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STJ decide que travesti presa deve ficar em ala feminina
Em decisão inédita no Superior Tribunal de Justiça (STJ), o ministro Rogerio Schietti Cruz garantiu a travesti presa em regime semiaberto o direito de pernoitar na ala feminina do Presídio Estadual de Cruz Alta (RS). Por falta de espaço adequado na penitenciária, a travesti era mantida em alojamento ocupado por presos do sexo masculino.
Na decisão liminar, o ministro Schietti entendeu que a permanência da travesti em local absolutamente impróprio para uma pessoa que se identifica e se comporta como transgênero feminino, além de violar o princípio da dignidade da pessoa humana, poderia ocasionar violência física, psíquica e moral, “dada a característica ainda patriarcal e preconceituosa de boa parte de nossa sociedade, agravada pela promiscuidade que caracteriza ambientes carcerários masculinos”.
Para a advogada Priscila Moregola, vice-presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), a falta de vaga em presídio feminino não justifica a colocação da travesti em local incompatível com sua identidade de gênero.
“A travesti deve ser colocada em espaço compatível com sua identidade de gênero, sob pena de ter sua integridade física e moral violada. Sua identidade de gênero é a feminina, portanto ela deveria ter sido colocada em presídio feminino”, garante.
Segundo Moregola, a colocação da travesti em estabelecimento prisional inadequado causa grave ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, princípio previsto na Constituição Federal e em Tratados Internacionais, dos quais o Brasil é signatário.
Além disso, conforme explica Priscila, o Recurso Extraordinário 641.320/RS tem precedente nesse sentido. “A falta de vaga em estabelecimento prisional adequado ao seu regime, não é motivo para manter a travesti em presídio masculino, pois, de acordo com o RE 641.320/RS, ‘Havendo déficit de vagas, deverão ser determinados: (i) saída antecipada de sentenciado no regime com falta de vagas; (ii) a liberdade eletronicamente monitorada ao sentenciado que sai antecipadamente ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas; (iii) o cumprimento de penas restritivas de direitos e/ou estudo ao sentenciado que progride ao regime aberto’”, observa.
“Não há justificativa para manutenção das travestis em presídio masculino, mesmo levando-se em conta a atual falência do nosso sistema penitenciário”, avalia.
Travesti sofreu violência em alojamento masculino, segundo Defensoria Pública
No caso, após o cumprimento de uma parte da pena em regime fechado, a travesti foi autorizada a realizar trabalho externo, com recolhimento noturno ao presídio. Todavia, em razão da ausência de cela especial para abrigar pessoas LGBT no presídio local, o juiz indeferiu o pedido de pernoite em cela feminina.
A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). Apesar de entender que a melhor opção seria a instalação de celas especiais no Presídio Estadual de Cruz Alta, o tribunal destacou que a penitenciária chegou a ser interditada por problemas estruturais e de superlotação, não havendo possibilidade de adoção de medidas para atender a pessoas com diferentes orientações sexuais e identidades de gênero.
O pedido de habeas corpus foi apresentado ao STJ pela Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, a qual alegou que, mantida em alojamento masculino, a travesti estava sofrendo violência psíquica, moral e até de cunho sexual.
Segundo a defesa, a separação das penitenciárias apenas entre homens e mulheres gera violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que desconsidera as identificações de gêneros das pessoas recolhidas que não se enquadram nem como homens, nem como mulheres, em virtude das peculiaridades de transgeneridade.
O ministro Rogerio Schietti lembrou que a Constituição brasileira apresenta, já em seu preâmbulo, a busca pela construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Ele também lembrou que, de acordo com os Princípios de Yogyakarta, a orientação sexual e a identidade de gênero são essenciais para a dignidade e humanidade de cada pessoa e não devem ser motivo de discriminação ou abuso.
Além disso, Schietti apontou que, de acordo com a Resolução Conjunta 1 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, deverão ser oferecidos aos travestis e homossexuais privados de liberdade em unidades prisionais masculinas espaços de vivência específicos, em atenção à sua segurança e especial vulnerabilidade.
Por essas razões, segundo o ministro, é “absolutamente imprópria” para quem se identifica e se comporta como transgênero feminino a permanência noturna em espaço ocupado por presos do sexo masculino – o que exigiria sua colocação em espaço próprio de vivência, de modo compatível com a sua identificação de gênero em conformidade com a dignidade da pessoa em cumprimento de sanção criminal.
Entretanto, em virtude da informação do TJRS de que não há espaço adequado no presídio local, Schietti entendeu que, por enquanto, a travesti deverá ao menos pernoitar em ambiente menos hostil, preferencialmente em cela individual.
“De toda sorte, em nenhuma hipótese poderá a paciente continuar a pernoitar no alojamento masculino do Presídio Estadual de Cruz Alta ou de qualquer outro estabelecimento penal do Estado do Rio Grande do Sul”, concluiu o ministro ao deferir o pedido de liminar.
O mérito do habeas corpus ainda será julgado pela Sexta Turma.
Leia a decisão.
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