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Lei que cria Estatuto Digital da Criança e do Adolescente é sancionada; especialista comenta principais mudanças

Sancionada na quarta-feira (17), a Lei 15.211/2025 institui o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente. A norma que estabelece regras específicas para proteger crianças e adolescentes em ambientes digitais, e ficou conhecida como ECA Digital, havia sido aprovada pelo Congresso Nacional no fim de agosto.
Entre os principais pontos da legislação estão a proibição de “loot boxes” em jogos eletrônicos, o bloqueio de acesso de menores a conteúdos pornográficos, a exigência de mecanismos eficazes de verificação de idade e a criação de ferramentas de supervisão parental. Também fica vedado o uso de técnicas de perfilamento para direcionamento de publicidade a crianças e adolescentes.
De acordo com a lei, plataformas digitais, redes sociais, aplicativos e sistemas operacionais devem adotar, desde a concepção, configurações que garantam o nível mais elevado de privacidade e proteção de dados. Além disso, contas de usuários de até 16 anos em redes sociais deverão estar vinculadas ao perfil de um dos responsáveis legais.
A legislação ainda prevê a atuação de uma autoridade administrativa autônoma, que terá a função de fiscalizar o cumprimento das regras, expedir regulamentos e avaliar os mecanismos de segurança adotados pelas empresas de tecnologia.
A nova legislação foi inspirada no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e no Marco Civil da Internet para ampliar a proteção de direitos fundamentais na esfera digital.
A fiscalização caberá à Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD, que foi transformada em agência reguladora por Medida Provisória. A nova agência terá autonomia administrativa, orçamento ampliado e poderá aplicar sanções a empresas que descumprirem a lei.
O presidente vetou três trechos da lei. Um deles retirou a menção à Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel como responsável por cumprir decisões judiciais de bloqueio de plataformas, mantendo essa atribuição em decreto presidencial. Também foi vetada a destinação imediata ao Fundo da Criança e do Adolescente das multas aplicadas, em razão das regras da Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO. Por fim, Lula reduziu o prazo de entrada em vigor da lei de um ano para seis meses, por meio de Medida Provisória.
Novo paradigma
Segundo o advogado Fabiano Rabaneda, especialista em Direito eletrônico e Tecnologia da Informação e em Direito de Família e Sucessões, a sanção da Lei 15.211/2025 inaugura um novo paradigma de proteção jurídica para crianças e adolescentes no ambiente digital, estabelecendo diretrizes que impactam de maneira imediata o cotidiano de famílias, educadores e provedores de serviços online.
“Essa legislação se apresenta como um marco normativo que, à semelhança do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA no plano físico, visa salvaguardar direitos fundamentais no universo digital, respondendo ao fenômeno da ‘adultização’ precoce e aos riscos decorrentes da exposição desassistida às redes sociais e aos jogos online”, observa.
O especialista afirma que o combate à adultização se manifesta na imposição de mecanismos efetivos para a identificação e pronta remoção de conteúdos abusivos, englobando exploração sexual, violência, bullying, incitação à autolesão, jogos de azar, publicidade predatória e quaisquer práticas que possam comprometer o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes.
“A lei, nesse ponto, restringe inclusive a monetização e o impulsionamento de conteúdos que retratem crianças e adolescentes em contexto sexualizado ou que promovam padrões nocivos à formação psíquica e social.”
Adequações
Fabiano Rabaneda destaca que as plataformas deverão adotar sistemas confiáveis de verificação de idade, “sendo vedada a mera autodeclaração para o acesso a conteúdos restritos — medida essencial para coibir que crianças e adolescentes venham a burlar as barreiras de acesso já estabelecidas pela legislação”.
“A experiência digital deverá ser ajustada de acordo com a respectiva faixa etária, reconhecendo que crianças e adolescentes são sujeitos em desenvolvimento e portadores de necessidades e vulnerabilidades específicas. Dessa forma, busca-se prevenir o contato com materiais ilegais ou manifestamente inadequados, assegurando que a classificação indicativa seja efetivamente observada.”
Conforme o advogado, o uso compulsivo das redes e jogos passa a ser enfrentado mediante o desenvolvimento de configurações-padrão que limitem práticas como reprodução automática, notificações constantes e sistemas de recompensa por tempo de uso. “O direcionamento de publicidade, por sua vez, sofre sensíveis restrições: é vedada a elaboração de perfis comportamentais de crianças e adolescentes para fins comerciais, bem como o direcionamento de anúncios baseados em dados pessoais.”
“O controle sobre sistemas de recomendação, a limitação do compartilhamento de geolocalização e a obrigação de alerta prévio sobre qualquer forma de rastreamento evidenciam o compromisso do legislador com a transparência e o respeito à autonomia progressiva do público infantojuvenil. A disponibilização de recursos de suporte emocional e bem-estar digital também passa a integrar o rol de deveres das plataformas, aproximando a regulação digital das melhores práticas internacionais de proteção à infância”, afirma.
Corresponsabilidade
Membro do IBDFAM, Fabiano Rabaneda explica que o Estatuto estabelece um regime de corresponsabilidade e de instrumentalização do dever de supervisão parental para as famílias.
“Contas de crianças e adolescentes em redes sociais, especialmente até os 16 anos, deverão ser vinculadas a um responsável legal, com possibilidade de suspensão em caso de fraude etária. Os pais e responsáveis passam a dispor de ferramentas efetivas e de fácil acesso para gerenciar o uso das plataformas, monitorar a privacidade, restringir compras, controlar contatos, visualizar métricas de uso e ativar salvaguardas, tudo com informações claras e disponíveis em língua portuguesa”, pontua.
Ainda conforme a legislação, acrescenta o especialista, o consentimento para download de aplicativos pelo público infantojuvenil dependerá de autorização livre e informada, vedando-se a presunção de permissão tácita. “Além disso, a lei consagra o direito e o dever de orientação digital, reconhecendo o papel educativo dos pais no acompanhamento do acesso e uso da internet pelos filhos, com apoio de instrumentos técnicos que facilitam o cumprimento dessa função.”
“No contexto dos jogos online, destaca-se a vedação das denominadas ‘caixas de recompensa’ (loot boxes) em produtos direcionados a crianças e adolescentes, medida que busca coibir práticas potencialmente lesivas, como o estímulo a jogos de azar e a condutas compulsivas. As interações entre usuários também são objeto de salvaguardas reforçadas, com limitação padrão e necessidade de consentimento dos responsáveis para o acesso a funcionalidades interativas”, detalha.
O Estatuto, segundo Rabaneda, também estabelece mecanismos ágeis para a remoção de conteúdos criminosos, obrigando as plataformas a agir mediante simples notificação e reforçando a transparência institucional por meio da publicação periódica de relatórios em português sobre canais de denúncia e medidas de moderação. “A fiscalização e regulamentação ficam a cargo da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, o que assegura maior especialização e autonomia na aplicação da lei.”
Por fim, ele cita a preocupação expressa com a orientação das famílias já no ambiente de consumo: embalagens de dispositivos eletrônicos deverão alertar pais e responsáveis sobre a necessidade de proteção frente a conteúdos impróprios.
“Essas mudanças, tomadas em conjunto, traduzem uma ampliação concreta do espaço de proteção e cuidado no universo digital, promovendo uma experiência online mais segura, ética e responsável para crianças e adolescentes, e conferindo às famílias instrumentos jurídicos e técnicos para o exercício pleno da parentalidade responsável”, aponta.
Desafios
De acordo com o advogado, as plataformas digitais serão obrigadas a adotar uma postura de proteção desde a concepção (“privacy by design” e “safety by design”), estruturando seus produtos e serviços para garantir privacidade e segurança de crianças e adolescentes desde o desenvolvimento até a operação.
“Será imprescindível implementar sistemas confiáveis de verificação de idade — vedada a mera autodeclaração —, mecanismos de supervisão parental robustos e restrições efetivas à exposição a conteúdos impróprios, publicidade dirigida e práticas que estimulem o uso compulsivo, como caixas de recompensa (loot boxes) em jogos.”
Essas mudanças, segundo ele, exigirão adaptações tecnológicas profundas, revisão de modelos de negócio (com destaque para o fim do perfilamento para publicidade infantil) e o desenvolvimento de ferramentas de moderação e transparência mais sofisticadas. “A necessidade de interoperabilidade, padronização entre sistemas e o desafio de atender simultaneamente a diferentes regulações nacionais — em um ambiente global — impõem obstáculos relevantes. Além disso, caberá à ANPD a tarefa de regulamentar e fiscalizar esse novo cenário, com o desafio adicional de estruturar-se rapidamente para dar conta das demandas impostas pela lei, tudo isso sob um prazo reduzido de apenas seis meses.”
“Os maiores desafios residem na complexidade tecnológica das exigências, no impacto sobre seus modelos de negócios tradicionais e na capacidade da ANPD de regulamentar e fiscalizar um ambiente digital em constante e rápida evolução”, destaca.
Proteção
Fabiano Rabaneda ressalta que o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente parte de uma premissa fundamental: “crianças e adolescentes são titulares de liberdade de expressão, porém essa liberdade é necessariamente supervisionada, em razão de ser considerada um ser humano em formação, ainda em processo de construção de valores, de discernimento sobre o que é lícito e sobre as consequências de suas condutas”.
“Esse aspecto — a condição peculiar de desenvolvimento — é central. Crianças e adolescentes, em sua fase formativa, muitas vezes não possuem plena noção dos riscos ou dos danos associados a determinados comportamentos, especialmente no ambiente digital, onde a exposição é ampla, os conteúdos são variados e as consequências podem ser irreversíveis. Infelizmente, a sociedade presencia casos de crianças e adolescentes que, sem compreender o perigo de certas brincadeiras ou desafios virtuais, acabam colocando suas vidas em risco ou mesmo perdendo a vida por não dimensionar os resultados de seus atos”, observa.
Na visão do especialista, a legislação busca equilibrar a garantia da liberdade de expressão e do acesso à informação com o dever de proteção integral, determinando que esse direito seja exercido sob a orientação e supervisão dos pais, responsáveis e das próprias plataformas. “O Estatuto estabelece mecanismos para a retirada célere de conteúdos manifestamente prejudiciais, mas ao mesmo tempo preserva a liberdade de expressão ao excepcionar conteúdos jornalísticos e editoriais, coibir o uso abusivo dos instrumentos de denúncia e garantir o direito ao contraditório em casos de remoção de conteúdo.”
“Além disso, a lei proíbe a vigilância massiva, protege a privacidade e assegura que as obrigações sejam proporcionais à natureza e ao risco do serviço, adotando uma abordagem responsiva e diferenciada”, complementa.
Para Rabaneda, o novo marco normativo reconhece que a liberdade de expressão infantojuvenil deve ser promovida, mas sempre dentro de parâmetros de supervisão e cuidado, ajustados à sua condição de pessoa em desenvolvimento. “Isso garante não só a formação para o exercício consciente desse direito no futuro, mas também a preservação da integridade física, psicológica e moral das crianças e adolescentes diante dos riscos específicos do ambiente digital”, conclui.
Por Débora Anunciação
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