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A Família no Direito em sua Retrospectiva de 2023
Jones Figueirêdo Alves
No ano que finda, o direito de família teve novos começos. Essa trilha moderna indicou caminhos saudáveis para as famílias experienciadas na lei, na jurisprudência avançada e nas proposições legislativas. É hora de revisitar esse tempo e visualizá-lo a cada momento de evolução familista, em uma retrospectiva de 2023.
Normatividade. Sob o viés normativo, avanços oferecidos pela legislação potencializaram a proteção da mulher, notadamente em face da guarda dos filhos, tendo como questão de fundo mecanismos de defesa contra a violência doméstica ou familiar.
Nesse significativo espectro, vale anotar com realce a recente Lei n. 14.713, de 30 de outubro de 2023, que deu nova redação ao parágrafo 2º do art. 1.584 do Código Civil e acrescentou o art. 699-A ao Código de Processo civil, para estabelecer o risco de violência doméstica ou familiar como causa impeditiva ao exercício da guarda compartilhada, bem como para impor ao juiz o dever de indagar previamente o Ministério Público e as partes sobre situações de violência doméstica ou familiar que envolvam o casal ou os filhos. (01).
De efeito, a guarda compartilhada preferencial como modelo de guarda dos filhos resultará afastada, sempre que “houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar”, conforme alteração do dispositivo civil codificado. (02). Cuida-se de importante política pública protetiva ao infante, a saber da hipótese de sua nociva e frequente exposição às situações de violência doméstica perpetradas nas relações conflituosas dos pais, devendo em tais casos ser adotada a guarda unilateral, como forma de efetiva garantia ao seu desenvolvimento saudável, sempre em prestígio ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, como interesse mais legitimo e prioritário.
Em se tratando de uma lei com apenas dois meses de vigência, a fixação da guarda unilateral sob a premissa motivante da “probabilidade de risco”, (conceito juridicamente indeterminado), não recebeu ainda a mais apurada experimentação judiciária e, tampouco, o devido tratamento doutrinário a ensejar definir conceitualmente o risco. Essa norma de conteúdo e extensão incertos, à falta de um sentido preciso e objetivo, carece de um preenchimento doutrinário e jurisprudencial adequados, devendo-se em sua aplicação ser adotado um regime de convivência que não afaste, por demais, a presença regular do pai agente da violência familiar. Ou seja, como afirmou Rodrigo da Cunha Pereira, “restringir o convívio do pai com o filho é uma medida extrema, que deve ser feita excepcionalmente, com a maior cautela”. (03)
A propósito da probabilidade de risco, resulta criado um novo instituto jurídico, dela extraído, o da “cautela de convívio”; a exigir, destarte, uma abalizada doutrina, tudo como desponta no artigo 999-A do Código de Processo Civil, ao resultar preceituado que:
“Nas ações de guarda, antes de iniciada a audiência de mediação e conciliação de que trata o art. 695 deste Código, o juiz indagará às partes e ao Ministério Público se há risco de violência doméstica ou familiar, fixando o prazo de 5 (cinco) dias para a apresentação de prova ou de indícios pertinentes.”
Em outro giro, cumpre assinalar a atuação do Conselho Nacional de Justiça, em significativo papel normativo através de sua Corregedoria Geral de Justiça, sob regência do ministro Luís Felipe Salomão, com a edição de Provimentos e Recomendações.
Jurisdicionalidade. Sob o eixo temático da jurisdicionalidade, grandes temas de maior interesse da família brasileira foram apreciados, neste ano, pelo Supremo Tribunal Federal. O mais importante surgiu com o julgamento do RE n. 1.167.478-RJ, ocorrido em 08.11.2023, em relatoria do Ministro Luiz Fux, no trato do Tema 1.053, como Repercussão Geral. Definiu-se que o instituto da separação judicial não mais vigora em nosso ordenamento jurídico, seja como requisito prévio para o divórcio, seja como figura autônoma, a não permitir o seu manejo por aqueles que poderiam pretender pela subsistência do vínculo conjugal. A ementa do julgamento colocou em relevo a questão da não dualidade dos institutos da separação judicial e do divórcio, não mais existindo aquele, como tal referido pelos artigos 693, 731, 732 e 733 do Código de Processo Civil de 2015. Fixou-se, então, a seguinte tese:
"Após a promulgação da EC nº 66/2010, a separação judicial não é mais requisito para o divórcio e nem subsiste como figura autônoma no ordenamento jurídico. Sem prejuízo, preserva-se o estado civil das pessoas que já estão separadas, por decisão judicial ou escritura pública, por se tratar de ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CF)" (04)
Uma contradição substancial resultaria óbvia. Imagine-se situação em que agitada a separação judicial contenciosa e a parte demandada postulasse o seu direito potestativo de divorciar-se, sob os rigores da Emenda Constitucional n. 66/2010, que excluiu requisitos causais e temporais para o divórcio. Cai a lanço explicitar mais. Aliás, uma gritante contradição legislativa ao tempo da edição da Lei n. 13.105/2015 nos seus artigos acima citados.
Outro importante julgamento, iniciado este ano, cuida do Tema 1236 - Regime de bens aplicável no casamento e na união estável de maiores de setenta anos.
O Recurso extraordinário com Agravo de n. 1.309.642 discute, à luz dos artigos 1º, III, 30, IV, 50, I, X, LIV, 226, § 3º e 230 da Constituição Federal, a constitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil, que estabelece ser obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de setenta anos, e a aplicação dessa regra às uniões estáveis, considerando o respeito à autonomia e à dignidade humana, a vedação à discriminação contra idosos e a proteção às uniões estáveis.
Em 06.03.2023 foi publicado o Acórdão que reconheceu (i) possuir caráter constitucional a controvérsia acerca da validade do art. 1.641, II, do CC/02, que estabelece ser obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de setenta anos, e da aplicação dessa regra às uniões estáveis e (ii) tratar-se de questão de relevância social, jurídica e econômica que ultrapassa os interesses subjetivos da causa.
O feito sob a relatoria do Min. Luís Roberto Barroso em 18.10.2023, após a leitura do relatório e a realização das sustentações orais, teve o seu julgamento suspenso, com pauta para sua continuidade em 01.02.2024. (05).
Anota-se, no particular, a notável atuação do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM, como amicus curiae, através da sustentação feita pela Dra. Maria Luiza Póvoa Cruz, no atinente à inconstitucionalidade do dispositivo. (06)
De lege ferenda. Projetos legislativos apresentados neste 2023 contemplaram diversos avanços ao direito de família. Impende referir, de logo, o PL de n. 179/2023, que reconhece a família multiespécie como entidade familiar, esta entendida como a comunidade formada por seres humanos e seus animais de estimação (07).
A seu turno, o PLS n. 3324/2023, altera a Lei nº 14.601, de 19 de junho de 2023, para incluir entre os objetivos do Programa Bolsa Família, a proteção social da mulher em situação de violência doméstica e familiar. De efeito, emergencialmente, o Programa Bolsa Família também atenderá a mulheres e seus dependentes em situação de violência doméstica e familiar que necessitarem do benefício. Afirma o projeto de lei que “a alteração proposta está em consonância com a Lei nº 11.340, de 2006 (Lei Maria da Penha), que, em seu art. 9º, §1º, estabelece que o juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal. Efetivamente trata-se de uma regulação urgente, cumprindo-se dispor a respeito para o alcance adequado da proteção da mulher vitimizada. (08).
No tocante à criança e ao adolescente, o PL n. 2.861/2023 foi aprovado, com sua remessa ao Senado (23.08.2023). Trata da denominada parentalidade positiva, definida como o processo executado pelas famílias na educação das crianças, que possuem direitos no desenvolvimento de um relacionamento fundamentado pelo respeito, acolhimento e não violência”. O Projeto inclui na Lei n. 14.344, de 24.05.2022 (Lei Henry Borel) - que criou mecanismos de prevenção e enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança - dispositivo prevendo o uso da promoção da parentalidade positiva e do direito ao brincar, o brincar livre, como estratégias intersetoriais de prevenção às violências doméstica contra crianças (09).
Outro importante projeto legislativo fixa regras para gestão de patrimônio de crianças e adolescentes que desenvolvam trabalho cultural, artístico ou esportivo, estabelecendo diretrizes para a sua proteção patrimonial. O PL n. 3916/2023 prevê que a maior parte do patrimônio só poderá usada pelos próprios artistas quando atingirem a maioridade. E mais:
“(i) a proposta determina que os pais, tutores ou empresários das crianças e adolescentes artistas registrem-se perante a Receita Federal, no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, para gerenciar o patrimônio delas;
(ii) o texto proíbe que os responsáveis legais exijam ou forcem as crianças ou adolescentes a contribuir financeiramente para seus rendimentos pessoais ou projetos de vida;
(iii) o responsável legal será obrigado a manter registros financeiros claros e transparentes, que devem estar disponíveis para a realização de exame ou auditoria por profissionais externos e pelo Ministério Público” (10)
A proposta tramita apensada a outros três projetos semelhantes: PLs 3917/23, 3918/23 e 3919/23. Os textos serão analisados todos juntos, em caráter conclusivo, pelas comissões de Trabalho; de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família; e de Constituição e Justiça e de Cidadania.
Mas não é só. Os maiores avanços do direito de família virão contemplados nas propostas que atualizam o atual Código Civil, mediante os trabalhos da comissão de juristas constituída, pelo presidente do Senado Rodrigo Pacheco em 24.08.2023 e instalada em 09.09.2023, sob a presidência do ministro Luís Felipe Salomão (STJ). Figurando como relatores-gerais os juristas Flávio Tartuce e Rosa Maria de Andrade Nery, na subcomissão do Livro do Direito das Famílias atuam os juristas Pablo Stolze Gagliano (relator), ministro Marco Buzzi, Maria Berenice Dias e Rolf Madaleno.
Neste final de ano (18 de dezembro), as propostas foram encaminhadas para a consolidação dos textos, devendo a segunda etapa, de janeiro a 05 de abril de 2024, finalizar o texto do anteprojeto para a sua discussão e votação. Os relatórios das subcomissões integram o texto inicial de 1.823 páginas, com destaque aos avanços do direito familista no Código Civil revisado.
Dentre eles, contemplam-se, v.g., as proposições;
(i) do divórcio unilateral, em primazia do reconhecimento de tratar-se de um direito potestativo ditado pela Emenda Constitucional n. 66, de 13.07.2010, podendo ser exercido por quaisquer dos cônjuges separados de fato. O novel instituto jurídico proposto teve sua origem no Provimento n. 06/2019, de nossa autoria, quando em exercício interinal da Corregedoria Geral de Justiça de Pernambuco. (11) O normativo possibilitava o pedido de divórcio em cartório de registro civil por apenas um dos cônjuges, independente da presença ou anuência do outro, o chamado divórcio impositivo. Nessa esteira normativa, seguiu-se o Projeto de Lei nº 3.457/2019, de autoria do Senador Rodrigo Pacheco, dispondo sobre os procedimentos para a instituição desta iniciativa, definindo que este tipo de divórcio deverá ser averbado diretamente ao Registro Civil das Pessoas Naturais por qualquer dos cônjuges. Agora terá o instituto do divórcio unilateral a sua mais prestigiada fonte normativa, a do Código Civil.
(ii) da extinção do regime de participação final dos aquestos;
(iii) do compartilhamento dos encargos parentais, a saber da paridade de obrigações do poder familiar, como responsabilidade parental igualitária.
(iv) do tratamento jurídico da reprodução assistida, ainda somente regida pelo Conselho Federal de Medicina, através de sua Resolução n. 2.320, de 01/09/2022 (12);
(v) da chamada “economia do cuidado”, expressão utilizada por Maria Berenice Dias, por uma disciplina mais dinâmica dos encargos e obrigações alimentares, assim como dos alimentos compensatórios, com uma melhor configuração em suas vertentes.
Conclusões. Posta esta retrospectiva, repetimos a reflexão contida em artigo nosso veiculado neste Consultor Jurídico, em primeiro dia do ano 2023:
“Quando o valor da pessoa em sua exata dimensão de dignidade demanda direitos e a família congrega as pessoas em suas unidades de valor, busca-se consolidar as novas tendências do Direito das Famílias. Efetivá-las, com a maior extensão de suas realidades jurídicas, é o desafio atual” (13)
De fato. Novos caminhos de esperança são abertos, sempre, pelo direito, para todas as famílias, que resultarão mais visíveis e protegidas. O ano 2023 da era cristã atendeu aos desafios do direito para um melhor futuro das famílias, principalmente ao preparar a atualização do Código Civil que teremos em 2024. Seja, então, bem-vindo o Ano Novo, um Feliz Ano 2024 para todas as famílias brasileiras.
Referências:
- Web: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14713.htm#art1
- Nova redação da Lei 14.713/2023: Art. 1.584...........................................
§ 2º. Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda da criança ou do adolescente ou quando houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar.
(03) PEREIRA. Rodrigo da Cunha. Cuidados com a guarda unilateral e o uso indevido da Lei Maria da Penha. Consultor Jurídico, 07.12.2023. Web: https://www.conjur.com.br/2023-dez-07/cuidados-com-a-guarda-unilateral-e-uso-indevido-da-lei-maria-da-penha/
(04) STF. Web: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5562994
(05) Web: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6096433
(06) Conferir artigo de Pâmela Victória Ferreira Faria: Da (in)constitucionalidade da separação obrigatória de bens para os maiores de 70 anos.
(07). Web: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2252380
(09) Web: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2280946&filename=PL%202861/2023
(10) Fonte: Agência Câmara de Notícias. Web: https://www.camara.leg.br/noticias/988439-projeto-fixa-regras-para-gestao-de-patrimonio-de-criancas-e-adolescentes-artistas/
Texto PL 3916/2013. Web: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2312108
(12) Web: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2022/2320
(13). Web: https://www.conjur.com.br/2023-jan-1/processo-familiar-familia-pronta-futuro-perspectivas-2023-2/
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Jones Figueirêdo Alves é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Advogado, consultor jurídico e parecerista.
Publicação original disponível: https://www.conjur.com.br/2023-dez-31/a-familia-no-direito-em-2023-uma-retrospectiva/
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM