Notícias
Livro Intersexo “é um grito pela libertação desse segmento da população”, diz coordenadora
“Intersexo” (Editora Revista dos Tribunais, 2018) é a primeira obra a abordar a intersexualidade em seus mais variados aspectos. O livro tem com o objetivo dar visibilidade a esta realidade e evidenciar a necessidade de despatologizar o estigma que acompanha as pessoas intersexuais.
A advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), assina a coordenação do livro que trata do binarismo de gênero, mais especificamente da situação de pessoas intersexuais. A obra explica a problemática por meio de artigos que abordam vários aspectos: Jurídicos; Internacionais; Trabalhistas; Registrais; Médicos; Psicológicos; Sociais e Culturais.
“O livro é a primeira obra no Brasil que aborda essa questão e é a primeira obra no mundo que traz um viés interdisciplinar sob muitos aspectos. Isto é muito significativo”, diz Maria Berenice Dias.
Segundo ela, esse segmento da população começou a buscar visibilidade a partir do momento em que houve a inserção da letra “I” na sigla LGBT, que passou a ser LGBTI incluindo os intersexuais, “o segmento mais vulnerável e mais invisibilizado da população”.
A advogada explica que as pessoas intersexuais são identificadas como portadores de anomalia sexual e a correção cirúrgica é chancelada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que autoriza a realização de cirurgias corretivas, sem qualquer respeito à identidade que irá assumir quem se afasta do binarismo de gênero. “No nascimento, ao se constatar que a pessoa não corresponde ao modelo azul ou rosa, menino ou menina, essas pessoas são submetidas a cirurgias de ‘adequação’ sexual em que os médicos, achando que estão curando, acabam castrando essas crianças e elegem por critérios não científicos, uma identidade sexual para elas”, afirma.
Para ela, as crianças que são submetidas a essas cirurgias não têm oportunidade de escolha. “Crianças que passam por isso não têm ideia do que está acontecendo e não têm a oportunidade de escolha se de fato irão assumir a identidade do gênero que foi eleito para elas, ou não preferiam isso, ou simplesmente gostariam de permanecer como nasceram, porque isso não é doença”, garante.
Para Maria Berenice Dias, a característica mais significativa do livro é despatologizar a intersexualidade. “Não se trata somente de um livro, mas do levantamento de um véu para que a sociedade preste atenção, aprenda a respeitar a dignidade dessas pessoas. Revogar a portaria do CFM autorizando essas cirurgias e inserir essas pessoas na sociedade porque elas não têm nada de 'anormal' . É um grito pela libertação desse segmento da nossa população”, diz.
Apresentação
A busca de respeito à diversidade sexual e à identidade de gênero é um movimento crescente e sem volta. Cada vez mais abrangente, está sempre em constante mudança.
Primeiro foram os gays que, ao se revoltarem contra as agressões sofridas, marcaram presença no calendário mundial. A eles se engajaram as lésbicas, sob a sigla GLS. Incluiu também as pessoas simpatizantes, mas identifica apenas a orientação sexual, deixando de fora a identidade de gênero.
Ao longo do tempo, com o surgimento de um ativismo mais marcante, foram enlaçados segmentos outros e agregadas novas expressões.
Em face da invisibilidade de que sempre foram vítimas as mulheres – e consequentemente sua orientação sexual – foi dada anterioridade à letra “L”.
Houve a inclusão dos bissexuais “B” e da letra “T”, que diz com a identidade de gênero: transgêneros, travestis e transexuais. Por isso, durante um tempo, chegou a ser repetida por três vezes: LGBTTT.
Internacionalmente utiliza-se a sigla LGBTI, com a inclusão dos intersexuais. Na Inglaterra a designação chega a 13 letras: LGBTQQICAPF2K+ e a Comissão de Direitos Humanos de Nova Iorque reconheceu 31 gêneros diferentes.
Recentemente está sendo utilizado o termo “intergênero”, para que a intersexualidade não seja considerada outro gênero.
No Brasil, apesar de algumas resistências, só agora houve a inserção das pessoas intersexo, não só na designação, mas nos próprios movimentos sociais.
A Aliança Nacional, entidade que agrega o maior número de entidades e associações – e que acaba de lançar o Manual de Comunicações, utiliza LGBTI+ –, além da letra “I” acrescenta o sinal “+”, para evidenciar a presença de outras sexualidades.
Todas essas ampliações significam conquistas de visibilidade e de direitos. Porém, esses avanços não tem contemplado os intersexuais, que ainda não alcançaram reconhecimento. A maioria das pessoas sequer sabe o que essa palavra significa.
Era rotulado de hermafrodita ou de andrógeno quem nascia com ambiguidade dos órgãos sexuais externos. Variações biológicas ou anatomia reprodutiva indefinida, não permitiam a perfeita identificação de se tratar de alguém do sexo masculino ou feminino.
Qual o sexo? Esse é o primeiro questionamento feito ao obstetra. É o que todos perguntam a uma mulher grávida.
A ânsia em obter uma resposta é facilitada pelos cada vez mais sofisticados aparelhos de ultrassonografia que, desde as primeiras semanas da gravidez, permitem afirmar qual o sexo do bebê.
Quando do nascimento é que se constata alguma ambiguidade, surpresa assombra os pais, pois idealizaram ter um menino ou uma menina.
Não saber como identificar o próprio filho, que nome dar a ele, com que cor de roupa vesti-lo, gera angústias e, por vezes, sentimento de rejeição e até de repulsa.
É difícil para os pais perceberem que esse é o filho deles. Do jeito que ele é. Em nenhum momento ventilam a possibilidade de que ele venha a se aceitar desse modo, de que poderá ser feliz assim.
O que deveriam fazer era procurar um profissional da área psicossocial, para aprenderem a lidar com o filho, de modo a que ele não venha a sofrer em face de sua diferença.
No entanto, vão atrás de socorro médico. Como se vive em uma sociedade binária, que acredita ser formada somente por homens e mulheres, perceber que um filho não corresponde a um desses estereótipos gera o desejo de “corrigi-lo”, sob as mais variadas justificativas: para não ser estigmatizado; para não sofrer preconceito etc.
Mas a verdadeira razão, o que leva os pais a buscar correção do que consideram uma anomalia, é não querer um filho sem uma identidade definida anatomicamente.
Como os médicos prestam o compromisso de Hipócrates, fazem do dever de “curar” um verdadeiro sacerdócio. Sem atentar que se trata de uma variação anatômica das características genitais e não de um problema de saúde, erroneamente consideram que a pessoa intersexo não é normal por fugir da heteronormatividade.
O fato é que não há o que corrigir.
Para a realização das intervenções sequer é necessária a existência de risco de vida. O médico decide com base na aparência externa, na presença dos órgãos internos reprodutivos, bem como na identificação dos cromossomas XX ou XY. Elege uma identidade sexual e submete a várias cirurgias crianças que não têm capacidade de decidir sobre o próprio gênero.
Apesar de serem consideradas corretivas, de fato, tais cirurgias são mutiladoras. A finalidade é meramente estética, afrontando o direito de escolha. Tanto que, não é incomum, ao chegar à adolescência, por não se identificarem com o sexo aleatoriamente eleito, os médicos sejam questionados sobre a escolha feita.
Ou seja, fazer a “correção” genital é uma violência.
Para procederem cirurgicamente à definição do sexo, os médicos contam com a chancela do Conselho Federal de Medicina (CFM).[1] A Resolução, editada no ano de 2003, considera anomalias da diferenciação sexual as situações clínicas conhecidas no meio médico como genitália ambígua, ambiguidade genital, intersexo, hermafroditismo verdadeiro, pseudo-hermafroditismo (masculino ou feminino), disgenesia gonadal, sexo reverso, entre outras.
Cabe atentar que a Constituição da República, prenhe de princípios fundamentais, impulsionou toda uma mudança social. Tendo como norte a dignidade humana, houve o reconhecimento da pessoa como sujeito de direito e não mais como assujeitada a estruturas de convívio asfixiantes.
Essas mudanças de paradigma, porém, ainda não receberam o necessário respaldo legal. Dita perversa omissão não significa “silêncio eloquente”, a sinalizar ausência de direitos àqueles que, por puro preconceito, são condenados à invisibilidade e praticamente alijados de todo e qualquer direito. Não só de conviver, mas também de sobreviver.
O reconhecimento de direitos a segmentos alvo da exclusão social é – ou deveria ser – o compromisso maior do legislador. Afinal, é para isso que servem as leis: assegurar tratamento igual aos desiguais, na medida em que se desigualam.
A identificação, feita com base exclusivamente nas características genitais externas, não dispõe de qualquer relevância. Principalmente depois que foi reconhecido o casamento homoafetivo. Também não se justifica, por exemplo, para fins de alistamento militar ou contagem do prazo para a aposentadoria. Basta atentar à possibilidade de a alteração do nome e da identidade de sexo ser feita administrativamente, por auto declaração, sem a necessidade de qualquer intervenção cirurgia ou tratamento hormonal.[2]
Cabe lembrar que Organização Mundial de Saúde (OMS), ao editar a nova Classificação Internacional de Doenças (CID-11), deixou de considerar a transexualidade como transtorno mental e a categorizou como incongruência de gênero. A alteração é de enorme significado para todos os segmentos que dizem com questões identificatórias de sexo e gênero.
O Manual de Instruções para o preenchimento da Declaração de Nascido Vivo (DNV), expedido pelo Ministério da Saúde, prevê que, em casos especiais como genitália indefinida ou hermafroditismo, a referência ao sexo conste como “ignorado”, devendo ser feita a “descrição completa da anomalia congênita detectável no momento do nascimento”. Há um campo para: Descrever todas as anomalias congênitas observadas – compete ao médico diagnosticar as anomalias congênitas. Deve ser estimulado o registro de todas as anomalias observadas, sem hierarquia ou tentativa de agrupá-las em síndromes. Priorizar a descrição e desestimular o uso de códigos, exceto se codificado por neonatologistas, pediatras ou geneticistas. A codificação qualificada das anomalias descritas deverá ser realizada preferencialmente em um segundo momento por pessoas capacitadas para esta função. Portanto, quanto melhor descrita(s) melhor será o trabalho de codificação. Obs.: A relação de anomalias congênitas aparentes que podem ser especificadas é apresentada no Anexo E, elaborada a partir da Classificação Internacional de Doenças, 10ª revisão – CID-10 8.
Na regulamentação, no entanto, nas notas relativas aos cartórios, não é feita nenhuma recomendação quando se tratar de sexo “desconhecido ou ignorado”. Aliás, nada justifica a referência do sexo da pessoa no seu assento de nascimento. Ou, ao menos, não precisa constar nas certidões que forem expedidas. O fato é que, nem a Lei dos Registros Públicos e nem o Conselho Nacional de Justiça regulamentam como proceder ao registro nos casos em que na DNV conste o sexo como “ignorado”.
De qualquer modo, inserir essa referência no registro afronta os princípios da intimidade e da privacidade. Conclusão: na maioria das vezes o registro é negado e os pais precisam se socorrer do Judiciário para assegurar ao filho o direito à cidadania.
O Brasil precisa seguir os passos dos países que simplesmente proíbem a realização dessas cirurgias. É imperioso despatologizar a intersexualidade. Não se trata de uma doença que possa ser objeto de cura. É uma realidade que necessita ser aceita.
A Sociedade Intersexual Norte Americana (ISNA)[3] defende uma abordagem pragmática para a definição da categoria intersexo. Busca construir um mundo livre de vergonha, silêncio e cirurgias genitais indesejadas para qualquer pessoa nascida com o que alguns acreditam ser uma anatomia sexual fora da norma.
A postura discriminatória da sociedade e a omissão do legislador acabaram por relegar às ciências médicas o dever de corrigir e adequar o corpo, o sexo e a identidade de quem foge do modelo convencional de ser e de viver.
Ora, não é dado a ninguém o direito de definir o que a natureza não identificou. Ninguém tem o condão de mudar a alma de quem tem uma identidade que ultrapassa a concepção limitada do binarismo identificatório.
E, às claras, ninguém pode ser discriminado por fugir do padrão sexual heteronormativo e muito menos ser colocado em situação de inferioridade ou marginalidade.
É chegada a hora de as pessoas intersexo buscarem reconhecimento, visibilidade, respeito e inclusão no laço social mediante a tutela jurídica do direito de serem como são.
A obra
“Que seja o primeiro passo de quem nunca teve voz e nem vez!”
1ª Edição
Coord.: Maria Berenice Dias
• Sobre: a obra trata do binarismo de gênero, mais especificamente da situação de pessoas denominadas "hermafroditas", mas com nomenclatura ideal de intersexos. A obra explica a problemática por meio de artigos mencionando vários aspectos que interferem nas escolhas dessas pessoas no dia a dia.
• Estrutura: artigos escritos por diversos autores dividindo por temáticas:
Aspectos Jurídicos;
Aspectos Internacionais;
Aspectos Trabalhistas;
Aspectos Registrais;
Aspectos Médicos;
Aspectos Psicológicos;
Aspectos Sociais;
Aspectos Culturais;
Ao final, anexo do CFM 1.664/2003 (tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual).
Destaque: Nota explicativa por Drauzio Varella.
• Público-alvo: público em geral, não só da área jurídica, assim como as minorias.
Atendimento à imprensa: ascom@ibdfam.org.br