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Dois anos após tragédia de Brumadinho, famílias ainda lutam para encontrar e enterrar corpos das vítimas

A tragédia que matou 270 pessoas em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais, completou dois anos na última segunda-feira, 25 de janeiro. O rompimento da barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, da Vale, não apenas tirou vidas como também vitimou outras centenas de pessoas que moram na região, incluindo famílias que perderam entes queridos e convivem, desde 2019, com o luto e a impunidade.
Ainda hoje, 11 corpos não foram encontrados, incluindo oito operários e outras três pessoas, terceirizados e moradores da comunidade local. O Corpo de Bombeiros segue mobilizado, mas nenhum corpo é localizado desde 28 de dezembro de 2019, segundo reportagem do jornal Estado de Minas. Isso significa dizer que 11 famílias tiveram negado seu direito à despedida e ao enterro digno de pessoas amadas.
"Temos por cultura o fechamento do ciclo da vida das pessoas que amamos, com quem compartilhamos nossa existência, nos despedindo delas através da cerimônia do velório. É um momento de despedida, de espiritualidade e de extravasamento da dor", comenta Márcia Fidelis, oficiala de registro civil e presidente da Comissão de Notários e Registradores do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
Ela acrescenta: "É um momento de concretização do fim, de materialização da morte, que é um caminho necessário para a aceitação. É um ritual fundamental". Na mídia, os parentes enlutados têm dado entrevistas sobre a dor de não ter onde velar pais, mães, filhos e demais entes que morreram de forma trágica. Sem os corpos, permanece a inquietude e incerteza.
"Não se despedir é eternizar o luto"
"Circunstâncias variadas que interrompem esse ciclo fazem da morte um fato ainda mais difícil, sofrido e inesquecível. Não se despedir é como eternizar o luto – ciente da morte, mas com memórias materializadas exclusivamente na vida. Vive-se isso diariamente mundo afora em casos isolados. Contudo, as tragédias coletivas, as que levam muitas vidas de uma só vez, em situações que impedem a localização de corpos, marcam a história de uma maneira mais profunda", frisa Márcia Fidelis.
A luta de famílias para encontrar, identificar e enterrar os corpos de parentes mortos mantém vivo, na atualidade, o histórico da história do Brasil. "Considerando apenas o último século e de forma exemplificativa, pode-se citar fatos marcantes que ocasionaram esse tipo de sofrimento e que são emblemáticos", inicia Márcia.
Ela cita as grandes guerras, em que os corpos dos soldados não voltam para casa em todo o mundo; os desaparecimentos políticos, realidade sentida no Brasil especialmente durante o período da ditadura militar, de 1964 a 1985; entre outros episódios trágicos em que familiares nunca mais tiveram notícias de seus entes queridos. O tema se relaciona, ainda, com o atual período de pandemia da Covid-19, em que o ritual de passagem tem sido impedido pelo risco de contaminação.
"A ocorrência trágica e cruel de Brumadinho é uma amostra próxima tanto no espaço quanto no tempo. Vimos esse sofrimento nos sepultamentos com urnas lacradas e, até hoje, nas 11 famílias que ainda não puderam sequer ter a comprovação material do falecimento de seus entes queridos, já que seus corpos ainda não foram localizados. São sofrimentos irremediáveis. Não há reparação para essa dor. Fere de morte a dignidade dessas famílias", frisa Márcia Fidelis.
Comprovação da morte na Justiça
A especialista explica que existem meios legais de se comprovar a morte, mesmo sem a presença do corpo, a fim de se garantir que o fim da personalidade jurídica do falecido surta efeitos. Trata-se da declaração judicial da morte presumida. Em 2019, em atenção ao desastre de Brumadinho, o IBDFAM chegou a sugerir edição de ato normativo sobre o tema ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ.
"Quando é inequívoca a presença da pessoa em local de tragédia onde fica evidente a dificuldade de encontrar ou de se identificar o corpo, através de uma ação de justificação, o magistrado pode declarar que a pessoa faleceu, mesmo estando ausente o corpo", pontua Márcia Fidelis.
Segundo a oficiala de registro civil, essa providência proporciona aos familiares a possibilidade de receber eventuais pensões decorrentes da morte e de partilhar os bens deixados pelo falecido. "Também permite a busca por reparos perante os responsáveis, já que a sentença de morte presumida será instrumento para a lavratura do registro do óbito e emissão da certidão, que é o meio de comprovação da lesão e é imprescindível para que se busque judicialmente a imposição do dever de indenizar moral e materialmente."
"Nada disso, porém, substitui o verdadeiro ritual de passagem que nossa cultura estabeleceu como uma forma de, literalmente, vermos com os nossos próprios olhos o fechamento do ciclo da vida de alguém com quem convivemos, amamos e que passou a fazer parte de nós", pondera Márcia.
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