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STJ reconhece união estável de forma incidental para viabilizar adoção póstuma

Atualizado em 28/08/2025
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ autorizou um pedido de adoção póstuma e reconheceu, exclusivamente para fins do processo, a união estável dos adotantes, que viveram juntos por mais de 30 anos. O caso trata de uma criança entregue voluntariamente pela mãe biológica.
Segundo informações do STJ, ao entrar na Justiça com o pedido de adoção e destituição do poder familiar, o casal contou que a criança foi entregue a eles quando ainda era bebê. O juiz negou o pedido por considerar que a mãe biológica se arrependeu e que houve tentativa de burlar o cadastro de adoção. Mesmo assim, eles recorreram da decisão.
Antes do julgamento do recurso, um dos pretensos adotantes faleceu. Ao final, o Tribunal de segunda instância decretou a perda do poder familiar da genitora, que novamente teria “desistido” da criança, e deferiu o pedido de adoção ao casal.
No STJ, herdeiros do adotante falecido interpuseram recursos sustentando, entre outras questões, a falta de provas da união estável para autorizar a adoção conjunta, além do desrespeito ao cadastro nacional.
Ambiente familiar estável
O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator do caso, explicou que o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA exige, para a adoção conjunta, que haja casamento civil ou união estável, além da comprovação de um ambiente familiar estável. Estes requisitos são verificados ao longo do processo por meio de documentos, entrevistas e estudo psicossocial. O objetivo é garantir que a criança seja acolhida em um lar seguro e afetuoso – o que, segundo o ministro, ficou comprovado nesse caso.
Ele destacou ainda que, mesmo sem decisão definitiva sobre a união estável, esse reconhecimento pode ser feito de forma incidental dentro da própria ação de adoção, apenas para esse fim. Como os adotantes declararam viver em união estável, e isso foi confirmado pelo estudo social e pelas testemunhas, o Tribunal entendeu que havia estabilidade familiar suficiente para autorizar a adoção conjunta.
Quanto à adoção póstuma, Villas Bôas Cueva considerou que havia manifestação clara da intenção do falecido em adotar a criança, o que autoriza a adoção após a morte do adotante, prevista no ECA.
No caso, embora a ordem do Cadastro Nacional de Adoção não tenha sido seguida, a criança já vivia com a família há mais de 13 anos. Para o relator, retirá-la desse ambiente causaria grande prejuízo, sendo mais importante garantir seu melhor interesse.
Assim, o STJ manteve a adoção válida, inclusive em relação ao adotante falecido, e rejeitou os recursos dos herdeiros.
O processo tramita em segredo de Justiça.
Requisito legal
A advogada Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão Nacional de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, explica que a decisão reconhece a união estável apenas no âmbito do processo de adoção, sem a existência de ação autônoma.
“Esse reconhecimento incidental atende ao requisito legal para adoção conjunta e é considerado suficiente desde que respaldado por prova robusta do vínculo familiar e da estabilidade, exatamente como ocorreu no caso julgado”, afirma.
Segundo ela, o mesmo critério de robustez das provas também se aplica à adoção póstuma, permitida pelo ECA quando o pretendente falece antes da sentença, desde que tenha havido manifestação inequívoca de vontade de adotar, seja por meio de comportamentos, tratamento socioafetivo ou registros públicos desta condição.
“A Corte considerou a presunção da capacidade civil do adotante falecido e entendeu que, na ausência de interdição ou qualquer evidência de incapacidade, presume-se que ele tinha condições legais para adotar, sem necessidade de curador especial”, pontua.
E acrescenta: “Houve a rejeição de exigências formais em favor do afeto, ou seja, a adoção não deve ser inviabilizada pela ausência de formalização anterior, como inscrição no Sistema Nacional de Adoção – SNA ou reconhecimento judicial prévio, desde que o vínculo socioafetivo e a convivência de fato estejam bem documentados e comprovados”.
Para a especialista, a decisão do STJ reconhece que a regra de respeito à ordem do SNA pode ser excepcionalmente flexibilizada quando o melhor interesse da criança recomenda sua permanência no ambiente afetivo em que já está inserida.
“A fuga do SNA, que não podemos considerar burla, deu-se por meio de uma adoção intuitu personae, uma vez que envolve uma criança entregue voluntariamente pela mãe biológica a um casal que, quando do pedido de adoção, declarou conviver em união estável por mais de três décadas”, avalia.
Regra “desatualizada”
O advogado Guilherme Augusto Girotto, membro do IBDFAM, critica a regra que restringe a adoção conjunta a casais casados ou em união estável e a avalia como “desatualizada”. Ele lembra que o próprio ECA permite exceções para divorciados ou ex-companheiros e que o STJ já flexibilizou a norma ao autorizar adoção de irmãos por adotantes fora desse padrão.
“Entendo que a preocupação maior e salutar é a existência de um ambiente familiar saudável, que notadamente independe do vínculo jurisdicional dos adotantes”, defende.
O especialista propõe que a norma passe a definir características da dupla parental, como “intenção de criar a prole de forma conjunta, condições físicas, materiais e psicológicas adequadas para proporcionar um ambiente saudável ao pleno desenvolvimento do adotando, e harmonia quanto aos cuidados necessários à criação dos filhos”.
Ele sugere ainda a seguinte redação: “Para a adoção conjunta, independentemente do vínculo estabelecido entre os adotantes, estes deverão demonstrar plena aptidão para a adoção, convivência harmoniosa e compatibilidade de interesses no exercício da autoridade parental”.
“A redação permite que o contrato de coparentalidade seja apresentado no momento da habilitação para adoção, servindo como instrumento para demonstrar a ‘compatibilidade de interesses no exercício da autoridade parental’ exigida pela lei”, avalia.
Guilherme Girotto destaca que diversos autores – como Luiz Edson Fachin, João Baptista Villela, Jacques Lacan e Pontes de Miranda – enfatizam que a filiação e a família transcendem a biologia. Segundo ele, tais perspectivas reforçam a compreensão de que adoção e filiação se fundamentam em afeto, cuidado e integração social, e não apenas em vínculos genéticos ou no estado civil dos adotantes.
“Os elementos essenciais para assegurar o bem-estar da criança ou adolescente são a capacidade, a disponibilidade e o interesse genuíno dos adotantes em criar um ambiente familiar saudável”, ressalta.
E acrescenta: “O vínculo jurídico entre eles – seja conjugal ou de convivência – não deve interferir no exercício da parentalidade. Não se pode mais confundir as responsabilidades atribuídas aos cônjuges ou conviventes com aquelas que pertencem, de forma intransferível, à condição de pai ou mãe”.
Por Guilherme Gomes
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