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Vítima de violência doméstica que matou agressor tem direito à pensão por morte
Atualizado em 14/08/2024
Uma mulher vítima de violência doméstica, que matou o companheiro, conseguiu na Justiça Federal o benefício da pensão por morte. A decisão considerou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ.
A mulher era agredida pelo companheiro, com quem vivia em união estável, e, por diversas vezes, precisou fugir com os filhos para a casa das irmãs. Testemunhas também informaram que ele ficava transtornado quando bebia.
O homem foi preso em três ocasiões diferentes, em razão das agressões contra a mulher e os filhos. A última prisão durou 8 anos. Quando saiu da prisão pela última vez, desobedeceu uma ordem de restrição da Lei Maria da Penha (11.340/2006) e foi até a casa da mulher. Na ocasião, houve luta corporal, e ele foi morto por um golpe de machado na cabeça.
A mulher foi levada a julgamento pelo Tribunal do Júri e absolvida. Ao avaliar o caso, a 4ª Vara Federal de Joinville adotou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021 do CNJ. Também foi considerada a vulnerabilidade e hipossuficiência da mulher, que não é alfabetizada, não possui registro de ter mantido vínculos empregatícios enquanto viveu em união estável e, à época do óbito, seus dois filhos eram ainda pequenos (9 e 11 anos).
De acordo com o juiz responsável pelo caso, não há como descaracterizar a união estável por conta das separações do casal. Afinal, “era a violência doméstica que motivava as separações, ora por conta do tempo que o instituidor passou preso em decorrência de agressões contra a sua família, ora pelas fugas que a autora precisava empreender para casa de parentes, para que não fosse agredida juntamente com seus filhos; e, em última instância, a separação motivada pela concessão da medida protetiva, inclusive desrespeitada pelo falecido, o que demonstra o descontrole da situação”.
"Contudo, apesar do ambiente familiar envolto pela violência, a manutenção do endereço do casal até o óbito indica que a dependência econômica da autora para com o companheiro fazia com que a união estável se mantivesse, o que é característico nesses casos", ponderou o magistrado.
O juiz também pontuou que a autora foi absolvida da acusação pela prática do homicídio do instituidor, não se tratando de pensionista juridicamente indigna. Para o magistrado, ficou comprovada a existência da união estável, pelo menos desde 1999 (nascimento do filho mais velho) até o óbito, em 2009.
Conforme a decisão, o benefício é devido desde setembro de 2022, data de entrada do requerimento. Cabe recurso.
Contexto
No entendimento da professora Adelia Moreira Pessoa, presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a decisão é acertada.
Ela lembra que o Brasil já ratificou diversas Convenções Internacionais para eliminação de discriminações de Gênero e Raça. Cita, entre elas, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW (1979) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994).
De acordo com a professora, a discriminação contra as mulheres é agravada por fatores de intersecção que afetam algumas mulheres em graus ou modos diferentes. A intersecção, segundo ela, pode tornar mais difícil o acesso à Justiça.
“Os elementos para a discriminação interseccional ou composta podem incluir etnia/raça, condição de indígena ou minoria, cor, situação socioeconômica e/ou casta, língua, religião ou crença, opinião política, origem nacional, estado civil e/ou maternal, idade, localização urbana/rural, estado de saúde, deficiência, titularidade da propriedade e identidade como mulher lésbica, bissexual ou transgênero ou pessoa intersexual”, destaca.
Gênero
Adelia observa que o CNJ “vem atuando fortemente para superar desafios ainda existentes por força de uma cultura secular de misoginia e patriarcado”, e ressalta a importância do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, instituído pelo órgão.
“A discriminação e violência de gênero estão deixando de ser invisíveis. Desse modo, a percepção de todas as pessoas do sistema de Justiça deve estar voltada para uma hermenêutica de gênero”, avalia a professora.
No caso dos autos, ela reconhece que a concessão do benefício pode parecer estranha, mas não é, pois atendeu ao direito vigente. “A autora foi absolvida da acusação pela prática do homicídio do instituidor, ‘não se tratando de pensionista juridicamente indigna’, como bem salientou o juiz da causa.”
“A Lei da Previdência Social 8.213/1991, com a redação dada pela Lei 13.846/2019 no artigo 74, § 1º: ‘perde o direito à pensão por morte o condenado criminalmente por sentença com trânsito em julgado, como autor, coautor ou partícipe de homicídio doloso, ou de tentativa desse crime, cometido contra a pessoa do segurado, ressalvados os absolutamente incapazes e os inimputáveis’”, lembra.
Para constituir um crime doloso, acrescenta Adelia, é necessária a vontade de causar ou assumir o risco do resultado. “Além disso, a conduta precisa ser típica (definida e caracterizada na lei) e antijurídica ou ilícita. Isto é, conforme o Código Penal, a legítima defesa é um excludente de antijuridicidade ou de ilicitude, ou seja, quem age em legítima defesa não comete um crime.”
Ela cita o artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.
“Qualquer interpretação da lei vigente leva-nos à conclusão de que não se considera indignidade a conduta, em legítima defesa, com as especificidades já previstas na lei penal. Assim, a legítima defesa (com seus elementos legais caracterizadores) já se encontra prevista como excludente de crime, não excluindo o direito à pensão, e não só em casos de violência doméstica, não sendo classificado como homicídio doloso, se amparado pela legítima defesa”, frisa a especialista.
Ainda segundo Adelia, sendo absolvida no juízo criminal, além de preencher os demais requisitos para o benefício, não há como indeferir a pensão. “A análise sob as lentes de gênero vem encontrando mais argumentos na busca da igualdade na prática judicial contemporânea.”
Por Débora Anunciação
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