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Justiça permite transfusão de sangue sem autorização da família; paciente está em coma e com suspeita de Coronavírus
Um hospital foi autorizado, recentemente, a realizar imediata transfusão de sangue em um paciente, que está em coma e com suspeita de Coronavírus. A transfusão havia sido negada por familiares, por motivos religiosos. A decisão da 28ª Vara Cível da Comarca de Goiânia determinou que o procedimento independe da assinatura de termo de consentimento.
O paciente está na Unidade de Tratamento Intensivo – UTI desde 19 de maio, com quadro de síndrome respiratória aguda grave. Há suspeita clínica e radiológica de infecção por Covid-19. Em razão do grave quadro de anemia, a equipe médica prescreveu transfusão de sangue que, caso não seja realizada, poderá levá-lo à morte.
Segundo o juíz responsável pelo caso, o direito à liberdade religiosa do requerido, resguardado pela Constituição Federal, não é absoluto, pois seu exercício encontra limite em outros direitos fundamentais que se sobrepõem, como à vida e à saúde. Ele também ressaltou que, por estar em coma, o homem não possui plenamente suas faculdades mentais para tomar decisão.
“De fato, caberia prevalência da vontade do paciente quanto à sua crença religiosa se estivesse em plena capacidade de fazê-lo, que não é o caso dos autos”, disse o magistrado, na decisão. Conforme salientado, o profissional da área de saúde tem o dever de empreender todas as diligências necessárias ao tratamento do paciente em caso de iminente perigo de morte, independentemente de consentimento do paciente ou de seu representante legal, em acordo com os artigos 22 e 31 do Código de Ética Médica.
O juiz observou ainda: “é cristalino que o perigo da demora na prestação jurisdicional definitiva pode causar prejuízo de difícil reparação ao requerido que se encontra internado em estado grave no hospital requerido, de modo que a negativa ao referido pleito geraria risco à manutenção de sua vida”.
No exercício de sua autonomia, paciente poderia recusar o tratamento
Vice-presidente da Comissão Biodireito e Bioética do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, o advogado Eduardo Vasconcelos dos Santos Dantas avalia que a decisão foi correta. Contudo, está “fundamentada em entendimento parcialmente equivocado”, como ele diz.
“O médico não deve agir ‘independentemente do consentimento do paciente’, mesmo em situações de risco iminente de morte, se o paciente, capaz, íntegro e no exercício de sua autonomia, se recusar ao tratamento, compreendendo os riscos que corre”, explica Eduardo.
Segundo o advogado, agir sem consentimento ou autorização é algo que deve ser evitado, pois pode levar a consequências éticas, civis e mesmo criminais. “Entretanto, no caso concreto, se não havia uma diretiva antecipada de vontade, nem um representante legal previamente designado, não há como superar o dever de preservação da vida do paciente em detrimento de sua hipotética vontade, não expressa em canto algum”, opina.
Justiça deve respeitar crenças do paciente, não da família
Eduardo frisa que, em situações como essa, a Justiça deve respeitar crenças e valores do paciente, não da família. “É o respeito ao fundamento previsto no art. 1º da Constituição Federal, da dignidade da pessoa humana. A recusa ao tratamento faz parte deste direito, acaso compreendido pelo paciente”, observa.
“Viver seguindo preceitos religiosos é um direito, que não pode ser sonegado ao paciente em hipótese alguma, se expressado de forma capaz e consciente. A oposição médica a este direito pode ocorrer, todavia, se o paciente for menor de idade, incapaz de opinar – como é o caso de crianças sem maturidade suficiente para ter sua opinião sequer levada em consideração, como preceituado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e por convenções internacionais”, acrescenta o advogado.
Ele diz que “crenças religiosas dos pais não se sobrepõem, neste caso específico (ocorrido em Goiás), ao direito à vida”. De acordo com Eduardo, tribunais têm adotado posicionamento de respeitar a autonomia da vontade do paciente, desde que expressada de maneira capaz e consciente.
“A obrigação do médico, em casos onde o paciente possa se manifestar, ou tenha deixado instruções prévias, é de respeitá-las. Apenas nos casos em que o mesmo se encontra incapaz ou inconsciente, sem qualquer possibilidade de ser consultado, a opinião médica prevalece. E nos casos que envolvem crianças, como já mencionado, em que a decisão não pode ser considerada autônoma, informada e livre de pressões, prevalece o dever de buscar preservar a vida do paciente, independentemente da vontade de seus pais”, frisa Eduardo.
Caso semelhante ocorreu no Espírito Santo
No município de Serra, no Espírito Santo, um hospital foi autorizado a realizar transfusão de sangue em uma paciente idosa, portadora de diabetes e hipertensão arterial, que se encontra internada para tratamento da doença. O pedido de tutela provisória de urgência antecipada foi deferido pela 2ª Vara Cível de Vitória.
A paciente apresenta grave estado geral, com anemia severa desde que chegou ao hospital, em 1º de junho. No último dia 14, seu quadro evoluiu para insuficiência respiratória, piora da função renal e diurese diminuída. A realização de hemodiálise é essencial ao quadro clínico e deve ser acompanhada de transfusão de sangue. De acordo com os autos, os familiares da requerida se recusaram a assinar o termo de consentimento, impedindo a realização dos dois procedimentos. Foi apresentada declaração de recusa ao recebimento de transfusão sanguínea por motivos religiosos.
Ao analisar o caso, a juíza responsável pelo caso verificou aparente conflito de dois princípios fundamentais consagrados no ordenamento jurídico-constitucional: de um lado, o direito à vida, de outro, a liberdade de crença religiosa. Por fim, a resolução apresentou consonância com o decidido recentemente em Goiás.
A magistrada entendeu não haver dúvida de que “sobreleva o direito à vida ao direito à liberdade religiosa, em especial porque sem a vida não será possível exercer qualquer outro direito fundamental garantido constitucionalmente”. Ela acatou o pedido liminar para autorizar a realização de todos os procedimentos necessários a proporcionar o melhor e mais eficaz tratamento médico à mulher idosa.
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