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Dez anos da Lei do Feminicídio; O que ainda precisa mudar?

A Lei do Feminicídio “deu mais visibilidade a essa pandemia, muito anterior à Covid-19: a violência de gênero”, diz especialista
Na semana em que a mídia repercute o caso da adolescente encontrada morta com requintes de crueldade após uma semana desaparecida em Cajamar, na Grande São Paulo, a Lei do Feminicídio (13.104/2015) completa dez anos. O caso é parte de uma estatística alarmante que coloca em xeque a proteção das mulheres oferecida pela legislação.
Dados demonstram um contínuo crescimento da violência baseada em gênero no Brasil, do qual o indicador de feminicídio é a evidência mais notória. É o que explica a professora Adélia Moreira Pessoa, presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 1.467 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2023, o maior número já registrado desde a criação da lei. “Ademais, examinando-se o perfil dessas mulheres mortas de forma violenta, mais de 65% são negras, com idade entre 18 e 44 anos.”
A professora reconhece que a violência contra a mulher, em suas diversas formas, pode sofrer sub-registro, pois muitas mulheres não noticiam o fato, por inúmeras razões. O mesmo não ocorre em caso de morte violenta, pois, segundo ela, “o crime geralmente é noticiado, nos serviços de Saúde, de Segurança Pública e na mídia”.
“Um ponto positivo da Lei do Feminicídio foi o maior acesso às estatísticas de morte de mulheres em decorrência de gênero, pois os processos criminais são autuados por tipo de crime – e a partir de então, o feminicídio passou a constar nos dados da polícia e do Poder Judiciário”, observa Adélia.
Na visão de Adélia, “a Lei do Feminicídio deu mais visibilidade a essa pandemia, muito anterior à Covid-19: a violência de gênero”. Ela pondera, no entanto: “A violência de gênero tem múltiplas dimensões e não pode ser tratada apenas como problema de Justiça criminal, mas sim acompanhada por ações efetivas e políticas públicas para proteção e assistência das vítimas”.
Histórico
A Lei do Feminicídio (13.104/2015) alterou o Código Penal para tipificar o crime praticado “por razões de condição de sexo feminino, quando envolvesse violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher’”. Em outubro do ano passado, a Lei 14.994/2024 garantiu novas alterações no Código Penal para tornar o feminicídio crime autônomo, agravar a sua pena e a de outros crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, bem como para estabelecer outras medidas destinadas a prevenir e coibir a violência praticada contra a mulher.
Adélia Moreira Pessoa cita Convenções Internacionais ratificadas pelo Brasil, nos quais o país se comprometeu a garantir e efetivar direitos para todas as mulheres. Entre eles, o de viver sem violência.
“Em 2015, entre os proclamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas – ODS (Agenda 2030) figura o objetivo 5: Alcançar a igualdade de gênero e a autonomia das mulheres. Entre as metas do ODS 5, o Estado brasileiro compromete-se a ‘eliminar todas as formas de violência de gênero nas esferas pública e privada, especialmente a violência sexual, o tráfico de pessoas e os feminicídios, nas suas intersecções com raça, etnia, idade, deficiência, orientação sexual, identidade de gênero, territorialidade, cultura, religião e nacionalidade’”, observa.
A especialista lembra que a Constituição de 1988 tem enorme influência na história dos direitos da mulher brasileira ao acolher, em vários artigos, a igualdade (arts 5º, 7º, 226, etc) e o dever de o Estado criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares; além de leis editadas para reconhecer a igualdade e enfrentar a discriminação e violência de gênero, como a Lei Maria da Penha (11.340/2006).
Ao analisar a última década, a professora reconhece o aumento da visibilidade, mas entende que o efetivo acesso à Justiça e aos direitos ainda precisa observar algumas dimensões: “A primeira é a dimensão normativo-formal, ou seja, o reconhecimento dos direitos pelo Estado e sua formalização em normas jurídicas; a segunda dimensão, o acesso aos direitos, se revela por meio da existência de mecanismos e estratégias para tornar o acesso formal em acesso real, com sua efetividade por meio de políticas públicas”.
Conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM, Adélia Pessoa afirma que os números revelam a grave dimensão do problema: em todas as faixas etárias, a relação doméstica prepondera nas situações de violência vividas pelas mulheres.
Ainda de acordo com a especialista, outra situação no contexto das mortes violentas de mulheres carece urgentemente de maior atenção: o feminicídio, seguido do suicídio do autor. “Esse feminicídio-suicídio mostra a necessidade de intervenções eficazes e políticas de prevenção que abordem tanto a proteção das mulheres quanto a desconstrução de padrões machistas e estereótipos que levam homens a cometer esses atos extremos.”
Prevenção
A presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM percebe a importância das políticas preventivas, como a implementação de ações que desconstruam mitos e estereótipos de gênero e modifiquem os padrões sexistas, perpetuadores das desigualdades de poder entre homens e mulheres e da violência contra as mulheres.
A prevenção, segundo a professora, perpassa por ações educativas e também culturais que disseminem atitudes igualitárias e valores éticos de irrestrito respeito à diversidade de gênero, raça/etnia, geracionais e de valorização da paz, além de campanhas educativas, programas educacionais e inclusão nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, de conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça.
“Aprender é mudar comportamentos, atitudes e habilidades. A educação, seja formal ou não, deve ser direcionada à vivência da igualdade, não podendo ser produtora e reprodutora da discriminação e violência de gênero. Deve desvelar, no sentido que lhe atribui Paulo Freire, preconceitos e estereótipos, problematizando o olhar para o mundo”, diz.
A especialista frisa que a educação produz as representações como um processo de construção social em um sistema de significações. “É pela educação que as diferenças sexuais se transformaram em desigualdades culturalmente constituídas.”
Adélia Moreira Pessoa cita também a Lei 14.164/2021, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/1996) para incluir conteúdos transversais, relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança, o adolescente e a mulher, nos currículos da educação básica.
A Lei 14.164/2021 institui a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher a ser realizada anualmente, no mês de março, em todas as instituições públicas e privadas de ensino da educação básica. “A educação é a via indispensável para mudança de padrões culturais tão arraigados. O combate à misoginia, ainda tão presente em nosso país, precisa ser trabalhado de modo eficaz.”
Outra iniciativa citada por Adélia é a campanha “Brasil sem Misoginia”, do Ministério das Mulheres, que também tem priorizado programas e projetos focados na prevenção e no acolhimento das mulheres em situação de violência, como o anúncio de 40 Casas da Mulher Brasileira em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública.
“Esses espaços reúnem diversos tipos de serviços, tanto do Sistema de Justiça como os referentes à necessária autonomia econômica da mulher. Assim a mulher não precisaria percorrer vários espaços em busca dos serviços adequados”, detalha.
Direitos humanos
Ainda conforme Adélia Pessoa, há também o investimento federal na equipagem de Centros de Atendimento a Mulheres em situação de violência nos estados, o Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios, e a Campanha Feminicídio Zero.
“Necessário sensibilizar todos profissionais desta seara, compreendendo também ações de responsabilização do autor da agressão, com as indispensáveis medidas de ressocialização, com os grupos reflexivos, e diálogos com homens sobre masculinidades tóxicas, de modo que se possam amarrar os elos dessa rede, para que as intervenções não sejam apenas pontuais”, pontua.
Para a diretora nacional do IBDFAM, é urgente dar visibilidade à violência e discriminação de gênero como uma questão a ser enfrentada nos direitos humanos, repetindo-se sempre: a violência e a discriminação contra a mulher é problema de todas as pessoas. “Estamos no gerúndio: avançando, superando desafios… Mas o caminho a percorrer é longo.”
De acordo com Adélia, a defesa dos direitos humanos é uma tarefa interminável, porque o respeito aos direitos humanos é algo que se constrói, dia a dia – e a mídia pode ser uma grande aliada. “A cultura da discriminação/violência de gênero remonta à história da própria humanidade e sua mudança implica desafios estruturais. Requer reconstrução de valores, políticas públicas consistentes, redes de atendimento articuladas, formação profissional continuada dos agentes públicos que atuam em atendimento às mulheres em situação de violência.”
“Necessária, principalmente, sensibilidade social, não só das mulheres, não só de alguns homens, mas de todas as pessoas que tenham consciência política de sua humanidade e pretendam uma sociedade mais próxima do justo e da solidariedade, respaldada no respeito aos direitos humanos. Só assim poderemos atingir os objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos ou quaisquer formas de discriminação”, conclui a especialista.
Por Débora Anunciação
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