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Justiça reconhece união estável de 20 anos com base em fotos e registros antigos

Atualizado em 10/07/2025
Uma mulher conseguiu comprovar na Justiça de Mato Grosso a existência de uma união estável iniciada em 2003, com base em fotos antigas e registros de noivado. A 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado – TJMT reconheceu, de forma provisória, que a relação teve início em dezembro de 2003, e não em 2013, como constava inicialmente na petição.
A decisão ocorreu no âmbito de uma ação que trata do reconhecimento e dissolução de união estável, com pedidos de partilha de bens e concessão de alimentos provisórios. No recurso, a autora alegou ter mantido relacionamento com o ex-companheiro por mais de vinte anos.
Ela sustentou que o homem estaria promovendo a dilapidação do patrimônio comum, motivo pelo qual pediu o bloqueio de contas bancárias, a nomeação de um administrador judicial e sua inclusão no contrato social da empresa do casal.
Ao avaliar o caso, a relatora considerou elementos como fotografias antigas do casal e o registro de um noivado ocorrido em 2006. Segundo a desembargadora, "deve-se dar primazia à busca da verdade real, em detrimento do equívoco de narrativa perpetrado pelo patrono da agravante ao inserir na petição inicial a data de início da união estável como sendo o ano de 2013".
Ainda conforme a relatora, o reconhecimento da data mais remota possui caráter provisório e destina-se a embasar diligências no curso do processo. "É possível considerar – de modo provisório e para fins de instrução processual – determinada data como marco inicial da união estável havida entre as partes, a fim de que as medidas de busca de bens e quebra de sigilo bancário remontem a esse período."
A desembargadora destacou, porém, que medidas mais severas, como bloqueios de contas e intervenções societárias, devem ser adotadas apenas diante de provas concretas de má-fé ou esvaziamento patrimonial – o que não teria sido evidenciado no caso.
Acervo probatório da união estável
O advogado Fabiano Rabaneda, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, seção Mato Grosso – IBDFAM-MT, explica que a união estável é uma forma legítima de constituição de família, mesmo sem formalização legal. Inicialmente reconhecida pela Lei 9.278/1996 para corrigir injustiças, especialmente contra mulheres, ela foi incorporada pelo Código Civil como uma convivência pública, contínua e duradoura com objetivo familiar, diz o especialista.
“Justamente por sua origem informal, a união estável exige, quando contestada, a formação de um acervo probatório que permita ao Judiciário aferir seus contornos – em especial o marco inicial e, eventualmente, o termo final da convivência. Nesse contexto, fotografias antigas, registros de viagens, postagens em redes sociais, documentos com referência à outra parte como ‘companheira’ ou ‘esposa’ – como planos de saúde, declarações fiscais ou de dependência –, entre outros, ganham relevância probatória”, afirma.
Diante disso, ele destaca o artigo 422 do Código de Processo Civil – CPC, que diz: “qualquer reprodução mecânica, como a fotográfica, a cinematográfica, a fonográfica ou de outra espécie, tem aptidão para fazer prova dos fatos ou das coisas representadas, se a sua conformidade com o documento original não for impugnada por aquele contra quem foi produzida”.
“Assim, imagens podem evidenciar a publicidade da relação, a convivência familiar e a habitualidade da união, elementos centrais à configuração da união estável. É importante observar que nenhuma prova isolada é suficiente para esse reconhecimento, mas sim o conjunto de evidências que formam a convicção judicial”, pontua.
Quanto ao noivado, o advogado ressalta que ele não se confunde nem com o casamento nem com a união estável, questão tratada no artigo “Noivado não é casamento e nem união estável”, escrito por Rabaneda e publicado no site do IBDFAM.
“O noivado é uma etapa anterior, marcada por expectativa e intenção futura, e não por uma vida em comum. Entretanto, o fato de um casal ter celebrado o noivado, se bem demonstrado, pode indicar a existência de vínculo afetivo sério, com intenção de constituição de família – o que, aliado a outras provas, pode contribuir para o reconhecimento de uma convivência já instalada à época”, diz.
Fixação provisória de data
O especialista destaca que a fixação provisória da data de início da união estável é relevante em ações que envolvem partilha de bens e alimentos, tanto do ponto de vista probatório quanto patrimonial. Segundo ele, trata-se de uma medida cautelosa que estabelece um marco temporal ao processo, facilitando a produção de provas e evitando possíveis violações a direitos fundamentais.
Conforme o artigo 369 do CPC, as partes podem utilizar todos os meios legais e moralmente legítimos, ainda que não previstos expressamente na norma, para demonstrar a veracidade dos fatos que embasam seus pedidos ou defesas e influenciar a convicção do juiz.
“Ao se reconhecer provisoriamente o início da união estável, ainda que de modo não definitivo, é possível delimitar a produção de provas aos marcos relevantes da convivência, evitando, por exemplo, quebras indevidas da intimidade da parte quanto a períodos anteriores à relação. A delimitação temporal também orienta pedidos de ofício de registros, extratos bancários e movimentações patrimoniais, permitindo que o Judiciário obtenha dados pertinentes sem extrapolar a proteção constitucional à vida privada”, explica.
Sob a perspectiva patrimonial, o especialista afirma que o reconhecimento provisório da união estável tem a função de evitar a dilapidação do patrimônio comum e alterações indevidas na situação litigiosa. Segundo ele, essa fixação “serve de base para a adoção de medidas urgentes, como bloqueios judiciais ou intervenções em sociedades empresárias, resguardando a parte que caberá a cada um na futura partilha de bens”.
O advogado ainda destaca a perspectiva alimentar, para a qual o marco inicial da convivência tem impacto na configuração de alimentos ressarcitórios, como fixado recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, no julgamento do Recurso Especial – REsp 1.954.452/SP.
“Conforme fixado pela Terceira Turma, essa modalidade – distinta dos alimentos compensatórios – diz respeito à restituição de rendas líquidas dos bens comuns administrados de forma unilateral por um dos companheiros, antes da partilha. Sua natureza jurídica é de restituição, amparada nos artigos 884 a 886 do Código Civil, tendo como fundamento a vedação ao enriquecimento sem causa. Como afirma Rolf Madaleno, esses alimentos se justificam sempre que um dos conviventes é afastado da administração ou da fruição econômica do patrimônio comum, sendo necessário que se estabeleça desde quando o acervo se forma e quem usufrui indevidamente de seus frutos”, afirma.
E conclui: “Saber a data de início da união não é apenas uma questão simbólica ou afetiva: é uma ferramenta jurídica para projetar os efeitos econômicos da relação e permitir que frutos patrimoniais – como aluguéis, dividendos, aplicações financeiras ou rendas agrícolas – possam ser antecipadamente identificados, protegidos e, se for o caso, compensados ou ressarcidos na partilha final”.
Ocultação de patrimônio
Fabiano Rabaneda observa ainda que é comum, nos litígios familiares, o uso abusivo de estruturas societárias para ocultar patrimônio. Ele ressalta que a personalidade jurídica, concebida como um instrumento legítimo de organização empresarial e circulação de riquezas, muitas vezes é indevidamente utilizada como forma de blindagem patrimonial, dificultando a partilha de bens em casos de dissolução litigiosa de união estável ou casamento.
“Nesse cenário, a pessoa jurídica se converte em uma espécie de ‘manto protetivo’ que mascara a titularidade e a fruição de ativos que, de fato, integram o esforço comum”, ele afirma e defende a importância da atuação preventiva do Poder Judiciário.
“Todavia, é necessário encontrar um ponto de equilíbrio entre o dever de proteção dos bens comuns e a observância do devido processo legal – especialmente no que se refere à desconsideração da personalidade jurídica e à adoção de medidas constritivas mais invasivas”, acrescenta.
Nesse contexto, o especialista destaca o artigo 133 do Código de Processo Civil, que prevê a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica mediante requerimento da parte. Ele ressalta ainda o § 2º do mesmo artigo, que excepciona essa exigência quando o pedido for feito já na petição inicial – nesse caso, o sócio ou a pessoa jurídica deverá ser citado para integrar a lide desde o início.
“Ainda assim, mesmo com essa dispensa procedimental, a efetiva intervenção societária – como bloqueios de contas da empresa ou acesso a seus documentos internos – exige um mínimo lastro probatório. É indispensável demonstrar, com base em elementos concretos, que há confusão patrimonial, desvio de finalidade ou desproporção evidente entre a renda declarada pela pessoa física e os sinais exteriores de riqueza vinculados à atividade da empresa. Não se trata de prova plena, mas sim de indícios robustos que justifiquem a aplicação do poder cautelar do juiz, em conformidade com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade”, pontua.
Segundo ele, tais indícios podem advir de extratos bancários que apontem transferências recorrentes entre contas pessoais e empresariais, ausência de retirada formal de pró-labore, declarações fiscais desproporcionais, uso exclusivo dos bens sociais pelo sócio na esfera pessoal, ou a inércia deliberada no processo de partilha.
“Em muitas situações, os bens móveis e imóveis estão registrados em nome da empresa, mas são utilizados privativamente pelo ex-companheiro ou ex-cônjuge, o que reforça a necessidade de apuração e eventual constrição cautelar”, afirma.
O advogado destaca que a Lei de Alimentos permite a concessão de alimentos provisórios com base na renda líquida dos bens comuns, mesmo quando esses bens são administrados por sociedades controladas por um dos cônjuges, o que reforça a necessidade de atuação judicial eficaz contra estratégias de ocultação patrimonial nas disputas familiares.
“Ainda que a atuação sobre estruturas empresariais demande cautela e respeito ao contraditório, o Judiciário dispõe de instrumentos para agir com efetividade, desde que amparado por uma base probatória mínima. É essa atuação equilibrada – entre o respeito à formalidade e a tutela contra fraudes – que permite à jurisdição familiar cumprir seu papel de garantir a igualdade material na partilha e evitar o enriquecimento indevido às custas do esforço comum”, afirma.
Processo: 1018098-96.2024.8.11.0000
Por Guilherme Gomes e Débora Anunciação
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