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Entrevista - Sávio Bittencourt
Confira a entrevista com o procurador Sávio Bittencourt, na qual falou sobre a experiência que tem compartilhado em Portugal sobre Direito da Criança, Família e Sucessões; Estatuto da Adoção do IBDFAM e a expectativa pela participação no III Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra: uma visão transdisciplinar, no qual coordena, ao lado de Paulo Lépore, vice-presidente da Comissão da Infância e Juventude do IBDFAM, o simpósio “Direito Civil e Processual Civil – Direito à convivência familiar com ênfase nos sujeitos de direitos especialmente protegidos: crianças, adolescentes, pessoas com deficiências e idosos”.
1 – O senhor está em Portugal para uma temporada de dois anos, investigando, na Universidade do Minho, na área do Direito da Criança, Família e Sucessões. Faça uma análise sobre o que há de novo nessas áreas e uma comparação sobre as mesmas com o Brasil.
R: A análise de Direito Comparado é importantíssima porque ela nos brinda com experiências de países que são culturalmente próximos a nós, como é o caso de Portugal. Mas que tem também uma vida muito própria em relação às condições sociais, que são bem diferentes do Brasil. As soluções que eles encontram podem eventualmente servir para inspirar a nossa legislação ou a mudança de interpretação jurisprudencial, como nas questões de adoção, institucionalização, destituição do poder familiar, e de institutos correlatos. Um exemplo é o apadrinhamento afetivo no Brasil, que acabou de ser levemente regulado pela lei, com a mudança que houve recentemente no Estatuto da Criança e do Adolescente. Aqui em Portugal há uma lei de apadrinhamento civil que é muito mais pormenorizada e pode servir de inspiração para que nós, via IBDFAM, tentemos aprofundar e uniformizar o apadrinhamento civil no Brasil, já que hoje ele é uma iniciativa isolada de alguns juízes, instituições e grupos de apoio à adoção em conjugação com os poderes judiciários locais, e que algumas comarcas de alguns estados conseguem implementar um trabalho interessante de apadrinhamento civil. Não há uma uniformidade. Nem nas regras que são aplicadas, nem na própria existência do apadrinhamento afetivo, que aqui em Portugal se chama apadrinhamento civil. Não existe uma regra que obrigue o Juizado da Infância e Juventude local a ter um programa destinado a isso. Então eu acho que essa é uma contribuição bastante grande que Portugal pode dar. A gente dissecar o apadrinhamento civil português, ver o que deu certo e o que eventualmente não andou tão bem, compreender as razões dessas consequências, para que a gente possa sugerir algo a título de uniformização via legislação nova, aproveitando a Comissão de Adoção do IBDFAM, para fazer também essa sugestão.
2 – Como funciona, em Portugal, o instituto da adoção? E comparativamente com o nosso?
R: O Instituto da Adoção em Portugal é muito parecido com o brasileiro no sentido de ser adoção irrevogável e de dar igualdade absoluta ao filho adotivo se comparado à filiação biológica. Portanto, no que concerne às consequências da adoção, e também a preparação para a adoção, as condições de adotabilidade da criança, e as condições de adotar do pretendente à adoção, há muita semelhança entre o Brasil e Portugal. Aqui havia também, como houve no Brasil um tempo atrás, a chamada adoção simples, que foi revogada, tanto aqui quanto no Brasil, em boa hora, para valer apenas a adoção. Filho é filho, seja adotivo ou biológico, ele vai ser constituído com os mesmos direitos. Eu acho que a grande diferença está na concepção do que seja a adotabilidade. Talvez aqui haja menos entraves que no Brasil, mas isso eu não tenho certeza porque ainda estou investigando. Aí nós temos uma ação judicial contenciosa que é de destituição do poder familiar para dar a adotabilidade a criança. Aqui a ação judicial que faz isso é uma ação de jurisdição voluntária onde não há necessidade de uma série de formalidades que no Brasil existe do ponto de vista processual, para desvincular a criança da sua família de origem, aquela que a mantém numa instituição e que não tem condição de ser sua família de afeto e de cuidado, e portanto é necessário que seja extinto o vínculo com essa família. No Brasil, o processo de destituição do poder familiar foi transformado numa verdadeira guerra, onde se recorre mais nesse tipo de ação do que nos processos de condenação criminal. Então, portanto, a prática jurídica e as garantias que são dadas processuais levam esse processo a ser contencioso, altamente encarnecido. E aqui, em Portugal, é jurisdição voluntária, o que quer dizer que as garantias de defesa são asseguradas, mas há uma busca de verdade real que faz com que certas formalidades sejam dispensadas e as soluções sejam encontradas de forma mais eficaz e mais rápida.
3 – Sobre o quadro de adoção no Brasil – “Expectativa e Realidade: 91% só aceitam crianças de até 6 anos; 92% têm entre 7 e 17 anos; 68% não aceitam adotar irmãos; 69% possuem irmãos; 20% só aceitam crianças brancas; 68% são negros ou pardos. A conta nunca vai fechar se a mentalidade de quem quer adotar não mudar”. (Facebook CNJ) 18/4/2017 – o senhor comentou: “Essa conta ignora o número de institucionalizados que não estão disponíveis. Estão esperando a suprema reintegração. São 40 mil”. Qual o caminho das pedras para resolver essa questão de crianças e adolescentes institucionalizados, que não estão disponíveis; os que estão à espera da adoção e da adoção propriamente dita?
R: É um ponto nodal hoje do enfrentamento da questão da institucionalização desenfreada de adolescentes e crianças no Brasil. Primeiro, é preciso parar de manipular os números para tirar a culpa das instituições que têm a responsabilidade de solucionar a questão da criança sem família. Me refiro especificamente à minha instituição, o Ministério Público, e à magistratura, além da Defensoria Pública, que tem dado em alguns estados uma contribuição muito grande para que as crianças permaneçam nas instituições. Todas essas instituições têm membros valorosos e que lutam para que as crianças tenham direito à família. Seja sua família de origem ou adotiva, mas sem preconceito contra a solução adotiva. Então ressalvando a existência deste membros da magistratura, do Ministério Público e da Defensoria Pública, quero dizer que como instituição, essas carreiras, me parece, que precisam dar uma resposta mais efetiva, uniforme, na questão da criança institucionalizada. De ver na criança, não uma contingência comum na vida das pessoas, mas uma lesão gravíssima à saúde mental das crianças que lá se encontram abandonadas e sem afeto. Esse é o passo inicial e faz com que a gente tenha que parar de manipular os números, atribuir o abandono apenas ao preconceito que o adotante brasileiro teria. Pode ser até uma verdade parcial, porque as crianças disponíveis para a adoção, que são uma minoria dentro do contexto do número geral de crianças que não têm famílias, e na verdade são adolescentes, já passaram da idade, tem grupo de irmãos e alguns com doenças graves. É aí que afirmam que o adotante brasileiro é preconceituoso. É claro que nós lutamos para que o perfil do adotante brasileiro mude, mas se esquece que há 40 mil crianças, como me referi naquela época, que não estão nem disponíveis para adoção e nem estão nas suas famílias de origem, que são os chamados “nenem”. Esses são efetivamente completamente abandonados. E dizer “não, estamos tratando da reintegração familiar, estamos vendo o que está acontecendo”, claro que não se pode decidir açodadamente esse processo, mas é preciso que isso aconteça com toda a rapidez. E me parece que na maioria dos casos isso não acontece porque há uma conivência, uma certa compreensão da institucionalização como ocorrência da pobreza das pessoas. Ou seja, todo instituto que é criado, e todas as instituições que são criadas para defender o direito da criança de permanecer em família, militam contra ela numa complacência ideológica absolutamente contrária ao que está previsto na Constituição Federal. Então foi isso que eu disse e repito, porque o quadro não mudou.
4 – Em entrevista à Revista IBDFAM sob o título “Crianças Invisíveis”, em fevereiro do ano passado, o senhor afirmou que o que cria os gargalos na questão da adoção é “o excesso de demagogia. Muitos atores sociais estão impregnados dela, disfarçada de consciência social, ao justificarem a permanência prolongada de crianças e adolescentes nas instituições em nome da pobreza de suas famílias e de políticas públicas para atendê-las. Falta determinação e sentido de urgência na colocação destas crianças em famílias substitutas”. Alguma coisa mudou de lá para cá?
R: Eu acho que algumas coisas estão mudando. Eu vejo a movimentação de membros do Ministério Público e da magistratura no sentido de criar alternativas. Há muita gente trabalhando com uma certa indignação. Uns mais reservados e outros mais espalhafatosos como eu, mas com uma certa indignação com relação ao quadro geral de abandono. Se esses dados fossem abertos, se todos esses abrigos fossem visitados, se nós tivéssemos controle social do que é feito com relação às crianças que são analisadas, se a sociedade civil institucionalizada pudesse acompanhar as audiências concentradas, analisar processos de adoção em comarcas, encontrariam casos dignos de punição. Mas só que tudo fica escondido sobre o segredo de justiça que desprotege justamente a criança. O Segredo de Justiça foi criado para proteger a criança, mas faz com que ninguém possa controlar o sistema de Justiça que envolve a criança. Então são questões culturais que precisam ser vencidas, e que efetivamente nós temos lutado para que isso acontecesse. E institutos como o IBDFAM tem dado uma contribuição vigorosa no sentido de denunciar que esse tipo de sistema não concerne para proteger efetivamente essas crianças.
5 – O senhor participou da elaboração do Estatuto da Adoção do IBDFAM, apresentado como PLS 394/2017, que traz uma proposta inovadora para tornar o processo de adoção mais célere e eficiente, alterando significativamente a Lei da Adoção. Ocorre que ele vem sofrendo resistência por parte de instituições ligadas à questão da criança e do adolescente. Por que esse impasse, quando se sabe que a lei como está não resolve a problemática de mais de 50 mil crianças institucionalizadas no Brasil?
R: Eu fiz várias considerações e mandei contribuições direto do Ministério Público do Rio de Janeiro, que já haviam sido encaminhadas para outros fóruns, como o próprio poder legislativo nas consultas que fizeram a respeito da elaboração de leis sobre adoção. Porque são vários projetos de lei sobre adoção, todo mundo quer falar sobre o assunto, uns se contrapondo aos outros e causando a necessidade de um acompanhamento permanente para que não haja nenhum retrocesso. Eu colaborei com as mesmas colaborações que levei a esses outros fóruns. E acho que o Estatuto da Adoção tem méritos. O principal mérito é tentar acabar com os gargalos e dizer que a criança é o principal sujeito de direito. Talvez esse seja a melhor contribuição do Estatuto. Há questões técnicas pontuais da vivência processual nossa que a redação do estatuto final acabou contemplando determinadas questões que eu particularmente discordo. Mas eu acho que o projeto tem um mérito muito grande e precisa ser debatido. Acho que esse projeto tem o grande mérito de desvendar essa manutenção indiscriminada de crianças e adolescentes institucionalizadas.
6 – O senhor participa do III Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra: uma visão transdisciplinar – de 15 a 17 de outubro -, que vai debater diferentes questões sócio-jurídicas no âmbito dos Direitos Humanos. Qual a sua expectativa para o evento?
R: A minha expectativa nesse Congresso de Direitos Humanos é a melhor possível. Isso porque lá vão estar reunidos, em vários simpósios paralelos, vários assuntos da maior importância para a tutela dos direitos humanos. A tutela dos direitos humanos é muito mal vista pela sociedade no geral porque há um lapso de comunicação entre aqueles que defendem os direitos humanos e o que defender os direitos humanos realmente significa. Muitas vezes, a questão de direitos humanos acaba por ser vinculada apenas a defesa de réus criminais, condenados, presidiários, que são detentores de direitos que precisam ser preservados, diga-se isso, que é um contingente determinado, mas que não é um contingente total daqueles protegidos pelos direitos humanos. Falar de proteção ao idoso, falar de proteção a criança, combater o abandono e garantir o direito a família é um direito humano fundamental que precisa ser preservado. O que nós temos feito é justamente defender os direitos humanos contra uma “concepção social” de que as pessoas que são pobres têm direito a institucionalizar crianças porque são pobres, o que contraria a regra de você olhar para um país como o Brasil, que tem uma pobreza muito evidente, e constatar pelo número de institucionalizados que menos de 1% da população institucionaliza seus filhos. Então, quer dizer, para um grande contingente de pobreza que há no Brasil, 99% das pessoas mantém seus filhos consigo, em condições razoáveis, enquanto essa pequena quantidade não dá conta. É menos o julgamento dessas pessoas, como se elas fossem bandidas, mas é simplesmente a constatação básica, factual, objetiva, de que elas não têm condição de garantir cuidado suficiente para a criança. E não adianta ela falar que ama, que tem afeto, porque o corpo de delito do afeto é o cuidado. Se esse cuidado objetivo com a criança não existe no fato concreto, essa criança precisa de outra família. E isso tem que se verificar de forma mais rápida. Até hoje a gente só erra contra a criança, nós demoramos a dar uma chance para as pessoas e a criança padece a sua infância inteira em uma instituição. Nós temos que passar a ter a coragem de se errarmos, errarmos a favor dela. Não contra ela. A minha expectativa é que esse assunto possa ser levado, tanto das crianças quanto dos idosos, no congresso em Coimbra, que nós possamos sair de lá ainda mais esclarecidos e que possamos ter o melhor proveito acadêmico possível.
7 – O senhor, ao lado do Dr. Paulo Lépore, vice-presidente da Comissão da Infância e Juventude do IBDFAM, coordena o simpósio com área temática: Direito Civil e Processual Civil - Direito à convivência familiar com ênfase nos sujeitos de direitos especialmente protegidos: crianças, adolescentes, pessoas com deficiências e idosos. Adiante-nos o que os participantes poderão esperar desse grupo de trabalho.
R: Está sendo um grande prazer trabalhar com ele, que é uma pessoa que eu admiro muito. Os trabalhos que vêm sendo apresentados tem sido de grande qualidade. Já analisamos alguns trabalhos muito bons e eu acho que vai ser um debate muito rico. Tenho certeza que o ganho acadêmico será muito grande. E todo ganho acadêmico tem uma repercussão prática no direito. O direito é uma assistência social aplicada, não existe só um mérito acadêmico como se houvesse só uma filosofia apartada da realidade da aplicação do direito. Os ganhos acadêmicos acabam se traduzindo em ações concretas das instituições, mudanças de jurisprudência, mudança de atuar no Ministério Público, e eu acredito muito que isso possa acontecer.
III Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra – uma visão transdisciplinar: www.cidhcoimbra.com
Atendimento à imprensa: ascom@ibdfam.org.br