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Homem que agrediu filha é condenado com base na Lei Maria da Penha
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) aplicou a Lei Maria da Penha em um caso de pai que agrediu a filha. A pena foi fixada em três meses de detenção, em regime aberto. A defesa argumentou que o réu apenas empregou meio corretivo para educar a filha, mas o argumento não foi aceito pela 15ª Câmara de Direito Criminal do TJSP.
Conforme o processo, a vítima teria brigado com a irmã mais nova, e por essa razão o acusado passou a agredi-la, desferindo golpes, murros, pisando no rosto e costelas da jovem, além de tentar enforcá-la. A menina conseguiu desvencilhar-se e se trancou no banheiro, de onde ligou para a polícia. A defesa recorreu ao TJSP alegando que a aplicação da lei 11.340/06 deveria ser afastada, uma vez que o réu é genitor da vítima e apenas empregou meio corretivo para educá-la.
Em seu voto, o relator do recurso, desembargador Willian Campos, afirmou que foi correta a aplicação da Lei Maria da Penha ao caso, visto que as agressões foram cometidas pelo réu contra vítima do sexo feminino, que residia no mesmo local que o agressor e com ele mantinha laços familiares.
O magistrado também destacou que no laudo pericial constou que a vítima sofreu lesões no rosto e no braço, compatíveis com suas declarações. Segundo ele, é inaceitável a alegação do réu de que teria agido sob o manto do exercício regular do direito, uma vez que não se limitou a corrigir sua filha; pelo contrário, agrediu-a violentamente, extrapolando o denominado “direito de correção”, usado na educação dos filhos. Os desembargadores Encinas Manfré e Ricardo Sale Júnior também compuseram a turma julgadora.
A advogada Adélia Moreira Pessoa, professora universitária e presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM, explica que a Lei Maria da Penha é aplicável em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher, seja por ação ou por omissão, baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, trazendo uma perspectiva de gênero para tratar da violência contra a mulher. “Entre outras hipóteses, considera-se violência contra a mulher a praticada no âmbito da unidade doméstica, ou seja, o espaço de convívio permanente de pessoas, com vínculo familiar, seja biológico ou de outra origem, por afinidade, inclusive as esporadicamente agregadas. Assim, pode ser aplicada quando a pessoa em situação de violência for mulher e o autor da agressão tiver sido o marido, companheiro, namorado, filhos, pais, padrastos, irmãos, cunhados, tios e avós ou outros familiares ou pessoas que com ela convivam, mesmo que esporadicamente”, disse.
De acordo com Adélia Moreira, o conceito de comunidade familiar proposto pela Lei Maria da Penha é amplo, abrangendo uma variedade de laços no âmbito doméstico. “É preciso ter presente que a lei estabeleceu em seu texto esta amplitude, que não pode ser reduzida pela interpretação, não se circunscrevendo à relação de conjugalidade. Assim, se presente a ação dolosa causadora da lesão na filha, e não havendo qualquer excludente, cometeu o pai um crime de lesão corporal, previsto no artigo 129, parágrafo 9º: ‘Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade’”, esclarece.
Cultura Patriarcal - Segundo a advogada, caso fosse provado que a ação criminosa não foi em razão de gênero poderia ser suscitada a inaplicabilidade da Lei Maria da Penha e com isso haveria a possibilidade de aplicação dos institutos despenalizadores da Lei 9.099. “Entretanto, precisamos atentar para o fato de que a socialização de crianças e adolescentes é ainda permeada pela ordem patriarcal, desde os primeiros anos, quando se inicia a lógica de dominação do masculino sobre o feminino e, muitas vezes, através da violência. Por outro lado, não pode este pai alegar estar no exercício regular de direito, pois o Poder Familiar (ou melhor, autoridade parental) é um instituto de caráter eminentemente protetivo, exercido por ambos os pais, um direito-função, um poder-dever de desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em vista o interesse e a proteção do filho. Educar os filhos implica na necessidade de impor limites. No entanto, a utilização de castigo é condicionada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Não pode o pai, como no caso analisado, extrapolar e utilizar-se de punições exageradas, a pretexto de correção. Assim, castigos corporais praticados por pais, causando lesões, enquadram-se como conduta penalmente tipificada”, comenta.
Adélia Moreira observa que a Lei nº 13.010/2014 (Lei Menino Bernardo) alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), incluindo o artigo 18-A, que estabelece que a criança e o adolescente têm o direito de serem educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar dos mesmos, tratá-los, educá-los ou protegê-los. “Define ainda esta lei o que se considera castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em sofrimento físico ou lesão. Acrescenta ainda o artigo 18 B do ECA, que os pais ou demais pessoas encarregadas de cuidar, educar ou proteger crianças e adolescentes, que utilizarem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto estarão sujeitos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, às seguintes medidas, que serão aplicadas de acordo com a gravidade do caso: I - encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família; II - encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; III - encaminhamento a cursos ou programas de orientação; IV - obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado; V – advertência”, explica.
A advogada ainda frisa que dentre os efeitos da condenação, conforme o Código Penal, pode o juiz decretar a incapacidade para o exercício do pátrio poder, tutela ou curatela, nos crimes dolosos, sujeitos à pena de reclusão, cometidos contra filho, tutelado ou curatelado, sendo que esses efeitos devem ser motivadamente declarados na sentença criminal - entretanto, inaplicável, no caso, por tratar-se de pena de detenção e não de reclusão. “Além disso, é necessário lembrar que o pai poderá ser destituído do poder familiar por conta dessa conduta, por meio de decisão judicial, se ficar provado que houve excesso na imposição da disciplina, como previsto pelo artigo 1.638 do Código Civil. Mas isso, no juízo cível. Em relação à conceituação da violência doméstica e familiar contra a mulher, apesar de a Lei Maria da Penha, de uma maneira didática, explicitar as formas de violência, inclusive com exemplos, ainda persistem compreensões limitadas na conceituação ‘das violências’: que tipos de comportamentos cada um dos parceiros nomeia como ‘violência’? O que os ‘outros’ entendem como ‘violência’? Qual o seu limite em uma relação familiar? É urgente tirar o véu que encobre os mitos e estereótipos para que possamos ver a realidade, desnaturalizando-se a violência contra a mulher e contra os filhos”, conclui.
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