso ao Conselho Tutelar. No processo criminal aberto pelo Ministério Público, o pai adotivo virou réu por falsidade ideológica e a promotoria pediu o acolhimento institucional da criança. Na ocasião, foi feito exame de DNA e descartado o vínculo biológico entre o réu e a menina.
O homem alegou ter criado laço socioafetivo e manifestou interesse em continuar com a criança. Os pais biológicos não manifestaram interesse em ficar com a menina.
Laços socioafetivos
A ação foi julgada improcedente após anos de disputa entre a defesa do pai adotivo e a promotoria. Foi constatado em perícia técnica que os laços socioafetivos estavam consolidados e não haveria motivo para o acolhimento institucional.
Ao avaliar o caso, o juiz considerou que a criança, ao ser entrevistada pelo Setor Técnico, demonstrou estar muito bem cuidada, tendo seus interesses garantidos pelo núcleo familiar, havendo inquestionável vinculação socioafetiva. “O distanciamento da criança do núcleo familiar no qual está inserida não corresponde ao seu melhor interesse."
Valor do afeto
Silvana do Monte Moreira afirma que o afeto é a base das relações familiares. Ela cita o psicólogo Luiz Schettini Filho: “Todos os filhos são biológicos e todos os filhos são adotivos. Biológicos, porque essa é a única maneira de existirmos concreta e objetivamente; adotivos, porque é a única forma de sermos verdadeiramente filhos.”
“Para que o crime previsto no artigo 242 do Código Penal pare de ser cometido é necessário regulamentar a adoção intuitu personae que, saliente-se, não é proibida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/1990)”, pondera a advogada.
O Projeto de Lei do Senado 369/2016 também é mencionado pela especialista. O PLS altera o ECA para dispor sobre adoção na modalidade intuitu personae, mediante a comprovação de prévio conhecimento, convívio ou amizade entre adotantes e a família natural, bem como, para criança maior de dois anos, do vínculo afetivo entre adotantes e adotando. O autor da proposta, o então senador Aécio Neves alegou na justificativa que uma lei sobre o tema daria mais segurança jurídica a um instituto controverso e sem previsão formal.
Para Silvana, o impacto sobre o direito da criança e do adolescente, e também sobre o Direito das Famílias, é enorme. “Reconhece, mais uma vez, o afeto como alicerce das relações familiares.”
“A lei é fria, mas cabe aos julgadores observar o valor do cuidado, dando-lhe o devido lugar de Direito”, conclui a advogada.
Famílias simultâneas
Para a advogada Luciana Brasileiro, diretora nacional do IBDFAM, a decisão de manter a paternidade socioafetiva e a convivência familiar da criança com quem sempre esteve à frente de seus cuidados reflete uma grande maturidade do Direito familiar brasileiro em matéria de filiação. “Isto porque o Brasil consagra o melhor interesse da criança, sua proteção ampla e, sobretudo, a socioafetividade como garantias constitucionais.”
A especialista ressalta que a criança foi acolhida na família daquele que a reconheceu como filha, independente do vínculo sanguíneo, e foi efetivamente inserida no contexto familiar. “Nenhum dos genitores biológicos manifestou interesse em assumir as responsabilidades com a criança.”
“Muito embora a inserção da criança na família extensa seja a prioridade legal, aqui temos uma situação extraordinária, ou seja, a criança já estava inserida em um núcleo familiar, com vínculos constituídos, razão pela qual, o que mais atende ao seu interesse é realmente a manutenção neste espaço de realização pessoal”, reconhece Luciana.
A diretora nacional do IBDFAM explica que as famílias simultâneas continuam sendo um grande desafio ao Direito, “sobretudo após as decisões do Supremo Tribunal Federal – STF, que rechaçaram o reconhecimento de efeitos jurídicos familiares para as relações de conjugalidade”.
“No entanto, do ponto de vista da filiação, desde 1988 o Brasil reconhece a igualdade de direitos aos filhos, o que representa um grande marco neste sentido. Independente da existência de uma relação simultânea a outra, os filhos serão preservados em seus direitos e interesses”, afirma.
A advogada conclui: “Precisamos ainda avançar nos direitos conjugais, que nos levam ao esforço de superar a interpretação da monogamia como regra absoluta na conjugalidade, que chega a se sobrepor até mesmo à dignidade humana, à responsabilidade e à solidariedade”.
Melhor interesse
No entendimento do advogado Ricardo Calderón, diretor nacional do IBDFAM, a decisão demonstra a força e a abrangência do princípio da afetividade nas relações familiares. “Permite superar uma inconsistência registral formal e manter o vínculo filial mesmo ausente qualquer ligação biológica.”
O especialista frisa que a filiação pode estar lastreada em outros elementos para além do biológico. “A ascendência genética não é um elemento essencial para a manutenção dos vínculos filiais no sistema do Direito de Família brasileiro.”
“O princípio da afetividade vem sendo utilizado em diversas searas, até nas Varas da Infância, seja em ações de perda do poder familiar, de medidas protetivas em favor de infantes, como também em feitos de adoção, quando inconsistente algum elemento no processo formal ou nas chamadas adoções à brasileira”, observa.
De acordo com o diretor nacional do IBDFAM, nos casos em que o vínculo socioafetivo é consolidado e exercido por longos anos de maneira pública, contínua e duradoura, a jurisprudência é firme em privilegiar a manutenção dos laços socioafetivos.
“Tanto o princípio da afetividade como o princípio do melhor interesse da criança, do adolescente são vetores que vêm sendo utilizados para a fundamentação de decisões. A partir deles é possível superar inconsistências formais e fazer justiça no caso concreto”, conclui o advogado.
Por Débora Anunciação
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