Direito de Família na Mídia
STF deve respeitar Congresso Nacional e não recriar contribuição sindical.
05/06/2018 Fonte: Granadeiro GuimarãesO apego ao passado é algo que impressiona particularmente no Direito Coletivo do Trabalho brasileiro.
A Lei 13.467/2017, sobre a reforma trabalhista, tornou a contribuição sindical prevista em lei opcional, ou seja, facultativa, passando a ser devida apenas pelos empregados, trabalhadores e empregadores que assim autorizarem prévia e expressamente[1].
Discute-se, entretanto, se essa modificação seria válida, ou seja, constitucional.
As contribuições (receitas) sindicais em sentido amplo abrangem a contribuição sindical prevista em lei, a contribuição confederativa, a contribuição assistencial e a mensalidade sindical.
A contribuição sindical prevista em lei foi reconhecida e recepcionada pela Constituição Federal de 1988, como se observa em seu artigo 8º, inciso IV, parte final.
A referida contribuição sindical, anteriormente conhecida como “imposto sindical”, é disciplinada nos arts. 578 e seguintes da CLT.
Quando obrigatória, a sua natureza jurídica era tributária, conforme o artigo 149, caput, da Constituição da República, por se tratar de contribuição de interesse das categorias profissionais e econômicas, como confirmava o artigo 217, inciso I, do Código Tributário Nacional.
Essa contribuição sindical prevista em lei, quando era compulsória, acarretava evidente restrição à liberdade sindical, sendo incompatível com a Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho, uma vez que era devida independentemente de manifestação de vontade ou concordância do trabalhador ou empregador, bem como de filiação ao ente sindical.
O artigo 7º da Lei 11.648/2008 dispõe que os artigos 578 a 610 da CLT vigorarão até que a lei venha a disciplinar a contribuição negocial, vinculada ao exercício efetivo da negociação coletiva e à aprovação em assembleia geral da categoria. Essa contribuição negocial, entretanto, ainda não foi instituída.
Com a Lei 13.567/2017, a contribuição sindical prevista em lei deixou de ter natureza tributária, por não ser mais uma prestação compulsória (artigo 3º do Código Tributário Nacional), passando a ter natureza preponderantemente privada, embora de certa forma atípica ou sui generis.
Esclareça-se que um tributo, ainda que anteriormente arrolado e previsto no sistema constitucional e infraconstitucional, pode, de forma válida, deixar de existir no ordenamento jurídico, em razão de modificação legislativa, como ocorreu no caso, em que houve a alteração da própria natureza do instituto.
De todo modo, não se pode dizer que se trata de prestação exclusivamente privada, uma vez que parte dos valores da contribuição sindical prevista em lei, mesmo facultativa, ainda é direcionada ao poder público, ou seja, destinada à “Conta Especial Emprego e Salário” (artigo 589 da CLT), administrada pelo Ministério do Trabalho, pois os seus valores integram os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador[2].
De acordo com o artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, incluído pela Emenda Constitucional 95/2016, a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.
Entretanto, a modificação da natureza jurídica da contribuição sindical, ao deixar de ser compulsória, em consonância com o princípio da liberdade sindical, não significa, em termos técnicos, renúncia de receita propriamente.
Conforme o artigo 14, parágrafo 1º, da Lei Complementar 101/2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, a renúncia de receita compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.
A anistia abrange exclusivamente as infrações cometidas anteriormente à vigência da lei que a concede (artigo 180 do Código Tributário Nacional). A remissão extingue o crédito tributário (artigo 156, inciso IV, do Código Tributário Nacional), sabendo-se que a lei pode autorizar a autoridade administrativa a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou parcial do crédito tributário, atendendo às situações previstas no artigo 172 do Código Tributário Nacional. A isenção, ainda quando prevista em contrato, é sempre decorrente de lei que especifique as condições e requisitos exigidos para a sua concessão, os tributos a que se aplica e, sendo o caso, o prazo de sua duração (artigo 176 do Código Tributário Nacional).
Na hipótese em estudo, não se observa nenhuma dessas figuras, mas apenas, como mencionado, a evolução do sistema jurídico, por meio de mudança legislativa, gerando a modificação da natureza da contribuição sindical, que deixou de ser obrigatória e, assim, perdeu o caráter público, tendo em vista que as entidades sindicais, no Estado Democrático de Direito, são entes de Direito Privado, não podendo ser mantidas com recursos fiscais.
Não se trata, portanto, de isenção, muito menos de “concessão de isenção em caráter não geral”, que dizem respeito a tributos, uma vez que a contribuição sindical simplesmente deixou de ter natureza tributária.
Ainda que assim não fosse, por qualquer ângulo, a exigência formal mencionada poderia ser considerada suprida pela lei orçamentária anual, pois, segundo o artigo 165, parágrafo 6º, da Constituição da República, o projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia. Nesse sentido, a Lei 13.587/2018 estima a receita e fixa a despesa da União para o exercício financeiro de 2018.
O artigo 146, inciso III, a, da Constituição da República, determina que cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados na Constituição Federal de 1988, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes.
Essa previsão, entretanto, não incide ao caso em estudo, pois a contribuição sindical é disciplinada pela Consolidação das Leis do Trabalho, que tem hierarquia de lei ordinária (em harmonia com o artigo 8º, inciso IV, parte final, da Constituição da República), podendo ser modificada pela Lei 13.467/2017, mais especificamente quanto à sua natureza jurídica, ao deixar de ser obrigatória.
Não se trata mais, assim, de tributo, afastando por completo qualquer exigência de lei complementar sobre normas gerais em matéria tributária e definição de tributos.
É certo que no sistema sindical brasileiro ainda permanecem outras restrições à liberdade sindical, quais sejam: unicidade sindical, base territorial mínima do sindicato de um município e adoção do critério de categoria (artigo 8º, inciso II, da Constituição Federal de 1988).
Não obstante, a alteração dessas previsões exige emenda constitucional, enquanto a obrigatoriedade da contribuição sindical, diversamente, por ter natureza infraconstitucional, pode ser realizada por meio de modificação legislativa, ou seja, na CLT, como ocorreu no caso da Lei 13.467/2017.
Logo, como é evidente, não se pode condicionar a eliminação da obrigatoriedade da contribuição sindical à modificação desses outros aspectos relativos ao sistema sindical brasileiro.
A contribuição sindical obrigatória, com natureza de tributo, em verdade, contraria não apenas o princípio da liberdade sindical, mas a própria essência do Estado Democrático de Direito, ao estabelecer o custeio das entidades sindicais, que têm natureza privada, bem como das atividades sindicais, realizadas no plano da sociedade civil, por meio de receitas de natureza pública, o que somente é admitido em regimes não democráticos, autoritários e corporativistas, em que os sindicatos são controlados e dependentes do poder público, exercendo funções por ele delegadas.
Não há como se argumentar, ainda, que a exclusão da obrigatoriedade quanto à contribuição sindical ocorreu sem o prévio e amplo debate.
Em verdade, trata-se de questão antiga, constantemente debatida nos planos social, econômico, jurídico e político, sabendo-se que essa anomalia do sistema sindical brasileiro já deveria ter sido corrigida há muito tempo (na linha do ocorrido em diversos países que se redemocratizaram), como ressaltado constantemente pela doutrina do Direito Coletivo do Trabalho à luz da liberdade sindical.
Não há qualquer exigência constitucional de se estabelecer um regime de transição para a exclusão da obrigatoriedade da contribuição sindical, mesmo porque as entidades sindicais, na realidade, já deveriam ter se preparado para esse cenário bem antes. A Lei 13.467/2017, de todo modo, sendo de julho de 2017, só entrou em vigor depois de 120 dias de sua publicação oficial.
Note-se, ademais, que a contribuição sindical, em si, não foi extinta, nem se deixou as organizações sindicais sem qualquer possibilidade de obter recursos financeiros para as suas atividades, pois apenas foi excluído o seu caráter compulsório, pelas razões indicadas, sinalizando às entidades sindicais a necessidade de atuação com efetiva legitimidade para viabilizar a permanência no sistema, devendo demonstrar representatividade apta a elevar o quadro de associados e de pessoas que queiram ou autorizem a contribuição. Além disso, há outras modalidades de contribuições sindicais que não foram objeto de alteração.
Espera-se, assim, que o Supremo Tribunal Federal respeite a modificação legislativa em questão, aprovada pelo Congresso Nacional, e não restabeleça, por meio de decisão judicial, a herança autoritária, antidemocrática e corporativista da ultrapassada obrigatoriedade da contribuição sindical em nosso sistema.
[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Reforma trabalhista. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 241-245.
[2] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 1306.
(*) Gustavo Filipe Barbosa Garcia é livre-docente e doutor pela Faculdade de Direito da USP, pós-doutor e especialista em Direito pela Universidad de Sevilla, professor, advogado e membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e membro pesquisador do IBDSCJ. Foi juiz, procurador e auditor fiscal do Trabalho.