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CNJ proíbe cartórios de fazerem escrituras públicas de uniões poliafetivas
O Conselho Nacional de Justiça – CNJ decidiu pela procedência do pedido de providência 1459-08.2016.2.00.0000. O placar final da votação foi de 7 votos pela proibição do registro de escrituras públicas de uniões poliafetivas, nos termos do voto do ministro relator, João Otávio de Noronha; 5 votos acompanhando a divergência parcial do conselheiro Aloysio Corrêa para permitir o registro, mas sem a equiparação com os direitos da união estável, e um voto totalmente divergente, do conselheiro Luciano Frota, pela improcedência do pedido.
Intimado pelo CNJ a apresentar as manifestações necessárias, o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM se posicionou pela improcedência do pedido. “O pedido de providências deve ser julgado improcedente, uma vez que obstar o reconhecimento jurídico das uniões poliafetivas afrontaria os princípios da liberdade, igualdade, não intervenção estatal na vida privada, não hierarquização das formas constituídas de família e pluralidade das formas constituídas de família”, diz um trecho da manifestação do IBDFAM. O IBDFAM enviou, ainda, memoriais, ou seja, alegações finais, para demonstrar o equívoco da proibição.
Placar surpreendente
“É no mínimo surpreendente esse placar, esta interferência descabida do CNJ na atividade notarial. Um notário não cria direitos, se limita a colocar num documento e a colocar a sua fé pública”, analisou a desembargadora aposentada e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, Maria Berenice Dias.
Segundo ela, não cabe ao notário se negar a fazer qualquer tipo de transcrição. “Uma onda de conservadorismo e retrocesso chegou ao Conselho Nacional de Justiça, que acabou por outorgar aos tabeliães o poder de julgar se a forma que as pessoas encontram para viver está dentro do conceito de família ou da tutela jurídica do Estado. Com certeza isto extrapola e muito o encargo dos tabeliães, que tem o dever de ofício de consignar o que lhes é dito de alguém que se apresenta em sua plena capacidade. O conteúdo do que lhe é informado para transcrever não pode estar sujeito a nenhum juízo por parte do servidor”, diz.
Para ela, a decisão do CNJ vai na contramão de todos os avanços que vem acontecendo neste século. “Não cabe outorgar no fundo uma atividade que é tipicamente jurisdicional, ou outorgar a um serventuário o direito de dizer o que as pessoas podem consignar ou não. O significado do julgamento é uma sentença de reprovabilidade com relação a algo que existe, sempre existiu e vai continuar existindo, com escritura pública ou sem escritura pública. No momento em que tais situações baterem às portas do Poder Judiciário caberá à Justiça dizer se existirão efeitos jurídicos daquela manifestação. É de lastimar que órgão administrativo maior do Poder Judiciário tenha uma visão tão conservadora da sociedade de fato, como ela é”, observa.
Maria Berenice explica que a proibição do CNJ em nada afeta as escrituras de uniões poliafetivas que já existem. “Elas continuam existindo. É uma manifestação de vontade”, diz.
“Não é condenando à invisibilidade que vai se determinar posturas ao agir das pessoas. Os exemplos são muitos, desde os concubinatos, que eram alijados até virarem união estável reconhecida como família, às uniões homoafetivas e as famílias simultâneas, que ao menos no âmbito da Justiça Federal já estão sendo reconhecidas. Porque as relações poliafetivas devem ficar fora de uma eventual tutela jurídica? Tenho certeza que daqui a alguns anos esse impedimento será superado. A Justiça, um dia, vai tratar esses relacionamentos como uma união estável plural distribuindo obrigação a todos e reconhecendo direito de todos”, reflete.
A vice-presidente do IBDFAM sugere que quem tiver interesse em ter reconhecida sua relação de união poliafetiva pode “gravar uma conversa de whatsapp, reconhecendo essa união, e ir ao tabelionato pedindo que seja feita uma ata notarial”.
“Um ato dessa natureza está eivado de inconstitucionalidade”, afirma advogado
“Em relação a esse julgamento há um equívoco básico, uma falta de compreensão do que é a natureza jurídica da união estável, porque a união estável não é constituída por um ato, a união estável é um fato social”, a afirmação é do advogado Marcos Alves da Silva, diretor nacional do IBDFAM e estudioso do tema.
O advogado explica que uma escritura pública de declaração de união poliafetiva é somente o registro de pessoas, no cartório, de que vivem daquela forma. “Esse é um direito de liberdade das pessoas dizerem e expressarem o que bem quiserem”, observa.
A finalidade dessa declaração é, segundo ele, um reconhecimento próprio. “Ora, como se pode proibir a lavratura de uma escritura pública de qualquer tipo de declaração? Não faz sentido essa proibição. Isso simbolicamente significa um retrocesso. Um ato dessa natureza está eivado de inconstitucionalidade”, analisa.
Para especialista, ainda não é momento para a consolidação da poliafetividade
Por outro lado, a advogada Giselda Hironaka, diretora nacional do IBDFAM, acredita que, “esse ainda não é o momento sócio-filosófico-jurídico adequado para nós, brasileiros, para a consolidação desse fato social”.
Ela expõe: “Quero deixar claro que esta minha resposta prossegue despojada de qualquer viés ou sentimento diferente do singularmente jurídico. Como, por exemplo, qualquer coisa de natureza moral ou religiosa. Creio tratar-se um fato social que ainda não conta com a devida relevância social axiológica capaz de fazê-lo adentrar na ordem jurídica e receber o reconhecimento e a devida proteção do direito”.
Giselda cita a teoria tridimensional do direito do professor Miguel Reale. “Essa teoria desenvolve três dimensões distintas: o fato, o valor e a norma. Enfim, não é pelo simples fato de ser a união poliafetiva um fato social que reflete relacionamento humano que deva ser incondicionalmente acolhida pelo direito podendo gerar os efeitos jurídicos eventualmente aguardados pelos partícipes”, garante.
Giselda explica que uma escritura de união poliafetiva não tem o “condão” de transformá-la em união estável reconhecida pelo direito, e que, portanto, a proibição do CNJ é “inócua”.
“A escritura não constitui união estável, mas apenas declara a sua existência. Diferente do casamento, que se constitui por meio de ato formal, solene, registral. Uma escritura que declara a existência de uma união afetiva apenas traz para as pessoas envolvidas a segurança, a fé pública nada mais. Se isso é verdade, também vale para a união poliafetiva. Assim, uma escritura de união poliafetiva não tem o condão de transformá-la em união estável reconhecida pelo direito. Porque a união poliafetiva é um fato apenas. Não constitui uma união estável e esse ato não gera direitos. Por isso a proibição de registro de escritura pública, no meu entender, é inócua”, aponta. Segundo Giselda, o CNJ poderia expedir uma recomendação aos cartórios para que não utilizem nas escrituras o adjetivo estável “para não trazer qualquer tipo de confusão futura e também para que se acentue o caráter meramente declaratório da escritura”.
Votação
O julgamento do pedido teve início no dia 24 de abril quando foi interrompido pelo pedido de vista do conselheiro Aloysio Corrêa da Veiga. Ao retomar a questão, no dia 22 de maio, o conselheiro Luciano Frota se manifestou pela improcedência do pedido de providência. "O Direito deve acompanhar a dinâmica de mudanças sociais sob pena de não cumprir papel de pacificador das relações. Nosso Direito é baseado em princípios e possibilita atualização do conteúdo pela releitura de seus institutos", disse.
O julgamento foi interrompido, desta vez, pelo pedido de vista do conselheiro Valdetário Monteiro, que hoje expôs seu voto no plenário. “Independente do registro da união poliafetiva os laços ali formados não podem ser objeto de desrespeito ou discriminação social, apenas por evidenciar algo diverso do costume brasileiro”, enfatizou. Monteiro acompanhou o voto do relator.
Instrumento inadequado
A conselheira Maria Tereza Uile, que também votou com o relator, enfatizou que é proibida a discriminação das pessoas em razão de sexo, seja na dicotomia de gênero, seja no plano da orientação sexual de cada um. Ela entendeu que o instrumento – escritura pública - não é adequado. Segundo ela, nos casos das uniões poliafetivas a solução jurídica seria a feitura de ata notarial.
“No que diz respeito ao controle de legalidade, considerando a natureza da escritura pública, eu entendo que não se deve permitir a lavratura de escritura pública, mas que se deve permitir sim, e aí se faz o reconhecimento da situação fática vivida por estas pessoas, que o façam por declaração privada com reconhecimento de firma e que possam adotar a solução da ata notarial”, apontou.
Maria Tereza Uile esclareceu que, a ata notarial diz respeito a fatos jurídicos e a escritura a fatos e negócios jurídicos; a ata tem caráter autenticatório e a escritura tem natureza constitutiva. “A escritura pode ter o condão de ser constitutiva e gerar os efeitos secundários em relação à determinadas questões, inclusive previdenciárias”, disse.
A ata notarial é, conforme a conselheira, lavrada sem juízo de valor ou opinião sobre os fatos, mas com cautela legal. Enquanto na escritura se faz presente um juízo de valor sobre a legalidade. “Nesse ponto é que entendo que como não existe previsão legal para a relação poliafetiva, embora na prática exista e deve ser respeitada. A ata descreve fatos que constituem ilícito. Não entra no mérito do que está sendo declarado nesta ata. Como escritura pública não pode registrar ato ilícito, e ainda não existe previsão legal para este tipo de relação”.
Relação de afeto e amor não é ilícita
O conselheiro Henrique Ávila acompanhou a divergência parcial nos termos do voto do ministro Aloysio Corrêa da Veiga. “A partir da contemplação dessa realidade fática de união estável, a lei entendeu, numa evolução social, atribuir efeitos jurídicos a ela, que pode ser registrada em cartório e pode não ser. O registro é uma constatação pelas partes daquela realidade. Agora, se a lei, como fez com a união estável, vai atribuir consequência jurídica a essa declaração, é outro ponto, é uma questão legislativa”, disse Ávila. Ele refletiu: “Eu tenho dificuldade de dizer que uma relação humana, formada com afeto e amor é ilícita. Então, eu não posso dizer que o cartório está agindo de maneira equivocada ao registrar essa declaração por parte dos interessados. Por essa razão acompanho a divergência nos termos do voto do conselheiro Aloysio”.
“Mera relação de fato”
O ministro João Otávio de Noronha afirmou que “a relação poliafetiva é uma mera relação de fato. Segundo ele, a relação poliafetiva “ainda não foi carimbada pelo direito”.
“Nós não podemos dar consequência jurídica a essas relações porque para isto elas precisam ser consideradas pela lei, e é através da norma jurídica que o direito chama a si os fatos para torná-los jurídicos. É uma mera relação de fato”, disse.
Para Noronha, a Constituição Federal é um sistema que regulamenta todas as relações de família e traça os princípios a serem seguidos pelo legislador. “Ela (a Constituição) não atribui validade ao relacionamento poliafetivo. O sistema normatiza sim as relações familiares, tanto é assim que o concubinato não está regulamentado até hoje. O sistema não acolhe o concubinato. Acolhe a união estável”.
O ministro destacou ainda: “Não é falso moralismo, se as pessoas querem viver uma relação de poliamor que vivam. Mas a escritura pública é para declarar a vontade jurídica das partes, se a vontade é jurídica reputa a vontade ilícita, a vontade contrária a lei, a vontade não permitida pela lei”.
A ministra Cármen Lúcia também acompanhou a divergência parcial. Ela foi enfática ao ressaltar o objeto da discussão. “O que foi trazido ao CNJ foi um pedido de providência, qual a providência que se requer: que o conselho determine à estas serventias, com exemplo para todas as outras, que este modelo de escritura não pode ser adotado”, disse.
A ministra destacou que a liberdade sexual é direito fundamental das pessoas. “Não estamos tratando da relação, mas do dever de um cartório receber a escritura”, ressaltou.
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