Direito de Família na Mídia
Entrevista: Lídia Reis de Almeida Prado
27/02/2005 Fonte: Boletim do IBDFAM nº 30Conhecimento Compartilhado
O conhecimento interdisciplinar já é uma exigência do mercado para o profissional de Direito. Esta é a opinião da psicóloga Lídia Reis de Almeida Prado, membro da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM e professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde ministra, em nível de pós-graduação, um curso sobre Interdisciplinaridade e Direito.
Para Lídia, o próprio Judiciário já demonstra necessidade de maior qualificação e preparo dos seus profissionais. E a interdisciplinaridade seria um caminho natural, já aberto pelo meio acadêmico, visando ao enriquecimento profissional, através de contribuições das Antropologia, Sociologia, Axiologia; Ética e Psicologia, especialmente.
Mestre e doutora em Direito, Lídia Reis de Almeida Prado é autora do livro "O juiz e a emoção - Aspectos da lógica da decisão judicial", pela Editora Millenium. Nessa entrevista, ela apresenta algumas considerações sobre a interdisciplinaridade no Brasil.
O que seria, exatamente, a interdisciplina?
A ênfase dada ao método científico e ao pensamento racional, estendida para as ciências ditas humanas, gerou uma dificuldade de compreensão do mundo. Fala-se que o homem, que aprendeu a dissecar o objeto de sua observação para entendê-lo, tornou-se um especialista em partes, mas ignorante em relação à totalidade. Nesse universo inóspito, as disciplinas foram se fragmentando, fato que pode ser encarado como símbolo da fragmentação da realidade e do surgimento de uma inteligência esquizofrênica, que impede um conhecimento abrangente do mundo.
Para o entendimento desse mundo, vazio de valores, novas abordagens procuram superar o antagonismo entre conhecimento e objeto a ser conhecido. Dentre essas abordagens, surgiu a interdisciplinaridade, que é considerada como a mais recente tendência da teoria do conhecimento.Pode-se dizer que os trabalhos interdisciplinares expressam, além de uma visão de homem (como um ser integrado à vida), a importância do conhecimento relacionado com a totalidade.
Em que a interdisciplina se diferencia da multidisciplina e da transdisciplina?
O que se designa por interdisciplinaridade é uma conduta intelectual que ultrapassa os hábitos e os programas de ensino estabelecidos. Em resumo: a atitude interdisciplinar não seria apenas resultado de uma simples síntese, mas de sínteses imaginativas e ousadas. Situando o conhecimento interdisciplinar no contexto das pesquisas orientadas, Hilton Japiassu conclui que ele constitui instrumento de reorganização do meio científico, pois esse saber toma de empréstimo às diferentes disciplinas os respectivos esquemas conceituais de análise, submete-os à comparação e a julgamento e, por fim, promove uma mútua integração.
Por isso, pode-se dizer que na interdisciplinaridade não há o intuito de se criar uma nova disciplina, mas apenas uma integração metodológica das diversas disciplinas no estudo de um fenômeno. Isso não ocorre na multidisciplinaridade, que é uma justaposição de disciplinas, sem vínculo metodológico, com o objetivo de estudar um determinado fenômeno.
A transdisciplina estaria além da interdisciplina?
Em 1970, a Organização Econômica dos Países Desenvolvidos, OCDE, organizou em Nice (França) um seminário de interdisciplinaridade, que elaborou um documento com uma sistematização do assunto. Nesse evento, Piaget lançou a palavra transdisciplinaridade, para designar um estágio posterior à interdisciplinaridade. Na transdisciplinaridade, as interações entre as disciplinas aconteceriam num espaço sem fronteiras disciplinares, ainda existentes no estágio interdisciplinar..
Quando o movimento interdisciplinar chegou ao Brasil?
No Brasil, pode-se dizer que o lançamento do movimento interdisciplinar aconteceu em 1976, com o a publicação de Interdisciplinaridade e Patologia do Saber, livro de Hilton Japiassu conhecido internacionalmente. Essa obra ainda é a mais importante escrita sobre o assunto em nosso país, onde merecem destaque, entre outros, os nomes de Pierre Weil e de Ivany Fazenda. O que é mais atual, entre nós, é a receptividade que o assunto vem tendo nos meios acadêmicos, até com certo exagero e toques de modismo. Há uma importante faculdade em São Paulo, recém-constituída, cujo currículo praticamente só contém matérias interdisciplinares.
A interdisciplina é um tema recorrente no meio acadêmico. Mas como esta proposta de produção e aplicação do conhecimento pode alcançar aqueles que já deixaram os bancos das universidades? Estes profissionais estarão menos qualificados do que os que se alimentam da interdisciplina?
Aos poucos, começa a haver uma seleção natural feita pelo próprio mercado de trabalho. Ao escolherem seus profissionais, ao lado do saber especializado -- que obviamente, não pode ser deixado de lado -- e do conhecimento de línguas estrangeiras e de informática, as empresas começam a exigir profissionais com uma visão generalista tanto da profissão como do mundo. O que estou falando não constitui nenhuma novidade, pois o fato já foi bastante noticiado na imprensa, tendo até sido capa de revistas semanais muito populares.
Portanto, os profissionais já formados, até por sobrevivência, vão ser obrigados a se adequarem a esta realidade.
O que significa "dar um tratamento interdisciplinar" a um tema jurídico, em especial na área de Direito de Família e de Sucessões"?
O enfoque interdisciplinar pressupõe profundidade e compromisso com uma pesquisa que conduza à cópula entre esquemas conceituais de diferentes disciplinas. Isso demanda muito estudo,coragem, humildade e uma certa dose de criatividade. Isso porque é muito mais fácil e seguro ser especialista. Mas o resultado é sempre proveitoso, pois implica uma reorganização na produção do saber, possibilitando o encontro entre diferentes pontos de vista, o que pode levar à melhor compreensão da realidade. No que se refere ao Direito de Família e de Sucessões, além da abordagem psicológica, ele poderá se beneficiar com a contribuição da Antropologia Jurídica, da Sociologia Jurídica, da Axiologia (estudo dos valores), da Ética, entre outras ciências humanas.
É possível perceber mudanças na postura dos operadores do Direito com a difusão da interdisciplinaridade?
Eu acho que essa mudança já está ocorrendo até mesmo dentro do próprio Judiciário, Há dias li um texto do desembargador Alberto Silva Franco, divulgado em um boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais de São Paulo, em que ele dizia que a reforma do Judiciário de nada adiantará se não houver uma profunda reformulação do ensino jurídico; se não ocorrer a mudança radical da forma de recrutamento, da formação e da seleção do juiz; se não forem dominadas as resistência do juiz ao conhecimento multidisciplinar; se não tiver a compreensão humana dos processos submetidos a julgamento.
Veja, essa afirmação, embora específica para o Judiciário, apresenta uma profunda ligação com a proposta interdisciplinar em relação aos demais operadores do Direito.
Há pouco, foi veiculado na impressa o currículo do novo canus uma importante Universidade de capital São Paulo, a USPLeste. Pois bem, grande parte das disciplinas componentes desse currículo era de índole interdisciplinar.
O IBDFAM tem uma proposta interdisciplinar. Para tanto, conta com uma Comissão que se propõe trabalhar especialmente a partir deste eixo. Até o momento, o diálogo tem sido feito especialmente com a Psicanálise, a Sociologia, a Psicologia. Seria possível ao Direito de Família dialogar com qualquer outra área, ou, pela sua especificidade, há aquelas com as quais o Direito de Família naturalmente comporá um novo conhecimento?
Não só é possível que haja um diálogo entre o Direito de Família e outras disciplinas-- o que obviamente é desejável-mas que exista também a diminuição de distância teórica e uma síntese entre ele e essas disciplinas. Isso porque, penso que o mais importante na interdisciplinaridade é a integração das disciplinas no aspecto metodológico, possibilitando-se, assim, a melhor compreensão da realidade.
Obras dos autores citados
Hilton Japiassu:
Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro, Imago, 1976
As paixões da ciência,São Paulo, Letras &Letras,1991
editoraeletronica.net (dois artigos: A crise da razão no Ocidente e Mal estar nas ciências humanas)
Ivany Fazenda:
Interdisciplinaridade, um projeto em parceria. São Paulo, Loyola, 1995
Interdisciplinaridade, história, teoria e pesquisa. São Paulo, Papirus, 1995
Georges Gusdorf:
"Projet de recherche interdisciplinaire dans les sciences humaines". In Les sciences de l homme sont des sciences humaines? Univ. de Strasbourg, 1967