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Da (in)constitucionalidade da separação obrigatória de bens para os maiores de 70 anos
Pâmela Victória Ferreira Faria[1]
Resumo
O presente trabalho tem por objetivo analisar a compatibilidade do artigo 1641, II do Código Civil de 2022, o qual prevê a imposição do regime da separação obrigatória de bens para os maiores de 70 anos, com a Constituição Federal de 1988 (CRFB/88). Aludida norma advém da concepção patrimonialista do direito civil, ideia essa que foi sendo derrogada pelo ordenamento jurídico após a CRFB/88.
Com o advento da nova ordem constitucional, o Direito Civil passou a ser norteado pelos princípios da dignidade da pessoa humana, bem como o princípio do afeto, trazendo a noção de normas existenciais para as relações privadas, fenômeno conhecido como publicização do direito privado. Dessa forma, todos os dispositivos legais que não estejam em consonância com essas percepções modernas existenciais encontram em dissonância com a Constituição Federal de 1988, a qual é o pilar do ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-chave: Casamento, Separação Obrigatória de bens, maiores de 70 anos, Inconstitucionalidade.
Abstract
This study aims to analyze the compatibility of article 1641, II of the Civil Code of 2022, which provides for the imposition of the mandatory separation of assets regime for those over 70 years of age, with the Federal Constitution of 1988 (CRFB/88). This norm comes from the patrimonial notion of civil law, a notion that was derogated by the legal system after the CRFB/88, which began to radiate into civil law the principle of human dignity, as well as the principle of affection, bringing the notion of existential norms for private relationships, a phenomenon known as publicization of private law. In this way, all legal provisions that are not in line with these modern existential notions are in dissonance with the Federal Constitution of 1988, which is the pillar of the Brazilian legal system.
Keywords: Marriage, Mandotory separation of assets, over 70 years old, Unconstitucionality.
Introdução
O direito de Família mais que qualquer outro ramo do nosso ordenamento jurídico reflete as mudanças de nossa sociedade, a Constituição Federal (CRFB/88)[2] estabelece a igualdade e a dignidade da pessoa humana, que pode ser entendida também como o direito de autodeterminação e escolha.
Além disso, a Constituição Federal trouxe como protagonista do ordenamento os direitos existênciais, ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Desse modo, o direito civil não pode mais ser visto meramente com viés patrimonialista, o princípio da afetividade e os direitos existências possuem importante função na interpretação e aplicação das normas do direito Civil.
Apesar de ter sido publicado em 2002, o projeto do Código Civil é do ano de 1975. Desse modo, tendo a vigência se dado após a Constituição Federal, não há que falar em recepção do Código Civil, mas suas normas podem e devem sofrer análises de constitucionalidade e inconstitucionalidade para se aferir a compatibilidade delas com o ordenamento jurídico brasileiro.
Nessa toada, será analisado o artigo 1641, II do Código Civil de 2022[3], o qual prevê a imposição do regime da separação obrigatória de bens para os maiores de 70 anos.
Para se analisar a compatibilidade desse dispositivo será feita uma análise a luz da teoria do direito formulada por Ronald Dworkin, precisamente a teoria dworkiniana do direito como integridade. Para Dworkin “o direito nada mais é que aquilo que as instituições, como as legislaturas, as câmaras municipais e os tribunais decidiram no passado”, dessa forma, as questões relativas ao direito podem ser respondidas com base na análise dos arquivos de registro das decisões institucionais. Dworkin sustenta que há dois princípios de integridade política, um legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar moralmente coerente o conjunto de leis, e um jurisdicional que demanda que a lei seja vista como coerente nesse sentido.[4]
Direito como integridade pressupõe as proposições jurídicas como verdadeiras se derivam dos princípios de equidade, justiça e devido processo legal que oferecem melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade[5]. Dworkin compara a cadeia do direito com um projeto em que um grupo de romancistas escreve um romance em série, cada um deve criar o seu capítulo a modo de criar da melhor maneira possível um romance em elaboração, a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso concreto de direito como integridade[6]. Dworkin apresenta o que o direito como integridade espera dos juízes:
o direito como integridade pede que os juízes admitam na medida do possível, que o direito é um conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal adjetivo, e pede-lhes que os apliquem nos novos casos que se lhes apresentem, de tal modo que a situação de cada pessoa seja justa e equitativa segundo as mesmas normas.[7]
Definido o que é direito como integridade esse será o marco teórico da presente pesquisa.
- Da sistemática do ordenamento jurídico
Com a promulgação da Constituição Federal, em 05 de outubro de 1988, ela passa a ser a norma central do ordenamento que irradia os fundamentos para os outros ramos do direito, devendo a legislação infraconstitucional seguir os parâmetros estabelecidos pela Constituição Federal, pois é dela que se retiram os fundamentos e diretrizes para as leis infraconstitucionais, devendo essas leis serem compatíveis com o texto constitucional.
Contudo, levou-se um tempo até que a doutrina e o ordenamento a visse como diploma parâmetro para o ordenamento jurídico brasileiro. A CRFB/88 inaugurou nosso atual Estado Democrático de Direito e até que doutrina civilista brasileira e jurisprudência dos Tribunais Superiores se firmassem no sentido de que a CRFB/88 de fato poderia ser a bússola do ordenamento jurídico por ostentar qualidade de democrática e de resguardar direitos e garantias fundamentais, o Código Civil de 1916 permaneceu no centro do ordenamento, nos anos iniciais de vigência da CRFB/88.
Tepedino[8] assevera que a doutrina civilista buscou responder como seria possível uma compatibilização do direito civil e nessa época o Direito Civil era visto com cunho patrimonialista e privado e a novel Constituição Federal que mitigava a característica patrimonialista e privada do direito civil, ao introduzir, por exemplo, a norma constitucional de que a propriedade deveria cumprir sua função social[9], e, prevendo sanção de perda da propriedade ao proprietário que não segue aludido mandamento constitucional, configurando efetiva limitação ao direito da propriedade e abandonando a antiga premissa de que ele era absoluto.
Por conseguinte, Tepedino observa que a doutrina civilista passou a adjetivar o direito privado como socializado, publicizado, constitucionalizado, despatrimonizado, com o intuito de demonstrar uma absorção do direito privado pelo direito público[10].
O Código Civil de 1916 foi inspirado no Código Civil francês, que ficou conhecido como Código de Napoleão tendo como premissas regentes o individualismo e voluntarismo, possuindo como valor fundamental o indivíduo. A filosofia que marcou o Código Civil de 1916 foi a atuação dos sujeitos de direito contratante e proprietário, que estavam preocupados com os anseios de contratar livremente, fazer circular riquezas e adquirir bens sem entraves legais[11]
Tepedino consigna que houve uma profunda alteração da dogmática do direito privado, com os avanços dos fatos sociais, passou-se a exigir do legislador, dos aplicadores do direito e da doutrina uma preocupação com o conteúdo e também com as finalidades desenvolvidas pelo sujeito de direito universalizante.”[12]
Tepedino alude que com a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, bem como do Estatuto da Criança e do Adolescente, o Direito Civil perde a “cômoda unidade sistemática antes, assentada no Código Civil de 1916. A teoria geral dos contratos já não atende mais as necessidades próprias da sociedade de consumo, da contratação em massa, da contratação coletiva.”[13]
Maria Celina Bodin de Moraes, argumenta que:
Em íntima conexão com o fim da generalização dos conteúdos da razão prática (isto é, da ética) está o enfraquecimento, por vezes a desintegração, de modelos tradicionais, relativos à formação das identidades coletivas, como o Estado Nacional (basta pensar na União Europeia), as classes sociais, as crenças religiosas, os Partidos Políticos, os sindicatos. Este fenômeno acarreta, ainda, que categorias clássicas do direito constitucional, tais como “bem comum”, “interesse público", "soberania", "lei", "direitos fundamentais”, precisem ser repensadas. Do mesmo modo, como se verá igual necessidade se impõe com relação aos conceitos tradicionais do direito civil.[14]
A autora sustenta que com o advento das Constituições do Estados democráticos ao longo do século XX, os princípios do direito privado, bem como os princípios dos diversos ramos do direito passaram a fazer parte das Constituições. E que a dignidade da pessoa humana passou a ser princípio reitor dos ramos do direito, “consagrando-lhe plena e absoluta eficácia também no contexto que a ela mais diz respeito, na ordem jurídica que regula suas relações mais importantes justamente porque são as relações que a tocam mais de perto, isto é, o direito civil.”[15]
Tepedino sustenta que para haver uma constitucionalização do Direito Civil deve-se eliminar do vocabulário do interprete civilista a expressão “carta política” para se referir a Constituição, porque segundo o autor, “suscita uma perigosa leitura que acaba por relegar a Constituição a um programa longínquo de ação, destituindo-a de seu papel unificador do direito privado[16]
A partir do processo de industrialização, que teve seu curso na primeira metade do século XX, bem como os crescentes dos movimentos sociais impulsionadas pelas dificuldades econômicas, que ensejavam uma intervenção do legislador, as Cartas políticas e as grandes constituições do pós-guerra tiveram a introdução de princípios e normas que estabeleciam deveres sociais na atividade econômica privada. As Constituições passam a emergir como diploma disposto a demarcar os limites da autonomia privada, da propriedade e do controle de bens.[17]
O Código Civil passa a perder seu protagonismo no que tange a regulamentação do direito privado, que passa a ser visto não mais numa dualidade estanque entre o direito público e privado, mas como um ramo do ordenamento e como tal passível de regulamentação pela Constituição que passa a assumir um protagonismo no sentido de tornar-se o diploma central dos ordenamentos jurídicos.
Nesse sentido, Maria Celina Bodin de Moraes argumenta que há uma incerteza acerca dos limites do direito público e privado, sustenta que havia relações claramente pré-definidas entre o direito público e o direito privado e que as duas esferas eram “praticamente impermeáveis”[18]. Contudo, devido aos progressos, surgiram incertezas acerca dessas relações entre direito público e privado, a autora argumenta que esses progressos lavaram a disseminações de incerteza acerca dos “parâmetros tradicionais e consolidados, e que vêm propondo a criação de novos valores bem como, em consequência, engendrando novas e acessas controvérsias jurídicas, a ponto de se considerar estabelecido um novo paradigma: o da chamada pós-modernidade.”[19]
Tepedino observa que “o percurso evolutivo dos institutos do direito privado é a demonstração eloquente desse processo.”[20] O protagonismo em torno do sujeito de direito no Código Civil “cede a atenção do legislador especial para com as atividades, seus riscos e impacto social, e para a forma de utilização dos bens disponíveis, de maneira a assegurar resultados sociais pretendidos pelo Estado.”[21]
Essa sistemática é consagrada, no ordenamento jurídico brasileiro, com a promulgação da Constituição de 1988, “que inaugura uma nova fase e um novo papel para o Código Civil, a ser valorado e interpretado com inúmeros diplomas setoriais, cada um deles com vocação O autor conclui sua análise observando que:
A intervenção direta do Estado nas relações de direito privado, por outro lado, não significa um agigantamento do direito público em detrimento do Direito Civil que, dessa forma, perderia espaço, como temem alguns. Muito ao contrário a perspectiva de interpretação civil-constitucional permite que sejam revigorados os institutos do Direito Civil, muitos deles defasados da realidade contemporânea e por isso mesmo relegados ao esquecimento e à ineficácia, repotencializando-os, de molde a torná-los compatíveis com as demandas sociais e econômicas da sociedade atual[22]
Por fim, adverte que a adjetivação do Direito Civil como socializado, constitucionalizado, despatrimonizado deve se tratar em uma palavra que estabelece novos parâmetros para a redefinição de ordem pública, dando ao direito civil uma releitura à luz da Constituição, de maneira a privilegiar os valores não patrimoniais, particularmente a dignidade da pessoa humana, “o desenvolvimento da sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais.”[23]
A análise de Tepedino acerca do Direito Civil-constitucional foi feita sob a égide do Código Civil de 1916. Em 11 de janeiro de 2003, entrou em vigor o novo Código Civil- CC/02-, insta salientar que apesar de ter sido aprovado apenas em 11 de janeiro de 2002, o projeto no qual originou o atual Código Civil é de 1975[24].
Contudo, houve uma mudança significativa entre o Código Civil revogado e o novo Código, principalmente no que tange ao tratamento dado ao companheiro, uma vez que a própria Constituição Federal prevê igualdade entre cônjuge e companheiro e seguindo a lógica do direito civil constitucional o legislador, buscou refletir esse fenômeno no novo Código. Ademais, como dito alhures, o projeto era do ano de 1975, e a sociedade até a entrada em vigor do novo Código passou por profundas mudanças[25], e ainda passa, principalmente quanto as relações atinentes ao direito de família, que devem refletir os fatos sociais percebidos naquela sociedade.
O novo Código Civil, incorporou ao seu corpo legislativo a teoria do direito civil-constitucional, já que o novo diploma passou a prever a função social dos contratos, da empresa e da propriedade, o que ilustra a internalização dos preceitos constitucionais no direito privado.
Destarte, mesmo que o Código Civil de 2002 não tenha observado todas as regras e os preceitos constitucionais inaugurados pela CRFB/1988, cabe a jurisprudência dos Tribunais e principalmente ao Supremo, pois esse ostenta papel de guardião da Constituição, dar interpretação conforme a Constituição as normas de Direito Civil.
E, seguindo a lógica dworkiniana de direito como integridade, o ordenamento nada mais faz do que seguir as regras e parâmetros estabelecidos pela Constituição, configurando verdadeiro exercício de jurisdição balizado nas regras de julgamento previamente estabelecidas pelo legislador.
As transformações as quais passou a sociedade no decorrer do século XX trouxeram reflexões que promoveram substanciais alterações na valoração dos institutos jurídicos, de forma que as Constituições contemporâneas incorporaram esses valores, a exigir-se uma nova interpretação e aplicação da normativa infraconstitucional, tendo-se por paradigma a proteção da dignidade da pessoa humana.
Segundo essa lógica, o ordenamento jurídico brasileiro reconheceu o instituto da multiparentalidade, parentalidade advinda do vínculo bilógico, concomitante com a parentalidade advinda do vínculo socioafetivo, bem como equiparou a sucessão do companheiro do cônjuge, mostrando uma tendência de trazer o princípio do afeto ao centro do direito de família.
- Liberdade de escolha como efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana
Atualmente a liberdade no âmbito da família, conteúdo basilar para a promoção da dignidade da pessoa humana, necessariamente, deve ser compreendida como espaço de atuação individual, a ser respeitado, privilegiando-se, desta forma, a liberdade de “ser” na família.
Em recorte histórico, tem-se que o espaço de liberdade verificado na família atual é bem diferente daquele modelo previsto na família patriarcal. A liberdade e igualdade são elevadas, pela Constituição Federal de 1988, como princípios intrínsecos à relação familiar.
A liberdade torna-se isonômica entre os componentes da família, e é identificada como a possibilidade de exercer escolhas individuais como espaço de realização pessoal. A liberdade é pressuposto inarredável para a construção da identidade pessoal e é condição essencial à igual dignidade familiar.
A liberdade é compreendida como autonomia na realização das escolhas individuais. A liberdade e a igualdade são princípios essenciais na afirmação dos chamados direitos individuais, as quais, atualmente, ponderadas com valores sociais (análise da perspectiva do homem em relação ao seu semelhante), são princípios imanentes à promoção e proteção da igual dignidade social.
As relações afetivas devem ser protegidas pelo Direito como âmbito da liberdade individual, pautada na igualdade, na autonomia individual para exercer suas escolhas.
Deve o Direito contribuir para que se realizem as necessárias transformações na família, ainda que, devido às diferenças sociais, culturais, entre os segmentos da sociedade, se perceba um desnivelamento na constatação e vivência das mudanças.
O Direito sobretudo é uma Ciência Social aplicada e por esse motivo deve estar atento as mudanças sociais, bem como as mudanças relacionadas a longevidade e autonomia e autodeterminação.
Como o CC/02 entrou em vigência após a CRFB/88 não houve necessidade de recepção do novo Código Civil.
Contudo, conforme explanado anteriormente, o projeto no qual culminou com a aprovação do CC/02 data do ano de 1975. E ocorreram diversas mudanças na sociedade, principalmente acerca da concepção do conceito de família[26] e na concepção do companheiro para a sociedade e o ordenamento jurídico.
Bem como na concepção de um direito civil patrimonialista, derrogado pela noção de um Direito Civil existencial no qual preza as relações de afeto e a autonomia da pessoa, que deve ter liberdade em suas escolhas.
O STF provocado a fazer controle de constitucionalidade referente a temática da sucessão de cônjuges e companheiros nos Res nº 878.694 e 646.721251[27], acerca da (in)constitucionalidade do disposto no art. 1790 do CC/02252 a fim de seguir a regra estabelecida pelo legislador constitucional e dar a ele interpretação conforme a sistemática do ordenamento jurídico brasileiro. se posicionou da seguinte maneira:
“A proibição da escolha de regime de bens para os maiores de 70 anos entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso.”
Insta Salientar que a proibição de escolha de regime de bens aos maiores de 70 anos advém de uma visão unicamente patrimonialista do Direito Civil.
Carlos Santiago Nino define a autonomia como a faculdade dos indivíduos de elegerem planos de vida para si mesmos e de poderem perseguir esses planos. Para que a concretização desse plano seja viável, é preciso que o Estado se abstenha de interferir nas escolhas de planos e objetivos de vida que priorizam situações que dizem respeito a escolhas individuais[28].
Dessa forma, quando se busca por meio da autonomia garantir a dignidade da pessoa humana, consubstanciada no direito fundamental da personalidade, um direito existencial, não há afronta aos bens jurídicos amparados pelo Estado, assim, desnecessária se faz a tutela estatal, uma vez que patrimônio é um direito disponível e sofre irradiações do princípio da autônomia da vontade.
A prova de que o afeto e a dignidade humana tem sido o norte para o direito civil, é o fato de que o STF está se debrubaçando sobre as ramificações do afeto na questão patrimonial, uma vez que no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE 1309642), que teve a repercussão geral reconhecida pelo plenário (Tema 1236) se analisa a incosntitucionalidade do art. 1641, II[29] do CC/02 que prevê a obrigatoriedade do regime da separação de bens aos maiores de 70.
Esse fato denota que a noção patrimonialista da família deve sucumbir ao afeto e a liberdade de escolha.
Sendo assim, o ordenamento jurídico brasileiro caminha na direção de deixar de lado a noção patrimonialista e se guiar pelo afeto, lido aqui como mais que um sentimento que permeia a relação famliar, mas verdadeiro princípio que deve ser levado em conta em todas as decisões oriundas das relações familaires.
Presumir que a pessoa maior de 70 anos é incapaz de discernir acerca da melhor destinação do seu patrimônio é etarista[30] e não respeita a autonomia da vontade. O caminho natural para o julgamento do recuso extraordinário deve ter o mesmo desfecho dos Res, qual seja, a inconstitucionalidade da obrigatóriedade dos maiores de 70 anos se casarem em regime de separação legal de bens.
Seja porque já há um parâmetro decisório estabelecido nos Res ,e deve o STF decidir conforme a teoria de direito como integridade e seguir padrões e normas já estabelecidas pelo legislador sem inovar na ordem jurídica, apenas aplicando ao caso concreto as regras já estabelecidas, privilegiando assim a segurança jurídica e a isonomia na resolução dos casos concretos futuros.
Bem como, o fato de que caminhanos no ordenamento jurídico brasileiro para ter como norte das relações familiares o afeto, deixando de lado a visão patrimonialista do direito civil, bem como garantindo autonomia de escolha as pessoas.
Limitar a escolha por um critério puramente etário disvirtua os princípios constitucionais que regem o ordenamento jurídico brasileiro.
O patrimônio é disponível e estando qualquer pessoa em sua plena capacidade civil, ela pode e deve escolher a destinação de seu patrimônio, seja para fins de escolha de regime de bens, seja para fins de doação desse patrimônio, que não deixa de ter assegurada a garantia do mínimo existencial, já que na meação a parte terá no máximo direito a 50% do patrimônio, o que garante a subsitência do indivíduo e a proteção da sua dignidade humana.
- Conclusão
Considerando que a imposição do regime de separação obrigatória de bens para os maiores de 70 anos advém de uma ideia de proteção patrimonial, ideia essa arrigada no ordenamento jurídico antes da promulgação da Constituição Federal de 1988 e que ao longo da vigência da Constituição foi sendo mitigada em favor dos direitos existenciais.
Provocado a decidir sobre casos semelhantes o STF já entendeu pela possibilidade do instituto da multiparentalidade, conforme restou exarado no RE de n° 898060/2016 : “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios".
Bem como sobre a inconstitucionalidade da diferenciação ao tratamento dado aos companheiros e cônjuges na sucessão, pois havia no CC/02 dispositivos que disciplinavam tratamento diferente ao companheiro -art. 1790 do CC/02-, do conferido ao cônjuge no art. 1829 do CC/02, por exemplo, havia legislada a sucessão do cônjuge no art. 1829 do CC/02 e no art. 1790 do CC/02 havia legislada a sucessão do companheiro, isso acabava por gerar tratamento desigual a figuras que a CRFB/88, figura máxima do ordenamento jurídico, previu tratamentos igualitários.
Dessa maneira, o STF foi provocado nos REs nº 878.694 e 646.721251, acerca da (in)constitucionalidade do disposto no art. 1790 do CC/02252 a fim de seguir a regra estabelecida pelo legislador constitucional e dar a ele interpretação conforme a sistemática do ordenamento jurídico brasileiro. O STF ao julgar os REs se posicionou da seguinte maneira:
Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso.[31]
O Ministro Barroso, relator, firmou a seguinte tese acerca do tema: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no artigo 1.829 do CC/02.”
O STF balizou sua decisão na sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, buscou as regras e princípios positivados na CRFB/88 e decidiu pela inconstitucionalidade do art. 1790, pois ele estava em dissonância com o princípio da igualdade ao conferir tratamento diferente ao companheiro na sucessão. O que o STF fez foi aplicar a teoria dworkiniana de direito como integridade para resolver o caso concreto. A Corte buscou as regras e os parâmetros decisórios existentes e deu interpretação conforme a Constituição a norma infraconstitucional.
Desse modo, já há casos concretos semelhantes para julgar a compatibilidade do 1641, II do CC/02, e seguindo a lógica Dworkiniana de direito como integridade e romance em cadeia, o artigo 1641, II, do CC/02 deve ser declarado inconstitucional, uma vez que ele está em dissonância com a Constituição Federal.
Não há razão para se estabelecer essa proteção ao patrimônio do maior de 70 anos, aludida norma colide com o princípio da dupla face da proporcionalidade, já que oferece proteção exacerbada a direitos que não necessitam dela, posto que o patrimônio além de ser disponível, recebe proteção do mínimo existencial, uma vez que uma pessoa só pode dispor de metade do seu patrimônio de forma voluntária, o que garante a dignidade da pessoa humana.
É de salientar que aludida poteção patrimonial é eficaz para que a pessoa tenha sua subsitência garantida, não devendo o Estado proibir a pessoa de escolher com qual regime de bens pretende se casar. Sendo a pessoa plenamente capaz sua escolha deve ser livre baseada na autômia da vontade.
Por tudo exposto, o STF deve reconhecer a insconitucionalidade do artigo 1641, II do CC/02 quando do julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE 1309642).
Referências bibliográficas
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[1] Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora-UFJF
Especialista em direito público e privado pela Escola da Magistratura do Rio de Janeiro- EMERJ
[2]BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 1 da CRFB/88- Brasil Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
[3] Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos;(Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010)
[4] DWORKIN, Ronald. O império do direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 10.
[5] Ibid. p. 272.
[6] DWORKIN, Ronald. O império do direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 276.
[7] Ibid. p.291.
[8] TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Disponível em:
[9] BRASIL. op. cit., nota 2.Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
[10] TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Disponível em:
[11] Ibid.
[12] TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Disponível em:
[13] Ibid.
[14] BODIN DE MORAES, Maria Celina. Constituição e Direito Civil: Tendências. Revista dos Tribunais. vol 779/ 2000. p. 47- 63 set. 2000. Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos. vol. 3 p. 343 - 364. jun. 2011.
[15] Ibid.
[16] TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Disponível em:
[17] Ibid.
[18] BODIN DE MORAES, Maria Celina. Constituição e Direito Civil: Tendências. Revista dos Tribunais. vol 779/ 2000. p. 47- 63 set. 2000. Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos. vol. 3 p. 343 - 364. jun. 2011.
[19] Ibid.
[20] TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Disponível em:
[21] Ibid.
[22] TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Disponível em:
[23] Ibid.
[24] TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Disponível em:
[25] Ibid.
[26] Abandou-se a ideia de família monoparental para a ideia das novas configurações das famílias brasileiras, nuclear, plural, recombinante e atualmente o novo modelo familiar vem sendo chamado, por alguns especialistas em sociologia, de “democrático”. Modelo no qual não comporta mais uma definição rígida acerca do conceito de família, em que imperava a ideia do pátrio poder, entendido este como direitos absolutos do pai em face da criação e educação dos filhos. Esse modelo “democrático” rechaça qualquer ideia de preconceito, desigualdade e homogeneidade no que tange a concepção de família. As transformações familiares foram incorporadas à Constituição Federal de 1988, em que a família passa a ser protegida como instituição pelo papel privilegiado que exerce de promoção crescimento humano, integração solidário-afetiva. Desta forma, a liberdade nas escolhas individuais deve ser respeitada, tendo por parâmetro as regras, que devem ser gerais, a determinar os procedimentos de formação, dissolução do casamento deveres parentais, solidarismo familiar. As relações afetivas devem ser protegidas pelo direito como âmbito da liberdade individual, pautada na igualdade, na autonomia individual para exercer suas escolhas. BODIN DE MORAES Maria Celina. A Família Democrática. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/31.pdf
[27] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercusão geral no Recurso Extraordinário 878.694 Minas Gerais. Disponível em:
95&ext=.pdf>. Acesso em: 24 mai 2019 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 646.721 Rio Grande do Sul. Disponível em:
ginador.jsp?docTP=TP&docID=13579050>. Acesso em: 24 mai 2019.
[28] SÊCO, Thais; SAMPAIO, Kelly Cristine Baião. A autonomia entre público e o privado. No prelo. apud Carlos Santiago Nino.
[29] Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010)
[30] "Etarismo é o preconceito contra pessoas por causa de sua idade. Esse preconceito afeta pessoas jovens, mas é muito mais comum contra pessoas idosas, se manifestando de diversas maneiras, como na forma como desconsideramos a opinião de uma pessoa apenas por ela ser idosa." Disponível em:
3%A7a%20o%20texto%20abaixo!,apenas%20por%20ela%20ser%20idosa. > acesso em 09 de nov. de 2023.
[31] BRASIL. op cit, nota 27.
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