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Casal transcentrado compartilha rotina da família nas redes sociais e atrai milhares de seguidores
Lara Nicole é travesti e casada com Gabriel, um homem trans; juntos, eles são pais de Flora, filha biológica gestada na barriga do pai
“É um processo doloroso, mas também muito lindo, incrível e único”, diz Lara Nicole Medeiros Mota, ao descrever a formação da família que ela constitui ao lado de seu marido, Gabriel Lima de Sousa, e da filha do casal, Flora. A história dos três viralizou nas redes sociais depois que ela decidiu publicar vídeos mostrando a rotina da família quando Flora ainda estava na barriga de Gabriel.
Eles são um novo modelo de família, formada a partir de um casal transcentrado, ou seja, constituído por duas pessoas trans. Tal realidade chamou a atenção de milhares de pessoas, principalmente no TikTok, plataforma em que Lara Nicole gerencia um perfil seguido por mais de 336 mil pessoas. Os três vídeos que falam sobre a gestação de Gabriel são os mais assistidos do perfil: atingiram, em média, 6 milhões de visualizações.
Apesar de viral, a produção do conteúdo começou de forma espontânea. Lara Nicole, que é cantora de funk sob a alcunha Nik Hot, já utilizava as redes sociais para compartilhar seu dia a dia. Depois que Gabriel engravidou, a gestação passou a fazer parte do cotidiano do casal e, consequentemente, das redes sociais dela. Com o tempo, ela se deu conta da importância dos vídeos.
“Recebo muitas perguntas de famílias formadas por LGBTs que se inspiram em nós. Já conversamos com outros homens trans casados com travestis que estão esperando um bebê, e também casais de lésbicas que estão passando por essa experiência. Isso é muito importante porque nos faz sentir que estamos ajudando a povoar a Terra com o nosso povo também”, afirma ela.
Redes sociais
O casal se conheceu por meio de uma amiga em comum. Após um período de conversa pelo Instagram, eles se conheceram pessoalmente, e foi quando Gabriel precisou se mudar para a Casa Transformar, ONG fundada por Lara Nicole que, na época, oferecia acolhimento para pessoas trans em situação de vulnerabilidade.
“Gabriel estava passando por um momento difícil e precisou desse acolhimento. Quando ele veio, começamos a alinhar nossas ideias e ver se realmente queríamos continuar o que havíamos iniciado. Começamos a nos relacionar, ele me pediu em namoro, depois em noivado, e finalmente nos casamos. Fizemos uma cerimônia na nossa religião, a Umbanda, e também uma celebração de casamento lindíssima”, ela lembra.
Ele sempre alimentou o sonho de ser pai. Lara Nicole também tinha esse desejo, mas por ora resolveu deixá-lo para o futuro. Pouco mais de um ano depois do casamento, Gabriel engravidou, de forma não planejada.
“Nós tínhamos esse plano, mas não imaginávamos que aconteceria tão cedo, mas aconteceu no momento certo. Hoje, eu sou a pessoa mais feliz do mundo, a travesti mais realizada”, ela comemora.
Imagem por Davylla Lima/Instagram/Reprodução
Desafios da gestação
Ao longo da gestação, os dois receberam apoio de amigos e familiares e, também, dos seguidores. Apesar disso, não foram poucos os desafios enfrentados.
“Somos pais de primeira e última viagem, já que planejamos ter apenas a Flora. A gestação trans foge do convencional, especialmente no nosso caso, como um casal trans-hétero. Enfrentamos muitos desafios e sofremos transfobia em hospitais da prefeitura de Fortaleza. Em diversas ocasiões, nossos pronomes foram negados”, ela afirma.
Lara Nicole avalia que o Sistema Único de Saúde – SUS ainda tem muito a avançar no que diz respeito ao acolhimento e ao respeito à diversidade de gênero.
“O acompanhamento médico durante a gestação foi bastante complicado. O Gabriel não pôde ter seu gênero reconhecido. Mesmo com a retificação de gênero nos documentos, o SUS não reconhece homens que gestam. Percebemos que muitos profissionais não estão preparados para lidar com situações como a nossa. E não há como ter profissionais preparados se o próprio sistema exclui determinadas comunidades. O problema está profundamente enraizado na estrutura do sistema de saúde pública”, pontua.
Após o nascimento de Flora, os desafios não acabaram. Apesar da alegria de poder ver a filha crescendo, o casal ainda enfrenta questionamentos de cunho transfóbico.
“Minha maternidade é deslegitimada o tempo todo. A paternidade do Gabriel, que foi quem pariu, é constantemente questionada. No Brasil, existe a ideia de que só quem dá à luz é a mãe. Os desafios são muitos e ainda enfrentaremos outros pela frente. No entanto, a Flora sempre será bem instruída sobre quem e o que somos. Não teremos segredos com nossa filha, pois não estamos fazendo nada de errado”, afirma.
Imagem por Instagram/Reprodução
Conscientização
Ao continuar postando vídeos nas redes sociais sobre a rotina familiar, ela pretende conscientizar as pessoas sobre as possibilidades dos formatos familiares contemporâneos.
“Muita gente acredita que a reprodução é exclusiva a casais cisgêneros e heterossexuais. Mas não é assim. A reprodução pode ocorrer de diversas formas, inclusive entre pessoas LGBT, que fogem de qualquer normatividade”, analisa.
Lara Nicole defende que as famílias transcentradas precisam ser humanizadas até mesmo entre a comunidade.
“Ainda existe muito preconceito, inclusive dentro do meio LGBT e do meio trans. Portanto, é um trabalho que precisa começar por quem está dentro da comunidade, para que possamos superar esses preconceitos e promover uma maior aceitação e compreensão”, aponta.
E acrescenta: “Para essa galera que é LGBT, que é trans e sonha em formar sua família, saibam que é possível. Não deixem que ninguém interrompa esse sonho, pois é apenas o começo de milhares de famílias LGBTs e formadas por pessoas trans que virão por aí”.
Por Guilherme Gomes
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