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Casal de idosos não consegue validar certidão de casamento falsa; especialistas divergem da decisão

Atualizado em 30/09/2020.
Um casal de idosos que acreditava ser casado há 49 anos descobriu que tinha uma certidão de casamento falsa. Em ação para formalizar a união, eles tiveram o pedido negado. A maioria da 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP considerou que o Poder Judiciário não pode chancelar um ato inexistente e ilegal.
Em 1970, os autores da ação recente contrataram serviços de um despachante para providenciar a conversão da união estável em casamento. Após apresentarem os documentos, foi entregue uma certidão lavrada em 1971. Apenas em 2015, durante procedimento de renovação de documentos, descobriu-se que o casamento inexistia perante o registro civil competente.
Por quase 45 anos, os autores sequer desconfiaram da irregularidade da união. Por isso, buscaram a Justiça para a convalidação da certidão de casamento falsa, com retificação de alguns dados, como nomes dos genitores e cidade de domicílio.
Convalidação de certidão falsa é inadmissível, afirmou relatora
Em sua análise, a desembargadora-relatora considerou que a pretensão não se restringe à mera retificação de assento de casamento civil, mas à convalidação de uma certidão que se descobriu ser falsa mediante lavratura de uma nova, “o que se evidencia inadmissível”.
Ao considerar impossível o suprimento do registro civil, por ausência de observância aos requisitos elencados na lei para a validade do casamento, a desembargadora destacou que a única hipótese para a solução é a adoção de medidas legais para conversão da união estável em que se encontram em casamento civil, o que deverá ser realizado mediante nova ação.
Voto divergente lembrou princípios do casamento putativo
O voto vencido pontuou que, independentemente da qualificação de ato inexistente, é permitido aplicar os princípios do casamento putativo para mandar registrar o casamento certificado, para que a união produza seus efeitos jurídicos presentes, passados e futuros, reconhecendo no caso a boa-fé absoluta das partes, "tanto que o casal está prestes a completar bodas de ouro (50 anos de casamento)".
“Os cônjuges incorporaram a força intrínseca do papel entregue por supostos despachantes encarregados de regularizar a união estável que se iniciava e exerceram os deveres e prazeres conjugais até o presente instante, em demonstração de que construíram família e são dignos de tutela judicial. O interesse do Estado é proteger a família”, diz trecho do voto divergente.
O magistrado destacou ainda que a mulher, há mais de 40 anos, passou a assinar seu nome de casada, tudo com base no suposto casamento. Considerou, assim, que o Tribunal deveria observar os princípios que regem o instituto do casamento putativo, reconhecendo a possibilidade de emitir sentença constitutiva e mandar realizar o assento com os dados atualizados, para que o casamento de 1971, retratado na certidão, produza efeitos retroativos, presentes e futuros.
“Tudo conspira para o entendimento de que os dois recorrentes foram vítimas de espertos despachantes que, aproveitando da baixa instrução e da pouca capacidade de discernimento jurídico dos interessados, apresentou uma certidão de casamento despida de autenticidade”, inferiu o desembargador.
Voto divergente foi preciso, afirma Euclides de Oliveira
Para o advogado Euclides de Oliveira, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a argumentação da maioria se apegou ao texto frio da lei como se o caso fosse de um ato inexistente. “O casamento existiu de fato, com longo tempo de união, beirando as bodas de ouro. Por erro do tabelião ou fraude cometida por terceiros, não foi feito o registro civil do casamento, que nem por isso deixou de existir”, frisa.
O especialista elogia o voto divergente: o conflito poderia ter sido resolvida pelo enquadramento jurídico do casamento putativo, previsto no artigo 1.561 do Código Civil, aliado à regra da preservação do contrato celebrado por boa fé, como é da essência das declarações de vontade (artigo 422 do CC).
“A fundamentação do voto divergente foi precisa ao considerar esse contorno jurídico para reconhecimento do casamento de fato que seguramente existiu pela comprovação de que as partes mantiveram estado de casados”, destaca.
A solução contrária não negou esses fatos, mas preferiu entender que a situação seria de união estável, que, na época do casamento, década de 1970, nem existia no plano jurídico, como ressalta o advogado. “Naquele tempo se falava em concubinato, entendido como fora da lei. Como explicar isso ao idoso casal que somente queria o reconhecimento social de sua longa e frutuosa vida de casados?”, indaga Euclides.
Essência deve prevalecer à forma, defende José Roberto Moreira Filho
Presidente da seção Minas Gerais do IBDFAM, o advogado José Roberto Moreira Filho também diverge do entendimento apresentado pela maioria dos desembargadores. “Entendo que houve um equívoco de interpretação, tendo em vista que a decisão privilegiou mais a forma que a própria essência do casamento”, opina.
“O casamento em sua essência é uma união pública, contínua e duradoura, com afeto existente entre as pessoas que o compõem e objetivo de constituir família. O registro desta união é mera formalidade para que se dê publicidade ao ato. A essência deve prevalecer à forma”, defende José Roberto.
O especialista acrescenta que é possível invocar a chamada “posse de estado de casados”, que ocorre justamente quando um casal acha que está casado, vive como se fosse, mas o registro não foi feito ou é considerado falso ou nulo. “A própria lei determina que, na dúvida entre as provas favoráveis e contrárias, prevalecerá o casamento.”
“Ou seja, com quase 50 anos de casados em confronto com provas da inexistência do registro, o julgamento deveria ser pelo casamento. Entendo que a razão está com o voto vencido, tendo em vista que o casamento prova-se pela sua essência, não simplesmente pelo seu registro. Até porque casamentos registrados no exterior, mesmo que não sejam feitos nos consulados brasileiros ou registrados aqui, possuem validade no Brasil, conforme reiterada decisão do STJ”, frisa o advogado.
Ele acrescenta: “Em face da posse de estado de casados e da possibilidade de se atribuir efeitos jurídicos a casamento nulo ou anulável quando contraído de boa-fé, entendo que deveria ser determinado ao cartório o registro do casamento com retroatividade à data de início da união”.
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