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Qual é o prazo prescricional da responsabilidade contratual?
30/05/2017 Fonte: ConjurNas últimas três semanas[1], foram analisados os fundamentos jurídicos que levaram recente decisão do Superior Tribunal de Justiça[2] a afirmar a prescrição trienal da pretensão à responsabilidade contratual, à diferença do que a corte vinha a decidir no último decênio. Na coluna de hoje, última dedicada ao tema,será abordado o critério axiológico empregado pelo aresto.
A desatenção ao critério valorativo é pecado particularmente grave na interpretação de um Código Civil cuja filosofia de base assenta-se na correlação entre fato e valor como pressupostos da norma jurídica.
No Direito privado comum brasileiro, a responsabilidade negocial é tratada pelo Código Civil de maneira distinta da responsabilidade extracontratual. A razão é simples: a violação a direito absoluto e o inadimplemento de um direito de crédito são fontes das obrigações que não se confundem nem na tradição seguida por nosso Direito[3], nem na natureza das coisas, noção cuja importância está em conexão com a exigência primária de justiça de tratar igualmente aquilo que é igual e desigualmente aquilo que é desigual, exigindo ao juiz que “diferencie adequadamente[4]”.
Na responsabilidade civil extracontratual protegem-se bens jurídicos gerais, em atenção ao comando neminem laedere. O contato entre ofensor e ofendido tende a ser efêmero, surgindo, no mais das vezes, de uma circunstância fortuita, não resultante de um escopo compartilhado pelos sujeitos envolvidos de regrarem seus mútuos interesses patrimoniais. O contato entre vítima e lesante, ademais, surgindo com o dano e em razão do dano, esvai-se tão logo a reparação tenha lugar. A relação obrigacional surgida é, pois, pontual. O fundamento dessa espécie de responsabilidade reside, basicamente, numa reprovação ética à injusta violação de direitos alheios derivada de uma falta de diligência, lato sensu compreendida.
Diversamente, na responsabilidade negocial, a relação entre os sujeitos se protrai no tempo e costuma decorrer de uma sucessão de condutas voltadas à obtenção do fim comum, voluntariamente buscado pelos que se colocam como partes de um negócio jurídico, correspondendo o escopo ao adimplemento do pactuado[5]. A violação que a norma impositiva do dever de indenizar tem em conta é a de um direito de crédito. As relações derivadas de um negócio jurídico, ademais, podem se estender longamente no tempo, gerando, em razão de sua duração, um grau de pessoalidade no vínculo e uma confiança qualificada entre as partes. Basicamente, há (embora em escalas diversas conforme a espécie contratual em causa), um crédito de confiança a ligar os contraentes, de modo que o dever de indenizar traduz a reprovação a um atentado contra determinada relação especial de confiança legítima existente entre as partes.
Do ponto de vista eminentemente pragmático, não são poucos os casos em que, havendo conflito entre as partes em razão de alegações de incumprimento contratual, estas se põem a negociar, a fim de evitar anos de brigas nos tribunais. Quando o prazo é mais longo, terão as partes mais tempo e tranquilidade para dedicar-se a uma negociação complexa.Em situação diversa, em face de um dano produzido no âmbito extracontratual, sendo pontual o contato entre o lesante e sua vítima, não há, como regra, interesse em manter a relação interpessoal, de modo que o prazo prescricional pode perfeitamente ajustar-se à exiguidade temporal.
No que toca ao regime jurídico, as diferenças são muitas e podem ser encontradas na disciplina distinta que uma e outra espécie de responsabilidade reservam aos seguintes temas: a) capacidade das partes; b) ônus da prova; c) avaliação da culpa; d) importância dos graus de culpa; e) termo inicial para fixar o ressarcimento; e f) possibilidade de disciplinar consensualmente a extensão do dano e de excluir a obrigação de reparar.
Da mesma forma que o Direito brasileiro, outros importantes ordenamentos, como os da Itália, Espanha e Portugal, reconhecem a distinção entre as duas modalidades de responsabilidade e preveem prazos prescricionais distintos para o exercício dos direitos lastreados em uma e outra fonte das obrigações[6].
Não se compreende, desse modo, como a previsão de regras diferentes para disciplinar institutos distintos e destinados a tutelar necessidades práticas tão diversas poderia violar o princípio da isonomia previsto no artigo 5º, caput, da Constituição da República, como afirma o julgado, forte na lição do jurista que cita[7]. A dicotomia entre responsabilidade contratual e extracontratual é tradicional e encontra abrigo na legislação brasileira. Seu reflexo na disciplina da prescrição deve, assim, ser respeitado.
A segurança jurídica passa pela correta aplicação das regras do ordenamento e pela acurada atenção às múltiplas distinções que permeiam os institutos jurídicos e implica, também, uma linha de coerência decisória que, ao menos tendencialmente, afaste mudanças bruscas de orientação, em atenção ao princípio da confiança do cidadão e na continuidade da jurisprudência[8], já que da instabilidade decisória resulta grande abalo para a vida jurídica da comunidade[9].
Durante dez anos, o Superior Tribunal de Justiça firmou orientação majoritária no sentido de que a responsabilidade contratual está sujeita à prescrição decenal constante do artigo 205 do Código Civil. Para atender o direito e garantia fundamental da segurança jurídica aos jurisdicionados (artigo 5º, caput, da Constituição Federal), o Superior Tribunal de Justiça tem autovinculação aos seus próprios precedentes[10], só se justificando a alteração quando, para tanto, houver fundadas razões, apresentando-se a mudança do entendimento como via para a melhor conjugação entre o Direito e a realidade[11].
No Direito brasileiro, a apreciação das regras pertinentes evidencia que, à diferença da responsabilidade extracontratual, o prazo prescricional geral para a responsabilidade contratual é de dez anos, conforme disposto na regra constante do artigo 205 do Código Civil. Substituí-lo pelo prazo trienal, aplainando em um mesmo molde diferentes espécies de danos, provindos de diferentes fatos e cujas consequências são regidas por diferentes valores e regimes, não atende às diretrizes que travejam o Código Civil, razão pela qual a viragem jurisprudencial pretendida pelo recente aresto do Superior Tribunal de Justiça não tem razão de ser.
[1] O estudo completo dos autores a propósito tem o título de “Responsabilidade contratual: prazo prescricional de 10 anos” e se encontra na Revista dos Tribunais 979/215-240. A primeira, a segunda e a terceira parte foram publicadas neste Boletim Conjur em 8, 15 e 22 de maio.
[2] REsp 1.281.594/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. j. 22.11.2016.
[3]Grosso, Giuseppe. Il sistema romano dei contratti. 3. ed. Torino: Giappichelli, 1963, p. 3 e ss; Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 3. ed., 2. reimp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, t. XXII p. 53.
[4]Nesse sentido: LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Trad. Portuguesa de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 594.
[5]Martins-Costa, Judith. Comentários ao novo Código Civil.Do inadimplemento das obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. V, t. II. p. 160-162.
[6] Arts. 2.946 e 2.947 do Código Civil italiano; arts. 1.964 e 1.968 do Código Civil espanhol; arts. 309 e 498 do Código Civil português.
[7] “A propósito, o Prof. Gustavo Tepedino [...] leciona que não se justificam os argumentos trazidos pela doutrina e jurisprudência para aplicação diferenciada do prazo geral decenal às hipóteses de reparação civil derivada de inadimplemento contratual em detrimento do lapso trienal previsto no inciso V do § 3º do art. 206 do Código Civil de 2002, que se destina, em respeito ao princípio constitucional da igualdade (art. 5º, II, da CF/88), a todas as pretensões de reparação civil, sejam decorrentes de responsabilidade extracontratual, seja de responsabilidade contratual, sempre que não houver previsão legal específica” (REsp 1.281.594/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. J. em 22.11.2016).
[8] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Trad. Portuguesa de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 443.
[9]Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 151-152.
[10] ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 640-641.
[11] LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Trad. Portuguesa de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 442-443.