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Divã de Família
Em entrevista ao portal IBDFAM, o psicanalista Paulo Fernando Pereira de Souza, terapeuta familiar e de casal, revela que as famílias sempre foram plurais. “Não existe novidade alguma na variedade familiar”. Segundo o especialista, ela está “na tentativa de reconhecer os diversos arranjos como igualmente válidos”.
Paulo fala sobre os conflitos recorrentes na vivência de um clínico de família, com destaque para a desigualdade de gênero. Ele explica o que é a família tentacular e garante: o atual estágio da sociedade, a delinquência juvenil, a violência, as drogadicções, etc, não têm nenhuma relação com a dissolução do modelo de família “tradicional”.
O que é a família tentacular?
Paulo Fernando - Família tentacular foi um termo cunhado por Maria Rita Khel, ou pelo menos popularizado por ela, para se referir ao desenho familiar que guarda a memória de uniões, separações e novas uniões afetivas. Famílias que proporcionam convivência e relações que ainda não tem uma nomeação adequada e que tem o potencial de carregar novas experiências subjetivas. Por exemplo, pensemos que tenho um meio irmão por parte de pai, que por sua vez tem um meio irmão por parte de mãe e que convivemos todos numa experiência fraterna. No plano da convivência seríamos irmãos, do ponto de vista legal ou sanguíneo, a relação não seria catalogável.
Maria Rita enfatizou em seu artigo o potencial da relação entre irmãos, ressaltando a possibilidade de uma função fraterna que poderia ser sustentáculo da convivência, do aprendizado, da identificação, da socialização e de um espaço se não ainda público, ao menos além do estritamente individual ou familiar, ou seja, uma experiência mais democrática e menos limitadora em relação ao poder parental somente. A função fraterna, ainda não devidamente estudada e comentada, é um vislumbre teórico de um tijolo a ser acrescido nas funções materna e paterna conforme descritas pela psicanálise.
Família tentacular também foi o contraponto colocado pela autora à ideia de que estamos perdendo uma experiência familiar que era segura, perfeita e indo em direção ao caos. Não só ela nunca foi perfeita e segura, bem como as novas experiências carregam novas possibilidades, não só desafios.
Os desenhos familiares variados são plenos de possibilidades de encontros e descobertas, assim as nomeações como o de madrasta, padrasto, muitas vezes correspondem não aos malvados dos contos de fadas, mas como os maiores responsáveis pelos cuidados parentais. Na verdade, as famílias estão sempre mudando e muitas formas de famílias diferentes convivem ao mesmo tempo. Histórica e antropologicamente falando, as famílias são sempre plurais. Não existe novidade alguma na variedade familiar, embora as pessoas não percebam assim intuitivamente, a novidade está na tentativa de reconhecer os diversos arranjos como igualmente válidos. Nossa percepção intuitiva do tema família pode nos dar a ideia de um passado regular, mas não é bem assim.
As primeiras famílias brasileiras foram o encontro dos portugueses e índias, o que levou Darci Ribeiro a afirmar que nós somos um país condenado ao futuro porque não podíamos nos identificar nem com a índia cativa, nem com o português bexiguento. A família com casamento religioso e monogâmico foi um processo buscado intensamente pelo estado e igreja que não se dissociavam naquele momento, mas muitos outros tipos de família existiam ao mesmo tempo. Famílias índias, escravas, mestiças, brancas com diferentes composições, diferentes religiosidades. A concomitância de várias relações foi a regra e não a exceção.
Observa-se que hoje a família nuclear tem sido mais valorizada e idealizada do que nunca. O que isso significa?
Paulo Fernando - O primeiro modelo estudado, a família patriarcal açucareira foi descrita por Gilberto Freyre e conviveu com outros arranjos na senzala, nos agregados. Ela era também diferente, hoje se sabe, de sua contemporânea, a família Paulista patriarcal. O modelo de família que identificamos hoje como “A família” foi um modelo explicitamente escolhido pela República com objetivos racistas e de modernização. A família monogâmica, de dupla moral sexual, pai provedor e mãe educadora, era um modelo inacessível para as famílias pobres e negras, cujos pais mal provinham, mães trabalhavam fora e filhos estavam alijados da escola. Era também muito distante das famílias rurais com seu enorme número de filhos dedicados ao trabalho agrícola e também com pequeníssimo acesso a educação.
O modelo da família nuclear burguesa não foi apenas proposto, foi propagandeado, inculcado pela ação da igreja e do Estado e venceu. Na verdade, as famílias venceram as alternativas coletivistas à criação familiar e o modelo nuclear urbano burguês tornou-se o representante das famílias, o modelo. As famílias em desacordo com o modelo predominante foram consideradas desestruturadas, ou irregulares, mas seguiram existindo. Posteriormente, as próprias famílias sentir-se-iam em falta em relação ao modelo internalizado.Como Maria Rita cita no artigo sobre a família tentacular, a descoberta da psicanálise é tributária do ambiente emocional constituído nessa organização familiar, onde o drama edipiano tem seu cenário privilegiado. Podemos acrescentar que os porões das assim ditas “boas famílias” heterossexuais e burguesas estão abarrotados de casos de incesto, maus tratos em relação às crianças e da dominação explícita das mulheres, mas nada disso abalou sua popularidade. A associação do discurso religioso católico à família nuclear burguesa oitocentista, por exemplo, é uma adaptação modernizadora, não se trata da mesma família bíblica, basta citar as diferenças em relação à questão da progenitura e do poder total sobre os filhos. O fato de ser o modelo vencedor faz com que mesmo grupos antes detratores desse modelo de família, tenham passado a desejar a ser reconhecidos como essas famílias, o que Roudinesco aponta. Mas a prevalência do modelo nuclear não tem uma explicação simples, embora pareça se apoiar na percepção e reação às mudanças presentes e eminentes.
Existe um sentimento nostálgico na sociedade brasileira com relação à família nuclear? O que isso representa?
Paulo Fernando - A ideia de que houve um momento em que a experiência familiar não teve conflitos é fantasiosa porque a família tem presentes interesses divergentes de gênero e de idade. Podemos apenas supor que o mito da infância feliz que corrige a experiência de grande desamparo e fragilidade da infância humana alimente por contiguidade o mito da família feliz, ou seja, imaginar que o saudosismo da família feliz do passado poderia ser tributário do júbilo por sobrevivermos, apesar de todos os riscos. Podemos também relacionar o saudosismo em relação à família nuclear burguesa a uma experiência de classe média que percebe grandes alterações em suas organizações familiares, podemos citar o divórcio; a entrada da mulher no mercado de trabalho e a crítica de gênero, seja em relação à dominação da mulher, seja em relação às relações homoafetivas. Parte desse conjunto de mudanças desalinha o casamento de classe média do casamento religioso, o que sem dúvida, pode ser sentido como uma perda de estabilidade. Penso que isso é o que se pode depreender da enorme valorização das cerimônias tradicionais (casamentos de véu e grinalda), com toda força ritualística de um sacramento que ungido por Deus não permite a separação humana.
Isso num momento em que não só as uniões duram cada vez menos, bem como as pessoas vivem cada vez mais, com maior saúde e mais tentadas pela busca do prazer. O casamento indissociável, com fins reprodutivos e baseado em modelos tradicionais de gênero, é a contraposição explícita das mudanças ocorridas nos últimos anos. As famílias das classes populares sempre conviveram com uma maior mobilidade em sua composição, o trabalho feminino além do lar não é novidade para essas famílias; a possibilidade de desuniões e novas uniões não era tão cerceada pela limitação legal anterior ao divórcio e havia modalidades peculiares da organização popular como as descritas por Cláudia Fonseca a respeito da circulação das crianças. Elas, portanto, não são famílias ameaçadas pela perda do modelo, mas podem ser desejosas de se enquadrar no modelo em busca de ascensão social e de adaptação à urbanização.
No Brasil tivemos uma urbanização massiva recente e no ambiente urbano a diminuição no número de filhos, por exemplo, é um aspecto importante da viabilidade econômica das famílias, assim como a dupla responsabilidade econômica. Se é preciso conjecturar e pensar sobre os motivos da permanência de um modelo familiar desalinhado das mudanças evidentes em seu entorno, o motivo pelo qual as famílias seguem sendo importantes para as pessoas, independente de suas composições e contradições é óbvio: as famílias fornecem a expectativa de cuidado e apoio num mundo hostil. Famílias são fundamentais para a construção de identidade; aprendizado e proteção diante das incertezas econômicas e sociais. Esse potencial de proteção que faz que os Estatutos da Criança e do Adolescente e do Idoso, por exemplo, corresponsabilizem famílias e Estado na proteção aos mais frágeis. Na definição de família colhida por Cynthia Sarti, família é com quem podemos contar. Obviamente, para que possam cuidar e amparar, as famílias necessitam ser cuidadas e amparadas, não podendo ser as responsáveis diante de um recuo do Estado.
A expectativa de proteção familiar é tão forte que nas situações em que a família desprotege, cerceia, agride, abusa, violenta e abandona, muitas vezes as pessoas culpam a si mesmas e protegem a ideia de família. Então se existe instabilidade quanto ao modelo, o desejo de viver em família vai muito bem, fortíssimo e explícito. Não existe nenhuma necessidade de proteger as famílias brasileiras de sua dissolução. Proteger o modelo nuclear exigiria combater as mudanças e os valores predominantes na sociedade de consumo atual, em especial a busca pelo prazer, o consumismo, o individualismo e o imediatismo. Mas tão pouco o modelo nuclear heterossexual nuclear está ameaçado de extinção, ele estará presente como mito e referência saudosa e como possibilidade de escolha de parcela significativa de pessoas, em especial, as famílias com escolha religiosa. O que o modelo está ameaçado de perder, se já não perdeu, é sua naturalização e, por conseguinte, sua capacidade normativa.
A família tentacular é o modelo predominante na nossa sociedade hoje?
Paulo Fernando - Temos que esclarecer que embora seja grande o número de divórcios é também grande o número de recasamentos, o que levaria a pensar que a experiência tentacular cresce. Mas temos que nos ater ao fato que a nomeação “família tentacular” é uma nomeação de um percurso de encontros e desencontros, uma ideia psicanalítica de um percurso do desejo, não um conceito aceito por todos os saberes. Assim, o número de famílias tentaculares não é medido pelo IBGE, nem faz parte necessariamente das discussões antropológicas, econômicas ou religiosas.
Outros saberes nomeiam as mudanças no modelo familiar de forma diversa. Além da ideia naturalizada que temos de família, outro grande complicador quando abordamos o tema famílias é que muitos discursos normativos tomam a família como referência, não necessariamente se tratando do mesmo fenômeno descrito. As famílias como unidade de produção e distribuição de renda (economia); das responsabilidades e deveres em relação ao estado (direito); a família do casamento religioso; das relações de aliança, consanguinidade e descendência (antropologia); da biologia; das mudanças históricas e dos diversos segmentos sociais, podem ser muito diferentes. Podemos dizer que cada campo de saber constrói ideias de família e famílias. Não existe a família natural ou universal.
Existe relação entre a dissolução da família tal como a conhecíamos até a primeira metade do século XX e a delinquência juvenil, a violência, as drogadicções, etc?
Paulo Fernando - A delinquência juvenil, as drogadicções e a violência são fenômenos complexos nunca redutíveis a uma causa, a um eixo de explicação. Podemos afirmar que cientificamente nenhuma relação causal se estabelece entre os diferentes modelos familiares e os fenômenos descritos, sendo arbitrário atribuir a novos modelos de famílias, aspectos de deterioração social.
A família nuclear burguesa produziu cientistas, artistas, empresários, ladrões, assassinos. Bons cidadãos e delinquentes. Assim como os demais tipos de famílias presentes no mesmo momento histórico produziram pessoas adaptadas, bem como desadaptados. No entanto, essa associação entre novos arranjos e deterioração se dá por pelo menos duas vidas: preconceito normatizador: se não é o modelo de família preconizado, então deve causar danos; pela impressão errônea de que a é fácil remontar a causa a partir do fenômeno apresentado. Assim encontrando entre os pais de adolescentes em conflito com a Lei alguns separados, ou que usam vermelho nas comemorações natalinas, pode se supor apressadamente que usar vermelho no Natal ou ter pais separados predispõe à delinquência. Quando para estabelecer essa relação precisaria se partir de uma amostragem significativa de pais separados, ou de usuários de vermelho natalino, e acompanhar seus filhos, identificar quantos cometem atos infracionais, comparar com grupos significativos de pais nãos separados e os que não usam vermelho no Natal.
Se houver alguma relação estatística, e nada indica que exista, ainda restaria entender o que pode vir a ser a relação de causalidade ou de favorecimento ao fenômeno inicial. Até hoje não existem indicativos de que pais separados sejam piores, ou que usar vermelho no Natal ajude os filhos a cometerem atos infracionais. Em relação à delinquência existe um elemento estatisticamente relevante que pode servir de previsor para comportamentos indesejados que é a ausência da escola. Adolescentes afastados da escola são muito mais suscetíveis de envolvimento em atos ilegais que os frequentadores de escola. Existem fenômenos correlatos como o abuso de drogas. Temos o grande aumento do imediatismo, do consumismo e do individualismo. Temos a diminuição do espaço público, a rudeza da vida nas grandes cidades, a desconfiança em relação às instituições, preconceito racial e social, o aumento das organizações criminosas. Mesmo assim não temos uma epidemia de delinquência juvenil, os índices oscilam, mas não costumam estar em curva destoante das demais violências urbanas. Temos sim uma sociedade violenta que tem a imagem de si como pacífica e que se choca com a realidade.
A assim chamada delinquência juvenil tem características peculiares de acordo com o ILANUD (Instituto das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento dos Adolescentes), representando cerca de 10 por cento de todos os delitos cometidos (se equipararmos atos infracionais a delitos criminosos). Do total de delitos realizados pelos adolescentes, 75% é de crimes contra o patrimônio. Do total de delitos contra o patrimônio, 50% é de furtos e, portanto, sem o recurso à violência no sentido estrito do termo. É claro que a sensação de ser furtado pode ser - e quase sempre é - violenta para quem sofre a ação. E é claro que os adolescentes em conflito com a Lei são um grave problema social, mesmo que não fossem grave problema de segurança pública.Não podemos ser alarmistas, mas não devemos minimizar os dados, a participação de adolescentes em roubos e assassinatos existe, é indesejada e grave. Quando um adolescente comete um crime e prossegue nessa prática fracassam os pais, a família, a escola, a comunidade e o Estado.
Em relação aos adolescentes em conflito com a lei existe um desencontro enorme entre o que prevê o ECA, o que é recomendado pelos especialistas e a prática das prefeituras, governos estaduais e federal, em franco desacerto com o recomendado e com a legislação em vigor. Por incrível que pareça, a grande revolução a ser feita no combate ao envolvimento dos adolescentes com o crime é a implementação das medidas e procedimentos previstos pelo ECA. Há mais de uma década se discursa sobre reformar o ECA nos aspectos ligados à questão infracional e não se implementam os leques de suas medidas e a dinâmica entre elas.
Em relação à drogadicção temos uma experiência social hipócrita, uma propaganda quase constante da mecânica das drogas, e uma propaganda antidrogas episódica, como argumenta Eugênio Bucci. A cerveja lhe traz aquele mulherão. Imagine o que pode lhe trazer alguma droga ilícita? O imperativo de aproveitar ao máximo aqui e agora, sem considerações sobre o futuro e sobre as consequências são características tão marcantes de nosso estágio capitalista que o espantoso é que não tenhamos mais adictos. Muitos de nossos desempenhos são e serão cada vez mais turbinados por drogas lícitas e ilícitas de autodesempenho, grande variedade e oferta constante. Colocar o aumento do uso de drogas e os problemas daí decorrentes na cota das transformações familiares faz pouco ou nenhum sentido. O mesmo vale para a violência urbana.
Quais são as maiores preocupações das famílias atualmente?
Paulo Fernando - Um clínico que trabalha com famílias recebe um número expressivo de queixas relacionadas às dificuldades de lidar com as patologias mentais severas de um dos membros da família e o trabalho se dá no sentido de que a família possa mobilizar suas possibilidades de cuidados, sem impossibilitar as mudanças e crescimento. As transformações sociais se representam de diversas maneiras na clínica, embora nenhum consultório possa ser tomado como parâmetro de mudanças.
Várias das conversas dos casais relacionam-se ao enfrentamento da dupla moral sexual que permitia aos homens livre trânsito sexual fora do casamento, ao mesmo tempo, que o proibia às mulheres. Um capítulo específico do sistema de dominação de gênero que cerceia a expressão sexual feminina. Seja pela repetição do modelo tradicional com dupla moral, seja pelo pacto de fidelidade realmente recíproco, seja pela ausência de sexo, até o casamento aberto, os pactos conjugais hoje mostram sinais de mudança e de pressão por mudanças.
As discussões sobre o cotidiano familiar refletem frequentemente a pressão sobre os privilégios masculinos. Os privilégios persistem, mas a sustentação deles deixou de ser natural, os privilégios são constantemente questionados no entorno social e cultural. O balanço de poder num casal deixou de ser tão previsível. A experiência masculina parece estar em transformação seja pela ameaça dos privilégios, seja pelo impacto de novas relações com os filhos. Uma nova experiência de paternidade se apresenta nos consultórios com todos os desafios e bônus. O desconforto feminino ao contrário aparece, mesmo com conquistas expressivas, as mulheres parecem submetidas a muitas exigências concomitantes tendo que se duplicar, triplicar no esforço de atender solicitações contraditórias e idealizadas sobre seus desempenhos como esposa, mães e trabalhadoras eficientes.
Outro fenômeno recorrente na clínica é o que passei a nomear de parentalidade flácida, pais e mães que se colocam como impotentes diante dos mais diversos aspectos dos cotidianos dos filhos como escovação dentária, frequência à escola, alimentação e regras mínimas. Pais que se põem a chorar porque os filhos se recusam a obedecer, ou que não suportam a ideia de que os filhos os deixem de amar por minutos.
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