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Série “Um olhar sobre a adoção”
A maioridade chegou. E agora?
Com a chegada da maioridade, aqueles que passaram boa parte de suas vidas em abrigos – muitos desde a infância – se veem sozinhos, numa encruzilhada. Sem terem sido adotados, são obrigados a encarar o mundo fora dos muros que o cercaram por tantos anos. É hora de deixar o acolhimento institucional e assumir seu destino. Mas, eles não podem ser esquecidos.
De acordo com o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), existem no Brasil 3.629 adolescentes, entre 12 e 17 anos, disponíveis para adoção. Este número representa quase a metade do total de cadastrados de todas as idades no país (7.607). Os dados evidenciam a importância do trabalho feito pelos grupos de apoio à adoção e demonstram a necessidade de olharmos para a adoção tardia de uma outra maneira. Mas, afinal, para onde vão essas moças e esses rapazes que completam 18 anos e não tiveram a chance de serem adotados? O que o Estado faz em situações como essa?
Em 2015, no Ceará, 10 adolescentes realizaram o sonho de comemorar o aniversário de 15 anos. Todas elas moravam juntas em uma casa de acolhimento, localizada em Fortaleza. A festa fazia parte do “Projeto Estreitando Laços: Reconstruir, Recomeçar e Reconquistar”. Segundo a desembargadora Lisete de Sousa Gadelha, na época presidente da Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional (CEJAI/CE), um dos objetivos do programa era proporcionar a agilização dos processos, contribuindo para a manutenção dos vínculos familiares e o retorno à família biológica ou ampliada, para que o encaminhamento à adoção viesse a se efetivar quando findadas as possibilidades de permanência na família de origem, priorizando o princípio da duração razoável do processo, com vistas a minimizar as consequências de adoção tardia.
“Nos deparamos com 10 jovens que, como qualquer adolescente, sonhavam em debutar. Dentre elas, encontramos duas meninas com deficiência mental e uma cadeirante e deficiente visual. Então surgiu a ideia do “Baile Beneficente de Debutantes das Unidades de Acolhimento 2015”, relembra. A festa foi um grande sucesso e contou com o apoio de vários juízes e desembargadores. Quase dois anos depois, qual a realidade dessas adolescentes que agora estão prestes a atingir a maioridade? O que teria acontecido com elas?
Conforme Lisete Gadelha, dentre as 10 jovens participantes do baile, seis retornaram às suas famílias. As outras quatro, sendo três com necessidades especiais, não foram adotadas e permanecem em acolhimento. “Continuo acompanhando, sem interferir na atual gestão, o cumprimento dos trabalhos desenvolvidos, em especial as avaliações sobre o estado de saúde físico e emocional das crianças e dos adolescentes acolhidos, promovendo, na medida do possível, o apoio de forma a garantir o acesso às políticas públicas necessárias e à reintegração familiar”, afirma.
A desembargadora diz ainda que, em consequência do projeto, foi feita a regulamentação do apadrinhamento afetivo, financeiro e a prestação de serviços em todo o estado do Ceará, mediante Órgão Especial nº. 13/2015 do Tribunal de Justiça Estadual. “Estatisticamente, no primeiro semestre de 2015, foram concluídos 26 procedimentos de adoção no Ceará, sendo que 30 processos restaram em andamento. Contribuímos para a menor judicialização de demandas ao enfatizar o fortalecimento do vínculo familiar e a maior presença dos Conselhos Tutelares no apoio às famílias”.
Conforme a assistente social da Unidade de Acolhimento Nova Vida (Ceará), Vanessa Nascimento de Andrade, os adolescentes que não são adotados e completam 18 anos podem permanecer nas instituições onde estão abrigados até terem alguma autonomia. “Hoje temos adultos de até 29 anos, sem nenhum familiar e que não possuem condições de terem independência. No caso dos deficientes, o abrigo continua acolhendo esses jovens, apesar de não estarem mais sob medida de proteção judicial”, explica.
Outra situação preocupante sobre a adoção no Brasil é a baixa procura por grupos de irmãos, o que pode levar à permanência em abrigos até a maioridade. Em 25 de maio, Dia Nacional da Adoção, o Tribunal de Justiça do Tocantins (TJTO) divulgou nota relatando o problema no estado, onde 77% dos candidatos cadastrados não aceitam adotar irmãos. Pela lei brasileira, a prioridade é de que um grupo de irmãos nunca seja separado durante o processo. Ainda de acordo com o comunicado, apesar de haverem mais crianças e adolescentes do que famílias inseridas no cadastro, muitas delas não se encaixam no perfil desejado pelos futuros pais.
ACOLHIMENTO FAMILIAR
No início do mês de junho, o Governo Federal anunciou que pretende zerar o número de crianças de até seis anos que vivem em abrigos. A meta é atender mais de nove mil crianças que estão nessas unidades por meio do programa Família Acolhedora – serviço que proporciona o atendimento em ambiente familiar. Dados do Censo do Sistema Único da Assistência Social (Censo Suas) 2016 mostram que 522 municípios têm o serviço de Família Acolhedora, que atende 1.837 crianças e adolescentes. Ao todo, 2.341 famílias brasileiras estão aptas a realizar esse acolhimento.
O Família Acolhedora atende crianças e adolescentes em medidas protetivas por determinação judicial, em decorrência de violação de direitos (abandono, negligência, violência) ou pela impossibilidade de cuidado e proteção por sua família. O serviço garante atenção individualizada e convivência comunitária. Para fazer parte, as famílias interessadas devem passar por um processo de seleção, capacitação e acompanhamento.
Segundo Sérgio Kreuz, juiz de direito da Vara da Infância e da Juventude da cidade de Cascavel, no Paraná, o Acolhimento Familiar, no Brasil, é preferencial desde 2009 (Lei 12.010/2009), mas menos de 5% das crianças em situação de acolhimento estão em famílias acolhedoras. “Estamos muito longe de países como Inglaterra e Escócia, onde o acolhimento familiar se aproxima de 80% dos acolhidos. Os poucos recursos públicos existentes para esta área são quase todos destinados aos acolhimentos institucionais. É preciso que os recursos públicos destinados aos acolhimentos sejam também destinados, preferencialmente, para os serviços de acolhimento familiar”, esclarece.
De acordo com o juiz, o serviço de acolhimento familiar é de alta complexidade e exige uma rede de proteção à criança e ao adolescente bem estruturada e equipe técnica capacitada, pois ainda está começando a se desenvolver no Brasil. “Não acredito que em tão pouco tempo o Governo Federal, que até aqui nada fez neste sentido, consiga implementar uma meta tão auspiciosa. De qualquer forma, é um começo”, aponta.
A realidade de crianças e adolescentes acolhidos, destituídos do poder familiar e que não encontram pretendentes à adoção é muito cruel. Além disso, muitos deles reúnem problemas de saúde e atrasos cognitivos. Levando essa realidade em consideração, Sérgio Kreuz implantou em 2006, na cidade de Cascavel, no oeste do Paraná, o Serviço de Acolhimento Familiar, onde uma família, cadastrada e treinada, recebe em casa uma criança ou um adolescente com remotas chances de adoção.
A ideia é que o acolhimento seja temporário e que o menor seja reintegrado à sua família ou encaminhado para adoção. Caso nenhum dos casos seja possível, ele poderá permanecer na família acolhedora até os 21 anos de idade. “Conseguimos praticamente acabar com as instituições de acolhimento. O exemplo está se espalhando e hoje a Corregedoria-Geral da Justiça do Paraná, o Conselho de Supervisão das Varas de Infância e Juventude, juntamente com o Ministério Público, Conselho Estadual da Criança e do Adolescente e Governo do Estado (Secretaria de Estado da Família) elegeram como prioridade para os próximos dois anos reduzir drasticamente o número de crianças institucionalizadas, substituindo o ultrapassado e secular modelo de acolhimentos institucionais por acolhimentos familiares, muito mais humanizados e vantajosos”, afirma o juiz.
Ainda conforme Sérgio Kreuz, o Acolhimento familiar representa uma troca de paradigma, mas assim como toda mudança, sofre resistências. Talvez por isso, não tenha avançado significativamente, mesmo sendo elevado ao grau de preferencial há tanto tempo. “Quem conhece e está realmente observando os interesses da criança e do adolescente acaba se convencendo que o acolhimento institucional está ultrapassado e que hoje temos uma alternativa muito mais vantajosa”, completa.
Acesse os links abaixo e confira relatos de quem não foi adotado; de quem fez adoção tardia e de quem adotou irmãos. E também a matéria sobre a exposição Filhos, do advogado e fotógrafo Eurivaldo Bezerra, autor da imagem de capa da edição deste Boletim. Mais: incentivo à adoção livre de preconceitos.
"Elas só querem ter uma família e serem amadas"
Exposição baseada no livro "Filhos" estará presente no Enapa 2017
"Adoção livre de preconceito tem que ser incentivada por todos"
O Brasil tem hoje mais de 47* mil crianças e adolescentes esquecidos em abrigos. É uma situação cruel e dramática, que envergonha o País. A edição 31 da Revista IBDFAM, lançada em maio, tratou do tema adoção. Prestes a completar 20 anos de existência, o IBDFAM se junta à causa da adoção com a proposta de um anteprojeto de Lei do Estatuto da Adoção, ponto de partida para o Projeto “Crianças Invisíveis”, que será lançado no XI Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões, de 25 a 27 de outubro, em Belo Horizonte, do qual esta série, Um olhar sobre a adoção**, também faz parte.
* Números oficiais do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas: 47.133, em 24 de maio de 2017 – Fonte: Conselho Nacional de Justiça – CNJ.
** Consultoria: Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão de Adoção do IBDFAM.
Atendimento à imprensa: ascom@ibdfam.org.br