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TJSC anula decisão que impedia mãe de reconhecer filha já falecida registrada apenas pelo pai

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina – TJSC anulou uma decisão que havia encerrado, sem julgamento, uma ação movida por uma mulher que busca ser reconhecida como mãe de uma filha já falecida. A decisão foi tomada de forma unânime pela 2ª Câmara de Direito Civil do Tribunal estadual.
A filha nasceu em 1976 e foi registrada apenas com o nome do pai. Segundo a autora da ação, ela não conseguiu constar como mãe na certidão porque, na época, ainda era legalmente casada com outro homem e vivia em um contexto de forte repressão social às mulheres em relações extraconjugais.
Na decisão, o desembargador-relator do caso destacou que a Justiça não pode negar o direito ao reconhecimento da filiação com base apenas na letra da lei, sem considerar o contexto social e histórico. Ele aplicou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que orienta magistrados a considerarem desigualdades de gênero nos julgamentos.
“Ao negar a tramitação da ação, perpetua-se a discriminação sofrida por mulheres em um cenário de profunda desigualdade”, afirmou, no voto.
A mulher também busca o reconhecimento do vínculo para fins de recebimento de indenização securitária.
Agora, o processo volta para a primeira instância para a coleta de provas, como testemunhos. O Ministério Público também deve se manifestar sobre o caso, que corre em segredo de Justiça.
Contexto
A advogada Júlia Melim Borges, presidente da Comissão de Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, do Instituto Brasileiro de Direito de Família, seção Santa Catarina – IBDFAM-SC, atuou no caso, com o advogado Fábio Corrêa Eleutério. Ela avalia que a decisão leva em conta a realidade social e histórica da autora.
“O TJSC reconheceu que não é possível aplicar, de forma literal e descontextualizada, o artigo 1.614 do Código Civil para negar o prosseguimento de uma ação em que uma mãe busca o reconhecimento de vínculo com a filha já falecida, especialmente quando esse vínculo foi impedido por barreiras legais, morais e sociais vigentes à época do nascimento da criança”, diz.
Segundo ela, a análise do desembargador responsável pela decisão foi “sensível ao contexto de desigualdade de gênero e à necessidade de julgar com perspectiva histórica e afetiva ao anular a sentença que havia extinguido o processo sem sequer permitir a produção de provas”.
A advogada avalia que a decisão reconhece a impossibilidade de o ordenamento jurídico permanecer indiferente às violências históricas sofridas por mulheres, especialmente em contextos nos quais normas de caráter patriarcal lhes impediam o pleno exercício de seus direitos no âmbito das relações familiares.
“Muitas mulheres não conseguiram registrar seus filhos por serem casadas formalmente com outro homem, como era o caso da requerente, ou por não terem autonomia reconhecida pelo ordenamento jurídico da época. Com esse julgamento, o TJSC sinaliza que é possível rever essas injustiças à luz de princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, a igualdade de gênero e o direito à verdade biológica e afetiva”, pontua.
Restrições
Júlia Melim Borges ressalta que um dos maiores entraves enfrentados por mulheres em ações de reconhecimento de maternidade é o entendimento “restritivo” e “literal” de dispositivos legais como o artigo 1.614, do Código Civil, que exige o consentimento do filho maior de idade para o reconhecimento da filiação.
“Esse artigo, embora importante em sua finalidade protetiva, não pode ser interpretado de forma a inviabilizar o direito à filiação em casos de filhos já falecidos, principalmente quando a ausência de registro se deu por contextos de opressão”, pondera.
Diante disso, a especialista considera que o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ contribui para decisões “mais justas” em ações do Direito das Famílias.
“O Protocolo orienta os operadores do Direito a considerarem os impactos da desigualdade de gênero na formação das relações familiares e no acesso à Justiça ”, explica. “Ao aplicar o Protocolo, o Judiciário adota uma interpretação normativa compatível com os direitos fundamentais das mulheres, o que permite a reconstrução da história familiar com base na verdade e na justiça social”, acrescenta.
Processo 5012829-96.2022.8.24.0038
Por Guilherme Gomes
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