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Homem transgênero consegue retificação do registro do filho mesmo sem concordância do outro pai
Pai de um adolescente de 14 anos, um homem transexual obteve na Justiça de Minas Gerais o direito de alterar o registro do filho e substituir o nome anterior, feminino, pelo atual, masculino. Para isso, não foi necessário o consentimento do outro pai, que se opunha à alteração. A decisão é da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte.
De acordo com os autos, o adolescente é fruto de um relacionamento ocorrido antes da transição de gênero do requerente. Após o nascimento da criança, o casal se separou e a guarda do filho ficou com o autor da ação. Algum tempo depois, ele passou a se identificar como um homem trans, promovendo, inclusive, a alteração de seus documentos pessoais.
A falta de retificação do registro do filho impede que ele exerça plenamente a guarda legal, inclusive, impedindo-o de garantir ao adolescente os direitos de assistência médica e educacional, por exemplo. O Ministério Público opinou pela “regularização da certidão de nascimento e outros documentos da criança”.
Já o outro pai argumentou pela “verdade do tempo de nascimento” do filho, e que a alteração resultaria em “impor ao filho uma vontade unilateral do pai transexual”. Pontuou ainda que, se a divergência traz constrangimento para o pai transexual, a alteração traria constrangimento para ele.
Exposição do adolescente
A juíza Maria Luiza Rangel Pires, que decidiu de forma favorável ao pleito do autor da ação, considerou que o menor está sob a guarda do pai transgênero, o que traz dificuldades nas ocasiões em que precisa ser representado. O registro e os documentos trazem, afinal, o nome de um representante legal “que não existe mais”.
O adolescente seria muito mais exposto, na interpretação da magistrada, ao precisar apresentar um documento para provar a estranhos que aquele homem que o acompanha e representa, na verdade, é o seu pai transgênero, do que simplesmente apresentar um registro com o nome de quem está devidamente legitimado a representá-lo.
“O menor, ao tempo de sua maioridade, poderia buscar uma solução diversa, pautado por seu livre discernimento de constar em seu registro a verdade do tempo de seu nascimento ou aquela condizente com a atualidade”, pontuou a magistrada. Ela aguarda “como a legislação e os Tribunais irão se posicionar sobre temática tão delicada e que mexe de forma tão sensível com a vida de todos os envolvidos.”
Princípio da veracidade e segurança jurídica
Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e ativista pelos direitos da população trans, a tabeliã de notas Carla Watanabe afirma que a decisão é um avanço e tem um simbolismo muito grande. “Ela representa a quebra de um paradigma ainda baseado na exclusiva patrimonialidade das relações jurídicas.”
“O clássico ‘princípio da veracidade’ dos registros públicos tem como interpretação uma verdade constatada, ou imposta, quando do nascimento da pessoa. Afinal, ao ser imutável o registro, este se tornaria um instrumento a serviço da lógica liberal de facilitar encontrar o devedor onde quer que ele se encontrasse. Tudo sob o argumento de que os registros públicos devem servir à ‘segurança jurídica’”, critica a especialista.
Segundo Carla, atualmente, a partir da leitura do Direito Privado sob a lentes da Constituição Federal de 1988, a pessoa humana assumiu a posição central do ordenamento jurídico. “Sua dignidade, não o formalismo do pensamento oitocentista, é que deve nortear a aplicação do direito.”
As pessoas transgêneras são exemplos. “Estas têm, via de regra, seu fenótipo dissociado do sexo que lhes foi atribuído quando do nascimento. Essa discrepância ocasiona inúmeros constrangimentos na vida social, principalmente quando da apresentação de seus documentos de identificação.”
“A manutenção, no registro civil, de informações que não mais condizem com a realidade daquela pessoa, em nome daquele ‘princípio da veracidade’, que apenas trazem sofrimento a ela, é uma clara subordinação da dignidade da pessoa humana a um formalismo que caracterizou o Direito do século XIX”, defende Carla.
Avanços na jurisprudência
A Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4.275/DF, julgada pelo Supremo Tribunal Federal – STF, representou um marco, nas palavras de Carla Watanabe. “Possibilitou a alteração de prenome e de sexo de pessoas transgêneras diretamente no registro civil, por simples declaração, sem necessidade de quaisquer laudos ou de cirurgia de readequação genital.”
“Essa decisão é um exemplo de como a verdade real, concreta, deve prevalecer sobre outra, ficta, presente apenas nos assentos dos cartórios de registro civil. Mais além, ela trouxe a funcionalização da patrimonialidade dos registros à dignidade da pessoa humana.”
A especialista explica que a pessoa transgênera, todavia, após alterar seu registro de nascimento, pode ter um imenso passado de informações em bases de dados privadas e públicas em seu antigo prenome e sexo. “Os constrangimentos gerados pelo desencontro desses dados com sua identidade modificada podem se perpetuar por anos a fio e nunca chegar a um término. Daí a razão pela qual o Provimento 73/2018, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que regulamentou a aplicação da ADI 4.275, ter previsto, no seu artigo 8º, a comunicação dessa alteração a diversos órgãos governamentais.”
“Nesse mesmo provimento, consta a possibilidade da averbação dessa mudança nos registros de nascimento dos descendentes e no registro de casamento da pessoa transgênera. Estranhamente, porém, admite a oposição do descendente, do outro pai e do cônjuge à alteração. Afinal, quais seriam os argumentos jurídicos contrários à averbação?”, indaga Carla.
Ela acrescenta: “No caso julgado recentemente pela justiça de MG, o argumento utilizado pelo pai cisgênero foi o de que o princípio da veracidade deveria se remeter à época do nascimento do filho comum. Alegou ainda o constrangimento que eventual alteração poderia trazer para ele, pai cisgênero. Como se percebe, é a tentativa da clássica aplicação do princípio da veracidade aliada à imutabilidade dos registros públicos, como forma de manter uma verdade inexistente”.
Vulnerabilidade do adolescente e do pai transgênero
“A partir da alteração do registro civil do pai homem trans, surgiu uma nova “verdade” para os registros públicos. Aquela pessoa passou a ter novos prenome e sexo, agora aderentes à realidade”, destaca Carla Watanabe. “Um registro de nascimento vinculado a uma realidade inexistente vulnerabiliza o adolescente e o pai transgênero.”
“Este último é quem detém a guarda do adolescente; portanto, é ele quem o representa na escola, quem o leva para médico e quem deve diariamente fazer prova da paternidade. Situações como estas vão além do mero ‘constrangimento’ alegado pelo outro pai, pois a incongruência dos dados de identificação do pai trans com os do filho, virtualmente o impediria de exercer o poder familiar perante terceiros”, pontua a tabeliã.
Ela explica que, em decorrência de um princípio da veracidade dos registros públicos renovado, agora centrado no valor da dignidade da pessoa humana, a averbação da nova identidade do pai trans foi uma “mera regularização da certidão de nascimento e outros documentos da criança”, como bem ressaltado pelo Ministério Público.
“Eu, pessoalmente, vivi muitas situações semelhantes à do pai transgênero. Não raras vezes autoridades públicas e particulares me negaram a possibilidade de exercício do poder familiar porque minha filha ainda não tinha averbado em seu registro de nascimento minha nova identidade. Isto não é apenas constrangedor. É humilhante”, conclui Carla Watanabe.
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