Direito de Família na Mídia
Justiça de Goiás aprova a audiência especializada para ouvir crianças
22/07/2007 Fonte: TJGOCom a aprovação na última terça-feira (17) na Câmara dos Deputados do projeto de lei que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente e determina que os depoimentos ou inquirições de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual sejam colhidos apenas uma vez e gravados para uso futuro dos juízes, além de estabelecer que o procedimento seja feito em local diverso da sala de audiências e intermediado por um profissional especializado, Goiás passa a despontar como referência no País. Atualmente, o Estado é o 2º a ter uma sala de inquirição especializada em oitiva de crianças e adolescentes. A primeira experiência brasileira se deu no Rio Grande do Sul e teve como ponto de partida a monografia da promotora de Justiça Veleda Dobke, publicada no livro Abuso Sexual: A Inquirição das Crianças. Uma Abordagem Multidisciplinar. A autora analisa dificuldades e erros de juízes nesse gênero de depoimento, chegando à conclusão de que a capacitação técnico jurídica dos operadores de direito não é suficiente para realizar bem esse ato processual.
A primeira audiência na capital, cuja sala (936) fica localizada no 9º andar do Fórum de Goiânia, foi realizada no dia 19 de junho e as próximas estão agendadas para os dias 28 de agosto, 3 de outubro e 9 de novembro deste ano. A sala - com vários brinquedos e decoração diferenciada - é equipada com câmera, intercomunicadores e equipamentos de informática de tecnologia avançada e suas atividades são desenvolvidas por profissionais especializados, como psicólogos e assistentes sociais, para colher depoimentos de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, lotados na Divisão de Desenvolvimento Humano do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO). Simultaneamente é efetivada a gravação de som e imagem em CD, que é anexado ao processo judicial.
Enquanto a vítima conversa com uma assistente social ou psicóloga na sala especial utilizando equipamentos audiovisuais, juiz, promotor e advogado de defesa assistem à entrevista judicial pela televisão. As perguntas são feitas por intermédio da profissional da equipe psicossocial, seguindo uma metodologia especialmente elaborada para esse tipo de depoimento. Juiz, promotor e defensor seguem o interrogatório pelo sistema, tendo a possibilidade de transmitir perguntas ao técnico que estiver trabalhando como interlocutor.
O objetivo principal é a redução do dano durante a produção de provas em processos judiciais, nos quais a criança ou o adolescente é vítima ou testemunha. Isso evita que a vítima tenha de reviver a agressão devido à repetição dos fatos, em que é obrigada a relembrar os acontecimentos ou ser exposta a situações de constrangimento durante o curso do processo para a apuração e responsabilização do autor da violência sexual.
A sala está disponível todos os dias pela manhã, às segundas-feiras à tarde e às terças e sextas-feiras após as 16 horas. A data e o horário da audiência devem ser agendados com antecedência através do ramal 2672 e qualquer correspondência destinada à equipe que atua na sala de audiência deve ser encaminhada à Divisão de Desenvolvimento Humano, situada na sala 1200, no 12º andar do Fórum de Goiânia, em caráter confidencial. Os depoimentos são todos gravados em áudio e vídeo e que a palavra da vítima é valorizada bem como a inquirição respeita sua condição de pessoa em desenvolvimento.
Segundo a coordenadora Márcia Bezerra Maya Faiad, apesar de o projeto ainda ter de ser submetido a análise do Senado Federal a aprovação pela Câmara dos Deputados já significa um grande avanço na luta pela responsabilização efetiva dos agressores e proteção das crianças vítimas desse tipo de violência. A exemplo do Rio Grande do Sul, que possui uma sala na capital e 10 no interior, Márcia adiantou que já existem estudos no sentido de que o projeto seja expandido para atender o interior do Estado. Ela afirmou que tem recebido várias das demais comarcas como a de Trindade e que o diretor do Foro de Goiânia, Carlos Alberto França, se mostrou "sensível, aberto e receptivo" para atender aos pedidos.
Ao presidir a primeira audiência na sala especial, a juíza Maria das Graças Carneiro Requi, da 10ª Vara Criminal de Goiânia, classificou a experiência como "nova, interessante e altamente positiva". Para ela, o excesso de formalismos constantes numa sala de audiências comum contribui para que a criança abusada sexualmente se sinta intimidada e envergonhada o que, a seu ver, dificulta o depoimento. "Apesar de nunca ter tido problemas com as crianças que ouvi na sala de audiências comum durante meu tempo à frente da vara criminal, é preciso reconhecer que a falta de estrutura e ambiente adequados contribuem para inibir a criança que já está traumatizada com a violência. Ouvir uma criança vítima de abuso sexual não é tarefa fácil, ainda mais em juízo. Nesses casos, muitas vezes elas são ameaçadas física e psicologicamente. É necessário preparo técnico emocional e muita sensibilidade", disse.
Para a magistrada, a finalidade da sala é proteger a vítima de violência de maiores traumas, uma vez que, na maioria dos casos, ela fica exposta por ser obrigada a repetir a mesma história várias vezes. "A iniciativa da implantação da sala é louvável. Goiás foi um dos pioneiros nesse sentido e o projeto tem sido muito bem aceito entre os juízes e operadores do Direito", elogiou.
Metodologia
Países como França, Espanha e Argentina também têm práticas semelhantes nessa área, que já foram inclusive incorporadas à legislação. Nesse modelo, a inquirição é feita em três etapas. Na primeira delas, chamada de "acolhimento inicial", a criança e o responsável chegam meia hora antes da audiência e são recebidos pela psicóloga ou assistente social, para evitar um encontro indesejado com o réu, o que pode prejudicar o depoimento e traumatizar a vítima. A técnica inicia um processo de aproximação, abordando assuntos diversos da vida dela, para deixá-la à vontade. Conversa também com o acompanhante, nomeado de "pessoa de confiança", que normalmente é a mãe, para saber sobre a situação social e psicológica da criança. Tudo isso dentro de uma sala que se diferencia do ambiente do fórum, por ter brinquedos e outras coisas. A profissional passa então a explicar ao depoente, sempre numa linguagem acessível ao estágio de desenvolvimento em que ele se encontra, o que está fazendo ali e como vai ser a audiência. Leva-o para conhecer o lugar onde os adultos estarão acompanhando o depoimento através dos equipamentos de som e imagem. Nesse momento, também questiona se ele quer que o suposto agressor saia da sala de audiência, para não assistir ao seu depoimento ou se ele pode ficar. Por fim, procura saber quais as palavras utilizadas pela própria criança para se referir aos genitais feminino e masculino para, no momento da inquirição, ter certeza de que está sendo clara, compartilhando do vocabulário infantil específico.
Na segunda etapa, a do depoimento em si, são abordados os fatos contidos no processo. Nesse momento o profissional da equipe psicossocial procura ajudar a criança a relatar o ocorrido, utilizando diferentes tipos de pergunta, com preferência às questões abertas, para que ela fale mais espontaneamente sobre o assunto, sem induzi-la a nada. O juiz passa a fazer perguntas, seguido do promotor e do advogado de defesa, todas intermediadas pelo técnico, que vai adequando-as ao universo infanto-juvenil. Depois de transcrito, o depoimento é juntado aos autos do processo.
Nesse processo, o papel da assistente social ou psicóloga durante a audiência é de facilitar o depoimento da criança, de ajudá-la a ficar mais à vontade para falar sobre assuntos constrangedores para ela, numa postura de cuidado e acolhimento. A capacitação de todos os envolvidos - juízes, promotores, advogados, assistentes sociais e psicólogos – é considerada fundamental. Saber da vergonha, da demora para revelar essa situação, das ameaças físicas e psicológicas, da culpa por ter participado, do medo de não ser acreditada e de ser punida, entre outras coisas, ou seja, conhecer a dinâmica do abuso sexual e suas características particulares, não só melhora a qualidade da prova como também ajuda a proteger a vítima e restaurar a sua dignidade.