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Religião, intolerância e guarda: até onde a Justiça deve intervir?
Assegurada pela Constituição Federal, liberdade de consciência de crença é considerada inviolável e garante o livre exercício de cultos religiosos. Contudo, casos recentes acendem uma discussão sobre a perda da guarda de crianças por motivos religiosos sob duas óticas: o afastamento de filhos em menoridade do seio familiar em função dos valores religiosos do guardião e a liberdade religiosa da criança diante das crenças de seus pais.
Nos últimos anos, alguns casos repercutiram na mídia e chamam atenção para a intolerância religiosa nas relações familiares, como destaca o advogado Gustavo Tepedino, presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da Família do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. "São dramas que estão longe de serem casos isolados e revelam um problema social antigo, que chega às portas do Judiciário chamando a atenção para uma necessária discussão", comenta.
Uma decisão recente em Minas Gerais, conforme lembra Tepedino, determinou a perda da guarda de uma criança de 14 anos, em que se entendeu que a mãe teria violado o direito da filha à liberdade religiosa por, supostamente, obrigá-la a participar de cultos de sua religião. Segundo o advogado, mecanismos legais como o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, o Código Civil e a Constituição Federal asseguram aos pais o direito de definir a educação de seus filhos, o que inclui a orientação e transmissão de valores que acharem adequados. No entanto, isto não deve desconsiderar os interesses das crianças e adolescentes.
"Impedir que os responsáveis transmitam os ideais por eles abraçados, resultando, inclusive, em perda da guarda, sem subsídio concreto que indique violação aos direitos do menor, pode ocasionar grave violação aos fundamentos da República, afrontando diretamente o art. 5º, inciso VI da Constituição Federal", ressalta o advogado, que endossa que o Poder Judiciário não deve encobrir qualquer espécie de discriminação contra grupos em particular que alimentem reminiscências de segregação e marginalização sociais.
Direito à liberdade religiosa de crianças e adolescentes
Um outro ponto que também não deve ser desconsiderado sobre o direito à liberdade religiosa de crianças e adolescentes é a capacidade de o menor decidir sua crença e culto. "A cada dia que passa se amplia o reconhecimento da capacidade da criança e do adolescente para realizar escolhas livres e responsáveis. Por isso, há que se privilegiar sua capacidade decisional, especialmente no que tange a aspectos existenciais", defende o advogado.
Segundo Tepedino, as manifestações do Judiciário sobre conflitos de interesse que envolvem a liberdade religiosa de menores, quando há divergência nas posições religiosas dos pais, já aconteceram em casos em que as crenças interferem em questões sobre a realização de procedimentos médicos vedados pela religião dos pais. Em um dos casos, a crença religiosa vedava a utilização de vacinas. "A Corte determinou a realização do tratamento prescrito pelo médico. Entre os fundamentos utilizados, afirmou-se que a liberdade religiosa dos pais não poderia restringir o direito à saúde da criança, priorizando-se o seu interesse", pontua.
Estado deve evitar intervenção na dinâmica da família
Para o advogado, o Estatuto da Criança e do Adolescente é um dos ordenamentos jurídicos responsáveis por fazer com que a vontade do menor seja ouvida e valorizada, uma vez que a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, assegura o direito fundamental à liberdade e à dignidade, a abranger a liberdade de expressão e opinião, bem como de crença e culto religioso. "Em tal perspectiva, o processo de informação e formação do filho, a partir
do ECA, inclui seu direito de ‘opinião e expressão’, reclamando educação estabelecida por meio do diálogo, da troca, da reciprocidade entre educando e educador, o que compreende também as decisões de conteúdo religioso”, destaca.
É ainda o ECA que protege como bens fundamentais o desenvolvimento físico, mental, moral e espiritual, cabendo à criança o direito de discernir e formular sua própria opinião e o direito de expressá-la livremente em diversos assuntos, inclusive as deliberações de caráter religioso. "É-lhe garantido o direito de ser ouvida no processo judicial ou administrativo que tenha direta interferência em sua vida", comenta Tepedino.
Diante de cenários de intolerância, o advogado aponta que algumas decisões lamentavelmente mostraram-se discriminatórias por interferirem na liberdade religiosa, tornando-se injustificadas na legalidade constitucional. "Nem todos os ambientes familiares respeitam a liberdade dos menores na construção de sua própria autonomia. Se a integridade psicofísica e a liberdade de orientação forem garantidas, o Estado deve evitar ao máximo qualquer intervenção na dinâmica da família, especialmente no caso de medida tão excepcional e extrema, como a perda de guarda", finaliza.
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