Direito de Família na Mídia
A bigamia
17/07/2005 Fonte: Espaço Vital
O estatuto criminal permite o tráfego entre preceitos que comanda e as regras que presidem a relação familiar, como verdadeira osmose, eis que há comportamentos anti-sociais que ofendem a harmonia das comunidades protegidas pelas normas constitucionais e são ali punidas.
Não se pode fazer, entretanto, uma equivalência linear entre os preceitos penais e a organização familiar, nem entre os princípios informadores da família e do combate ao crime: é que o âmbito criminal é iluminado pelo princípio da legalidade, motivo por que muitos axiomas repressivos não se aplicam à união estável, embora entidade familiar consagrada, assim como os ditados que protegem o cônjuge não se estendem ao companheiro, motivo por que recentes reformas pontuais têm inserido tal igualdade com freqüência.
Entre os delitos que ofendem a dignidade do casamento está a bigamia, que consiste em contrair novas núpcias sem que estivesse dissolvido o casamento anterior, ou celebrar-se outro matrimônio embora já sendo casado.
É bígamo quem realizou novo casamento, sem dissolver o vínculo matrimonial anterior por sentença de invalidação, morte do outro cônjuge, divórcio ou declaração de ausência, sendo considerado cúmplice quem casou com o bígamo sabendo a existência de casamento pretérito.
A lei subentende o ajuste de união e matrimônio entre pessoas de sexo diferente com finalidade de constituir família, o que impede seu endereço à união estável, em vista do princípio da reserva legal, que não admite a existência de crime sem lei anterior que o defina; como também é incabível na relação homossexual, aceita como relação livre, mas entre pessoas de mesmo sexo.
O Código do Império brasileiro, mirando-se no código napoleônico, impunha a pena de trabalhos forçados até seis anos; depois, em 1890, sob o título de poligamia, o ordenamento penal definia o crime entre os cometidos contra a segurança do estado civil, com pena de prisão celular até seis anos, levando a imprecisão do termo a supor que a infração apenas ocorreria depois do segundo casamento (polígamo), defeito que foi corrigido na atual versão do artigo 235, CP.
Uma das pessoas pode estar de boa-fé, seja por desconhecer a situação civil do outro contraente, seja por que imagina que seu matrimônio anterior já se encontre desfeito por invalidação ou divórcio; também não se configura a bigamia se não resulta demonstrado através de prova irretorquível que à época do segundo casamento, o primeiro ainda vigia, prova que deve ser feita pelo órgão acusador, persistindo o casamento vigente até que sua invalidade seja declarada no juízo cível em sentença transitado em julgado.
O casamento é nulo quando contraído por enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos de vida civil ou por violação dos impedimentos (casamento de ascendentes com descendentes, seja o parentesco natural ou civil; casamento entre afins em linha reta; casamento entre o adotante com quem foi cônjuge do adotado; casamento dos irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; casamento entre o adotado e o filho do adotante; matrimônio de pessoas casadas; e casamento do cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte), impedimentos que devem ser opostos, até o momento da celebração, por qualquer pessoa capaz ou declaração do juiz de paz ou oficial de registro que deles tiver conhecimento (CC, artigo 1.522 e §único).
O casamento é anulável de quem não completou a idade mínima para casar, de menor em idade núbil, quando não autorizado por seu representante legal, por vício de vontade, como a coação ou por erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge, do incapaz de consentir ou de manifestar seu consentimento de modo inequívoco, realizado por mandatário, sem que se soubesse da revogação da procuração, e não sobrevindo coabitação entre os cônjuges, e por incompetência da autoridade celebrante (CC, artigo 1.550, I a VI).
O crime não existe se o casamento anterior for declarado nulo ou anulado, cessando desde logo todos os efeitos penais, pois a declaração da nulidade retroage ex tunc, tal como acontece no âmbito civil (CC, artigo 1.562), como também no caso de invalidade do segundo casamento por motivo diverso da bigamia, subsistindo o delito se o casamento anterior foi dissolvido por morte do outro cônjuge.
O casamento religioso que atender às exigências da lei para a validade do casamento civil equipara-se a este, desde que registrado, produzindo efeitos desde sua celebração (CF, artigo 226, § 2º e CC, artigo 1.515), assim ensejando a persecução criminal por bigamia de quem se matrimonie, embora antes tenha realizado casamento eclesiástico com fins civis.
Cuidando-se de casamento inexistente, como alguma solenidade realizada entre pessoas do mesmo sexo ou sem o consentimento de algum celebrante, não há crime a punir, pois não correu matrimônio anterior; a pessoa separada judicialmente não pode contrair matrimônio sem antes divorciar, eis que a sociedade conjugal somente se dissolve pela morte ou divórcio (CC, artigo 1.571, § 1º), e se casar neste estágio comete o delito.
A separação não dissolve o vínculo matrimonial, assim é passível de responsabilidade penal o separado que contrair novo casamento e o divórcio posterior do cônjuge que contraiu segundas núpcias, não constitui motivo que o isente do crime de bigamia, visto como ele não representa nulidade do matrimônio, hipótese em que expressamente deixa de ocorrer o delito.
Diversamente do que prescrevia o antigo credo civil, o novo código passou a admitir a presunção da morte como causa para a dissolução do casamento (CC, artigo 1.571, § 1º; antes, CC/1916, artigo 315, §único); ou seja, antes a ausência do cônjuge, por mais longa que fosse, não importava no desate do vínculo matrimonial, cabendo somente ao parceiro remanescente recorrer ao divórcio direto baseado na separação de fato, quando passou a existir na legislação, sem buscar a presunção da ausência que exigia, para a configuração da morte, um prazo de dez anos (CPC, artigo 1.167, II).
Os filhos havidos do casamento do bígamo, por óbvio, são tidos como legítimos, sem qualquer consideração à boa fé do outro cônjuge, em vista de sempre se aplicarem a eles os efeitos civis do casamento (CC, artigo 1.561 e § 1°).
Como se observa, embora delito com pouca repercussão na estatística criminal, tanto que há projeto de expurgá-lo do código, tem insinuantes reflexos, inclusive no direito sucessório quando faleça o bígamo ou sua esposa, antes de dissolvida a sociedade conjugal.
José Carlos Teixeira Giorgis, desembargador do TJRS(*) E.mail: jgiorgis@tj.rs.gov.br