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Depois de mediação, atleta trans tem direito a usar banheiro sozinha
Em procedimento de mediação, promovido pela Defensoria Pública, realizado na quinta-feira, 22 de março, em Curitiba (PR), a Federação de Patinagem do Paraná voltou atrás na determinação que restringia o acesso de atleta transgênero ao banheiro feminino.
No dia 19 de fevereiro, em Assembleia Geral Ordinária, em Curitiba, a Federação resolveu, por unanimidade de votos, que a atleta Ana*, de nove anos, deveria, em todos os campeonatos, utilizar o banheiro feminino acompanhada de responsável do sexo feminino.
Ricardo Pretoro, presidente da federação, alegou que o documento foi mal interpretado. “O que aconteceu foi que houve uma interpretação equivocada da ata. Está liberado, a atleta pode ir ao banheiro sozinha ou acompanhada de uma pessoa do sexo feminino, mas isso ela que decide. Vamos mudar isso na ata”.
Segundo o Termo de Comprometimento, a Federação comprometeu-se a realizar nova assembleia para retificar a ata em questão; tentar viabilizar vestiários familiares, caso a estrutura do local comporte; e respeitar o nome social da atleta “a fim de que todas as identificações e anúncios durante o campeonato sejam feitos por este”.
Entenda o caso
Ana é uma criança transgênero. Ela pratica a patinação artística há um ano e se apresenta na categoria feminina. Nesse período, a família tem enfrentado situações constrangedoras nos campeonatos de patinação. “Já aconteceu dela ser chamada pelo nome masculino na hora da competição. Um mês antes dessa competição, nós enviamos os laudos e pedimos para que respeitassem o nome social dela e eles concordaram. O organizador disse que foi erro do locutor do evento. Nesse dia, ao chegar em casa, Ana chorou muito. Foi um grande constrangimento”, diz o empresário Gustavo Cavalcante, pai de Ana.
“Em fevereiro deste ano, fomos surpreendidos com essa ata de assembleia, na qual ficou decidido entre os clubes que ela poderia competir no feminino, porém não poderia usar o banheiro sozinha apenas acompanhada por responsável do sexo feminino”, conta Gustavo.
O Transgrupo Marcela Prado, Associação Paranaense da Parada da Diversidade, Grupo Dignidade, Centro Paranaense da Cidadania, entre outras entidades, encaminharam nota de indignação à Federação por discriminação à criança transgênero. “Entendemos que houve discriminação pelo fato de serem impostas à jovem atleta restrições que não foram aplicadas às(aos) demais atletas, bem como a exigência de ser acompanhada de responsável do sexo feminino, quando é do conhecimento da Federação de Patinação do Paraná que a jovem atleta é filha de um casal homoafetivo masculino e que, portanto, os responsáveis por ela são dois homens”, diz a nota.
“Ela é uma menina que sonha com collants e fantasias”, diz pai
Contrariando as expectativas, o sonho de formar uma família se realizou com rapidez. Apenas um mês após serem habilitados para a adoção, Gustavo e seu esposo Cleber Reikdal, técnico de patinação, foram comunicados pela vara da infância sobre um trio de irmãos aptos à adoção. O relatório sobre os irmãos dizia que Guto* era muito bravo, Karla* gostava de feijão e Alex*, que posteriormente passou a se chamar Ana, gostava de pão, margarina e doce de leite e havia gostado do colar da psicóloga.
No primeiro contato, o casal percebeu que tratavam-se de crianças com um histórico de sofrimento. “Alex tinha um olhar triste e muito emotivo; Guto era muito medroso e os três eram muito tímidos”, lembra Gustavo. “No início não percebemos nada, somente depois de quase um mês de guarda provisória é que alguns comportamentos do Alex chamaram nossa atenção, como quando se vestiu com as roupas da irmã e quando furou a orelha sozinho, tamanha era a vontade de se ver no gênero com o qual se reconhece. Ela é uma menina que sonha com collants e fantasias”, diz Gustavo.
Os pais pediram orientação para uma psicóloga, que acompanhou Ana até julho do ano passado. Eles procuraram o Transgrupo Marcela Prado, que auxiliou com as questões legais (eles já conseguiram que o colégio respeite o nome social e estão tentando a mudança no plano de saúde), e desde setembro de 2017, Ana faz acompanhamento no Hospital das Clínicas de São Paulo. “Não foi fácil, mas tentamos viver um dia de cada vez, para os irmãos Ana é sua irmã. Eles lutam por ela e esperam ansiosos toda vez que ela retorna de São Paulo para ouvir as histórias da viagem”, diz.
Direitos da população Trans estão sendo garantidos pelo Poder Judiciário
No dia 1º de março de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu ser possível a alteração de nome e gênero no assento de registro civil mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. A presidente do Supremo, Ministra Cármen Lúcia, considerou que o julgamento “marca mais um passo na caminhada pela efetivação material do princípio da igualdade, no sentido da não discriminação e do não preconceito”.
A Corte Suprema ainda vai julgar o Recurso Extraordinário (RE) 845779, com Repercussão Geral Reconhecida, que discute a reparação de danos morais para transexual que teria sido constrangida por funcionário de um shopping center em Florianópolis (SC) ao tentar utilizar banheiro feminino.
Quando o julgamento teve início, em 2015, o Ministro Luís Roberto Barroso, relator do processo, destacou que os transexuais são uma das minorias mais marginalizadas e estigmatizadas da sociedade. “O remédio contra a discriminação das minorias em geral, particularmente dos transgêneros, envolve uma transformação cultural capaz de criar um mundo aberto à diferença, onde a assimilação aos padrões culturais dominantes ou majoritários não seja o preço a ser pago para ser respeitado”, disse.
O ministro avaliou que o tema não é simples no debate mundial, uma vez que diz respeito à igualdade na dimensão do reconhecimento e está relacionada à aceitação de quem é diferente “de quem foge ao padrão, de quem é historicamente inaceito pela ideologia e pelos modelos dominantes”.
As decisões do STF em recursos de repercussão geral reconhecida são importantes e muito aguardadas pela comunidade jurídica, isto porque impactam em vários processos. Nesses casos, o STF cria uma tese que vincula todos os casos semelhantes. A advogada Melissa Veiga, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, espera que o julgamento desse recurso siga a tendência inclusiva, garantindo o direito do transexual utilizar o banheiro que quiser.
*Os nomes das crianças foram substituídos para preservar sua privacidade.
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