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Decisões ainda penalizam direitos da comunidade LGBTI, diz advogada trans
O Brasil, há pouco mais de dois meses, deu um importante passo na garantia dos direitos LGBTI, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a mudança de nome e sexo das pessoas trans no registro civil, mesmo sem cirurgia de transgenitalização. No entanto, recentemente, dois casos, em Santa Catarina e no Distrito Federal, demonstraram que ainda há um longo caminho pela frente quando se fala de respeito aos direitos da comunidade LGBTI.
Em Santa Catarina, um plano de saúde se negou a cobrir as despesas de uma cirurgia de retirada dos seios de um transexual, considerando-a de cunho estético. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no entanto, determinou o ressarcimento para o paciente. De acordo com o desembargador Jorge Luís Costa Beber, o procedimento cirúrgico de mudança de sexo aumenta o bem-estar psicológico do indivíduo por aproximá-lo da sua identidade de gênero.
Segundo a decisão, todas as práticas necessárias à transformação são ofertadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e como o sistema público não oferece aos seus usuários cirurgias apenas embelezadoras, o caráter do procedimento não restringe-se apenas ao aspecto estético.
“É óbvio que existe, também, uma faceta estética no resultado da cirurgia, mesmo porque o abalo psicológico impingido a quem sofre os efeitos da transexualidade relaciona-se a divergências entre a forma como o indivíduo se enxerga e suas características físicas e anatômicas”, afirmou o desembargador.
Costa Beber argumentou: “Mas ela é absolutamente secundária ao seu objetivo maior, que é a adaptação ampla – psicológica, social, legal, biológica e física do paciente ao gênero adotado.”
Presídio feminino
Uma decisão da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal negou o pedido de 11 transexuais femininas e travestis que estão em prisão preventiva e queriam ser retiradas de prisões masculinas.
De acordo com a juíza do caso, Leila Cury, “existem diferenças biológicas entre as transexuais que não realizaram cirurgia de redesignação, as travestis e as mulheres cis (quem se vê com o mesmo sexo em que nasceu)”. Para Cury, há riscos de que a convivência gere desentendimentos, brigas mais sérias e até estupros.
“A musculatura esquelética de quem nasceu homem tem fator hormonal que lhe assegura vantagem de força sobre a mulher”, afirma. “Não se deve olvidar que as pacientes, assim como a grande massa carcerária de mulheres cis é de pessoas jovens, portanto, todas, sem exceção, com alto percentual de libido. A possibilidade de vir a ocorrer relação sexual forçada não é percentualmente desprezível.”
Para Leila Cury, também haveria risco às agentes que atuam nas unidades e que teriam problemas se precisassem conter transexuais e travestis em caso de atos de violência.
A juíza contestou os argumentos dos autores do pedido, que basearam-se em decisão do Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, que, ao julgar um habeas corpus, mandou transferir, em fevereiro, duas travestis que dividam celas com 31 homens, em presídio de São Paulo, para outro compatível com a orientação sexual. Ela descartou o efeito erga omnes – que tem efeito ou vale para todos – da decisão do ministro.
Advogada diz que ainda existem magistrados despreparados para tratar dos temas LGBTI
A advogada Gisele Alessandra Schmidt e Silva, que entrou para a história como a primeira transexual a subir no plenário do STF e fazer sustentação oral, justamente no julgamento para autorização da mudança de nome e sexo das pessoas trans no registro civil, sem a necessidade de cirurgia de transgenitalização, comentou os dois casos.
Sobre a cirurgia de retirada dos seios de um transexual, Gisele considerou sábia a decisão do TJSC. “A mastectomia, no caso dos homens trans, não é mero procedimento estético, que muitas vezes pode ser considerado como futilidade desnecessária. Mas sim um procedimento necessário que irá lhe garantir uma vida plena e feliz, assegurando, além de uma melhor aceitação social, sua saúde mental que jamais deve ser menosprezada”, afirmou.
Já sobre a decisão que negou a solicitação de 11 transexuais femininas e travestis de serem transferidas para prisões femininas, a advogada foi bastante crítica. Ela lembrou que, primeiramente, a pessoa que está sob tutela estatal em restrição de liberdade, seja por prisão cautelar ou apenada, também deve ter assegurada sua integridade física, sendo este um dever do Estado.
“A juíza fundamentou sua decisão baseada em critérios biológicos que nem sempre obedecem a um padrão, basta observarmos a estrutura física de algumas atletas cis, por exemplo. Ainda, em sua fundamentação, salientou apenas a tutela da integridade das mulheres cis, mas esqueceu de trazer uma solução adequada à questão das mulheres trans, já que se colocadas junto com homens invariavelmente sofrerão toda espécie de abusos. Portanto, considero uma decisão leviana e com fundamentação rasa’, salientou.
Para ambos os casos, é preciso buscar amparo em variadas fontes legislativas, constitucionais e infraconstitucionais, que garantem o direito da comunidade LGBTI, como lembra Gisele Alessandra. “Desde 2008, a portaria 1.707 do Ministério da Saúde criou o processo transexualizador do SUS em reconhecimento ao fato de as transformações corporais como uma necessidade inerente a saúde da população transgênero, assim é inadmissível essa negativa por parte dos planos de saúde. Já na questão da negativa de transferência do presídio, neste caso específico, onde foi impetrado habeas corpus e o mesmo foi negado, podemos utilizar o Recurso em Sentido Estrito - art. 581, XI do Código de Processo Penal”, reitera.
Tanto a decisão da juíza da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal quanto a decisão do Plano de Saúde de negar cobrir o valor da mastectomia vão contra os avanços conquistados pelas frentes que batalham pelos direitos LGBTI. E esses casos, segundo Gisele Alessandra, mostram que, infelizmente, avançamos a passos curtos.
“A decisão do STF, que aprovou a mudança de nome e sexo no cartório, mesmo sem cirurgia ou decisão judicial, foi a maior conquista que a população transgênero obteve em nossa história e colocou o Brasil na vanguarda neste aspecto. Porém, ainda encontramos magistrados despreparados para tratar desse tema. Assim, só posso concluir e acreditar que as abordagens jurídicas citadas demonstram essa falta de conhecimento no tratamento às pessoas trans. Prefiro acreditar que há despreparo a imaginar que as decisões tenham sido motivadas por discriminação ou preconceito’, finaliza.
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