Notícias
TJCE autoriza transexual a mudar nome em certidão de nascimento
O Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) confirmou a sentença que autorizou uma transexual a realizar mudança de nome no registro civil de nascimento. A decisão, proferida pela 6ª Câmara Cível do TJCE no dia 18 de novembro, teve como relatora a desembargadora Sérgia Maria Mendonça de Miranda.
Segundo a magistrada, a sociedade deve respeitar a diversidade sexual, convivendo com as diferenças, não sendo digno para uma mulher permanecer com o nome de homem se este fato lhe causar angústia e humilhação, afastando-a da sociedade, quando a ordem social dos dias atuais é a da inclusão.
Conforme os autos, em 6 de agosto de 2014, A.L.F.C ajuizou ação requerendo a retificação do nome civil de nascimento, com pedido de modificação de prenome. Sustentou como causa o fato de ser transexual, embora não tenha feito a cirurgia de transgenitalização. Acrescentou que a aparência de mulher, por contrastar com o nome e o registro de homem, já lhe causou vários transtornos sociais.
No dia 10 de abril deste ano, a juíza Silvia Soares de Sá Nóbrega, da 2ª Vara de Registros Públicos de Fortaleza, julgou procedente o pedido e determinou a mudança de seu registro civil de nascimento. A magistrada entendeu que um novo prenome em conformidade com a aparência física constituirá na realização da garantia constitucional da liberdade referente à proteção da pessoa em sua individualidade.
Em desacordo com a sentença, o Ministério Público do Ceará (MP/CE) interpôs recurso de apelação (nº 0881321-91.2014.8.06.0001) no TJCE. O MP defendeu que a mudança do prenome masculino por outro feminino não corresponde ao do sexo registrado em certidão de nascimento. Foi ainda argumentado que a mudança não deve ser analisada somente pelos fatores públicos, notórios e aparência física, mas principalmente pela transsexualidade anunciada, que deveria estar adequadamente comprovada. Ao julgar o caso, a 6ª Câmara Cível manteve a decisão de 1º Grau, determinando a retificação do registro civil de nascimento da requerente. Para a desembargadora Sergia Miranda, é direito de uma pessoa ser o seu nome, e não apenas o ter, indo ao encontro do direito à identidade da pessoa.
Por fim, a magistrada afirmou que é inegável o fato de que a discrepância entre o prenome formal da transexual e sua aparência física, indiscutivelmente feminina, lhe causam constrangimentos e humilhações públicas, bem como danos à sua saúde psíquica e integridade física, tendo em vista a natureza feminina de seu sexo psicológico. Com isso, se tornou clara a possibilidade de alteração do prenome, por ser uma situação necessária e excepcional.
A advogada Ana Carla Harmatiuk, diretora nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), vê a decisão como relevante, pois ela se insere em um contexto de proteção aos valores existenciais. “Nesse sentido, o IBDFAM tem cumprido um importante papel em refletir e difundir a compreensão sistemática do Direito Civil em sintonia com os princípios constitucionais e com os direitos humanos. O caso, julgado pela juíza Silvia de Sá Nóbrega, versa sobre diversidade de gênero. Trata-se de uma pessoa que se reconhece, manifesta-se publicamente, sente-se como alguém de um gênero diverso daquele que lhe foi designado ao nascer. Para usar os termos da filósofa Judith Butler, é o gênero que define a nossa inteligibilidade como sujeito, de direito ou da comunidade. Viver em uma situação em que o gênero com o qual uma pessoa se reconhece e se expressa socialmente não é o mesmo que aquele que consta em seu registro gera uma constância de sofrimentos. Atos banais de nosso dia a dia, como fazer uma viagem, ir a banco ou realizar concurso público, por exemplo, tornam-se potenciais conflitos em que se exige do sujeito se afirmar e tentar provar ser quem é”, afirma.
De acordo com a advogada, a experiência em processos que visam à alteração documental permite oferecer um reflexo desta situação nos tribunais. Segundo ela, na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná há um projeto de extensão chamado ‘Concretizando Direitos Humanos LGBT’, que tem realizado a propositura de pedidos de alteração de nome e sexo no registro civil. “A partir dele, observamos que persiste certa insegurança jurídica no reconhecimento desta realidade. Já obtivemos sentenças das mais variadas, desde indeferimentos (sob diversos argumentos, principalmente o da não realização da cirurgia) até deferimento completo (alguns independentes de cirurgia), passando por deferimentos parciais (alguns casos extremos, como modificação do nome sem alteração do sexo por falta da cirurgia). Dentro deste incerto cenário, destaca-se, positivamente, a decisão aqui comentada, que apresenta, a nosso ver, compreensão adequada da temática. Nela transparece o poder-dever do Judiciário de garantir os direitos fundamentais constitucionalmente previstos, como a dignidade da pessoa humana, a intimidade, a liberdade (de autodeterminação), assim como os Direitos da Personalidade - tão essenciais que elevados à condição de direitos fundamentais -, como o direito ao nome”, comenta.
Conforme Ana Carla Harmatiuk, a decisão está também em harmonia com os Princípios de Yogyakarta, que orientam a aplicação da legislação internacional de direitos humanos quando estamos diante da diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero. “O primeiro princípio aponta que todos os seres humanos têm direito a desfrutar dos direitos humanos, sejam eles de todas as orientações sexuais e identidades de gênero possíveis. Destaca-se também o terceiro princípio, que é mais específico em garantir às pessoas de identidades de gênero diversas o direito do reconhecimento perante a lei, de forma que possam gozar de capacidade jurídica em todos os aspectos da vida. Ainda, garante-se o direito ao trabalho e à educação - é importante dizer que para pessoas trans (expressão usada pelos movimentos sociais) a alteração do nome e sexo no registro civil é muitas vezes etapa necessária para ter acesso a um trabalho digno, bem como evitar a evasão escolar e garantir o acesso e a permanência na Universidade. Portanto, temos à frente um ótimo exemplo de como magistrados(as) podem efetivar direitos fundamentais e dos direitos humanos, sem restrições que não se justificam, a nosso ver”, disse.
Ana Carla Harmatiuk exemplifica que enquanto no Brasil estamos discutindo se a cirurgia de transgenitalização é prova essencial para que o Judiciário possa autorizar a retificação do nome e do sexo das pessoas trans, na Argentina qualquer pessoa pode se dirigir a um cartório e realizar a alteração, em um ato administrativo. “Nesse sentido, considero a decisão analisada especialmente acertada porque ela não exige realização da cirurgia. A inclusão jurídica não pode se resumir àquelas pessoas que têm acesso às disputadas vagas do Sistema Único de Saúde para fazer a cirurgia ou a quem possa realizar o procedimento em hospitais particulares, o que acarreta altos custos. Além disso, nem todas as pessoas que se sentem desconfortáveis com o nome (generificado) e com o sexo que possuem em suas certidões, podem ou desejam realizar uma cirurgia. A propósito, em recente julgamento do Recurso Extraordinário 845.779/SC (que versa sobre a existência de dano moral na hipótese de restrição injustificada de uso de banheiro público adequado à identidade de gênero), ainda não concluído em virtude do pedido de vistas do ministro Luiz Fux, o ministro Edson Fachin declarou não considerar correto o condicionamento do reconhecimento da identidade de gênero à realização de eventual cirurgia de redesignação. Ao se expressar dessa forma, apontou dois aspectos importantes. Primeiro, viola os direitos fundamentais e os direitos humanos da pessoa condicionar o reconhecimento de sua identidade de gênero à realização da cirurgia. Ainda destaca que essa realização é eventual, ou seja, não é o destino inexorável de toda pessoa transexual. Pode mesmo nunca vir a acontecer. A identidade de gênero, portanto, diz respeito a como alguém se reconhece e se expressa socialmente, o que não necessariamente significa readequação cirúrgica. Portanto, defendemos que a mudança de nome e sexo no registro de nascimento pode ser realizada em casos de diversidade de gênero, independentemente dos tratamentos de redesignação sexual”, argumenta.
Segundo Ana Carla, a decisão é relevante e denota que o Poder Judiciário pode exercer papel exponencial na tutela dos direitos das minorias, como os das pessoas trans. “Assim, aos poucos, percebem-se avanços nos direitos LGBTs. Porém, ainda localizamos magistrados que negam a alteração do nome, especialmente diante da não-realização da cirurgia de redesignação de sexo. Destaca-se, também, a importância da doutrina (a exemplo de Maria Berenice Dias, vice-presidente do IBDFAM) e dos movimentos sociais, para além da jurisprudência, para a conquista da igualdade na diversidade. Cabe aos juristas, a nosso ver, ouvir as demandas e a elas responder adequadamente, de modo a garantir o acesso de uma pessoa a seu direito essencial de ser reconhecida socialmente. Espera-se, assim, a plena superação da exclusão de direitos ainda enfrentada”, conclui.
Atendimento à imprensa: ascom@ibdfam.org.br