Notícias
STF vai julgar se Lei Maria da Penha vale para casos de violência de gênero sem vínculo familiar ou afetivo
.jpg)
Atualizado em 11/09/2025
O Supremo Tribunal Federal – STF reconheceu, em Plenário Virtual, a repercussão geral do Recurso Extraordinário com Agravo – ARE 1537713, no Tema 1.412, que questiona se a Lei Maria da Penha pode ser aplicada em casos de violência de gênero contra mulheres mesmo quando não há vínculo familiar, doméstico ou afetivo com o agressor. Ainda não há data definida para o julgamento.
O caso concreto chegou ao STF após decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – TJMG, que negou a aplicação de medidas protetivas a uma mulher ameaçada por razões de gênero em um contexto comunitário e determinou a remessa do processo ao Juizado Especial Criminal.
Para o Tribunal estadual mineiro, a lei se restringe a situações de violência contra a mulher ocorridas no âmbito de relações familiares, domésticas ou de natureza afetiva.
No recurso, o Ministério Público de Minas Gerais – MPMG argumenta que essa interpretação viola a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), tratado internacional de direitos humanos do qual o Brasil é signatário.
Segundo o MP, a limitação estabelecida pela Justiça mineira afasta obrigações internacionais assumidas pelo Estado brasileiro no combate à violência de gênero.
Repercussão geral
O ministro Edson Fachin, relator do recurso, manifestou-se pelo reconhecimento da repercussão geral da matéria. Para ele, a discussão deve esclarecer o alcance dos instrumentos legais de proteção aos direitos humanos das mulheres em situações de ameaça ou violência baseada no gênero, mesmo fora dos contextos expressamente previstos na Lei Maria da Penha.
“Diante dos obstáculos históricos e culturais à igualdade e ao acesso à justiça das mulheres, torna-se fundamental verticalizar o debate sobre o acesso a instrumentos efetivos de prevenção”, destacou Fachin.
Ele também ressaltou que, além das exigências institucionais e jurídicas impostas a países signatários de tratados internacionais, há um compromisso específico com a proteção das mulheres e a prevenção de todas as formas de discriminação e violência, conforme a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e outros documentos do sistema interamericano.
A decisão tomada no processo deverá orientar todos os casos semelhantes em tramitação na Justiça brasileira.
Interpretação sistemática
A professora Adélia Moreira Pessoa, presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, defende que o Judiciário, ao aplicar a lei, deve adotar uma interpretação sistemática na busca pelo “melhor sentido possível” e analisando-a de forma conjunta, contextualizada e em harmonia com as demais normas jurídicas, a fim de garantir a efetividade do Direito. “A pior interpretação é a meramente literal”, declara.
“Para compreender o adequado alcance da norma, o aplicador da lei – neste caso, o STF – deve considerar o sistema normativo em que ela se insere, como a Constituição e, especificamente, e as convenções internacionais ratificadas pelo Brasil. Nesse sentido, a interpretação sistemática constitui um dos métodos clássicos de interpretação jurídica, assim como a interpretação teleológica, ambos voltados a apreender o sentido completo das normas e assegurar sua aplicação adequada, contribuindo para a aplicação legítima e racional do direito”, explica.
Segundo ela, o Judiciário não se limita à simples aplicação de leis, mas sim exerce influência na formação e evolução do próprio Direito e da sociedade. Desse modo, as decisões da Justiça podem tanto impulsionar mudanças sociais e, portanto, combater preconceitos, quanto perpetuar estereótipos ultrapassados.
“Nas decisões judiciais está presente a visão de mundo do julgador. Nesses casos, a neutralidade é uma falsa ideia e está em processo de superação a clássica figura do magistrado neutro, ascético, cumpridor da lei e distante das partes e da sociedade, conforme já analisado em vários estudos”, esclarece.
A especialista destaca ainda que o Direito contemporâneo deve ser interpretado pelo sistema de Justiça à luz de novos paradigmas, incorporando também os tratados internacionais ratificados pelo Brasil. No contexto do tema que será analisado pelo STF, ela ressalta, em especial, a importância da Convenção de Belém do Pará.
“O reconhecimento dessas Convenções é afirmado pelo art. 5º, § 2º, da Constituição, sendo necessário tecer uma rede de proteção à mulher, coibindo toda forma de discriminação e, portanto, de violência contra a mulher. Em um cenário de exacerbada violência, a inação do Poder Público significaria conformar-se com um verdadeiro ‘estado de coisas inconstitucional’, nos termos já reconhecidos na Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental – ADPF 347, de 2015”, pontua.
Lei geral
Conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM, Adélia Pessoa afirma que a Lei Maria da Penha, de fato, foi criada para combater a violência contra a mulher no âmbito doméstico, familiar e nas relações íntimas de afeto. Segundo ela, uma eventual decisão do STF que amplie o alcance da norma para abranger qualquer caso de violência de gênero, mesmo fora desses contextos, traria impactos positivos nos campos jurídico, social e cultural.
“O STF estaria dando uma interpretação sistemática à Lei Maria da Penha, alinhando-a com os princípios de direitos humanos e de ações afirmativas. Faria o controle de convencionalidade, pois os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil estabelecem padrões de proteção às mulheres em situações de violência de gênero, tanto no âmbito público como no privado, que devem ser respeitados pelos Estados-partes”, afirma.
A especialista entende que, ao ter o seu alcance ampliado, a norma poderia se tornar uma lei geral de proteção contra a violência de gênero em diversos espaços públicos, como ambiente de trabalho, escolas, universidades, transporte público ou até mesmo em relações ocasionais, “aproximando-se de uma legislação antidiscriminatória e de proteção ampla à mulher, um verdadeiro avanço civilizatório”.
“Ao abrir caminho para futuras decisões judiciais, fortaleceria a proteção às mulheres em situações de violência de gênero que teriam mais oportunidades de acesso à justiça pois uma decisão do STF garantiria que o sistema de justiça e a segurança pública, em todo o país, adotassem medidas mais eficazes para prevenir e punir a violência de gênero e vários feminicídios poderiam ser evitados”, avalia.
Direitos humanos
Ela também acredita que a decisão contribuiria para uma mudança social de reconhecimento da violência de gênero não apenas como resultado de conflito familiar ou afetivo, mas sim como uma questão de direitos humanos. “Aumentaria a confiança das mulheres em denunciar e fortaleceria a rede de apoio às mulheres vítimas, reforçando a leitura de que a proteção da mulher contra violência é um direito humano fundamental”, diz.
“A mudança teria um forte efeito simbólico, ao reconhecer que a violência contra a mulher não se restringe ao lar, mas constitui uma questão estrutural, cultural e social. Poderia fortalecer campanhas de conscientização e políticas públicas mais amplas, representando um avanço no enfrentamento da violência de gênero sistêmica”, analisa.
Por isso, Adélia Moreira Pessoa entende que uma decisão favorável da Corte Suprema ampliaria a proteção às mulheres e ajudaria a reduzir a tolerância social a assédios, perseguições e intimidações, tanto nas ruas quanto no trabalho.
“A mudança exigiria a ampliação da competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar, assim como a criação de novas Varas e Delegacias Especializadas, demandando investimentos em estrutura e recursos humanos e garantindo um atendimento mais humanizado, com equipes preparadas para lidar com violência de gênero, distinto da rede penal comum”, conclui.
Por Guilherme Gomes
Atendimento à imprensa: ascom@ibdfam.org.br