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Dia da Visibilidade Trans expõe vulnerabilidades e desafios da contemporaneidade
O Dia Nacional da Visibilidade Trans, celebrado no próximo domingo, 29 de janeiro, ecoa vozes potentes já familiarizadas com o silêncio nos outros dias do calendário. Em um cenário contínuo de vulnerabilidade social, pessoas transgênero resistem e lutam pela garantia de direitos ano após ano.
A tabeliã Carla Watanabe, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, reconhece a importância da data para uma parcela da população extremamente estigmatizada. “Por razões similares, existem datas como o Dia da Consciência Negra, Dia Internacional da Mulher e o Dia do Orgulho LGBTIA+.”
“O negro, a mulher, o indígena e as minorias sexuais são grupos historicamente subalternizados na nossa sociedade. Suas epistemologias e modos de vida não têm a mesma receptividade na esfera pública, comparativamente à do homem branco, cis-heterossexual e proprietário”, destaca.
Estigmatização
De acordo com a especialista, para as pessoas trans existe ainda o conceito de "abjeção", cunhado pela filósofa norte-americana Judith Butler. “A rejeição a esse grupo é tão grande que uma pessoa trans muitas vezes é considerada não humana; e é retirada, portanto, de todas as hierarquias morais da nossa sociedade.”
“Por essa razão ocorrem tantas agressões e atos discriminatórios motivados por um ódio sem sentido e sem justificativa. As pessoas trans se encontram entre aquelas que ‘não merecem luto’ (Judith Butler), ou seja, aquelas cujo desaparecimento fará um ‘bem’ à sociedade”, afirma Watanabe.
Para a tabeliã, não basta apenas um dia no calendário. “Em todos, deveríamos respeitar o outro. Contudo, enquanto esse momento ideal não chega, é necessário ainda existir ao menos um dia da visibilidade trans no ano.”
Ela afirma que essa minoria é invisível e suas necessidades muitas vezes são desconhecidas do Poder Público em razão da estigmatização. “Há agendas específicas nas áreas da saúde, da educação e do emprego, para dizer o menos. Além de um pleito essencial: o de sermos chamadas pelo nome e gênero com os quais nos identificamos.”
Direito fundamental
Carla Watanabe lembra da consagração pelo Supremo Tribunal Federal – STF da identidade de gênero como direito fundamental, na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade – ADI 4.275-DF, em 2018. Afirma, porém, que “ainda são muito grandes os obstáculos para a pessoa trans retificar prenome e sexo no registro civil”.
A especialista acredita que a falta de gratuidade do serviço, o extenso rol de documentos exigidos e a transfobia de muitos oficiais de cartório relegam a pessoa transgênera a uma cidadania de segunda classe. “Quando solicitei a retificação no registro civil, o oficial se negou peremptoriamente, e caprichosamente, a atender meu pedido, apesar de ele estar acompanhado de toda a documentação necessária.”
“Contratei uma equipe de advogados para fazer valer meus direitos. Mas quantas pessoas trans, em nosso país, têm condições financeiras de pagar honorários, emolumentos e outras despesas para lutar por seus direitos?”, questiona.
Segundo a tabeliã, poucas, pois “a maioria das pessoas trans é hipossuficiente, está desempregada ou se encontra no subemprego”. Cita, como evidência, o 1º Mapeamento das Pessoas Trans no Município de São Paulo.
“Boa parte dessa condição é reflexo da falta de educação, pois a maioria de nós é expulsa de casa ainda durante a adolescência, após comunicar a nossa autêntica identidade de gênero. Em paralelo, sofremos bullying na escola, um lugar pouco acolhedor para as minorias”, comenta.
Carla avalia a dificuldade em encontrar emprego digno como consequência direta da parca formação educacional. “Onipresentes nesse contexto estão o preconceito e a discriminação. Quando a pessoa trans se candidata a um emprego, ela é descartada por recrutadores por fugir ao padrão de inteligibilidade cis-heteronormativo.”
“Há, por consequência, um círculo vicioso que se retroalimenta e nos joga na pobreza. Atira-nos na marginalidade, o ‘lugar social’ reservado para as pessoas trans, conforme o pensamento da maioria da sociedade”, conclui.
No Legislativo
A tabeliã observa que nenhuma iniciativa legislativa na área de direitos sexuais e reprodutivos foi aprovada desde a Assembleia Constituinte de 1988, quando “ganhou corpo no Parlamento federal um forte ativismo conservador”.
Houve, segundo ela, a apresentação de diversos projetos, muitos dos quais vão no mesmo sentido de acórdãos do STF e do STJ relativos a pessoas trans. Entre eles, cita a criminalização da homotransfobia e temas correlatos (PLs 5003/2001, 6424/2013, 7292/2017 e 5008/2020); a criação de espaços exclusivos para travestis e transexuais em presídios (PLs 9576/2018 e 6350/2019); a aplicação da Lei Maria da Penha para transgêneros (PLs 8032/2014 e 2653/2019); e a mudança de prenome e de sexo no registro civil, com gratuidade de emolumentos (PLs 6655/2006, 2976/2008, 4870/2016, 3667/2020 e 3667/2020).
“Entretanto, nosso Parlamento se recusa a discutir esses direitos, o que atrai para o Poder Judiciário a missão de exercer sua função contramajoritária, de defesa de direitos de minorias subalternizadas. Essa não é uma situação confortável”, pondera.
Vedação ao retrocesso
Segundo Carla, muitos direitos podem ser perdidos com a mudança na composição de uma Corte Constitucional. “Evidentemente, em nosso Direito Constitucional, existe a ‘vedação ao retrocesso’; porém, uma Corte Suprema sempre tem a última palavra, inclusive para dizer ‘o que é retrocesso’.”
A especialista afirma que o ordenamento jurídico apenas pune a “discriminação direta”, na qual a prova do dolo é essencial. “Muitas vezes, essa prova é inviável, ou não existe, como na ‘discriminação indireta’ ou na ‘discriminação institucional’. Como resultado, o ofensor permanece impune e a discriminação estrutural nunca é considerada.”
A tabeliã pontua que os ofensores buscam outras formas de atuação para evitar a punição por homotransfobia. Uma delas é a desmoralização profissional.
Ela explica: “Se uma pessoa trans é dona de padaria, por exemplo, são praticadas contra ela inúmeras condutas de assédio físico e virtual. Outros padeiros, ou determinados grupos da sociedade, vão propagandear que o pão da padaria é horrível, que a dona trata mal os empregados ou que descumpre regras da Vigilância Sanitária”.
O objetivo dos ofensores, segundo a especialista, é “devolver a pessoa trans para o ‘lugar social’ dela: a marginalidade, por meio de práticas que lembram o lawfare, pois não é possível determinar um único ofensor”.
Por Débora Anunciação
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