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Justiça do Pará reconhece multiparentalidade: avós são declarados pais socioafetivos após a morte
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Aos trinta anos, a odontóloga-periodontista Nayara Bastos Cavalcante conseguiu adequar na Justiça do Pará uma realidade que vive desde quando nasceu: a filiação socioafetiva dos avós biológicos, Ubiratan e Elza. A ação de reconhecimento de paternidade socioafetiva post-mortem foi ajuizada em conjunto com os irmãos socioafetivos (tios biológicos).
Nayara é filha biológica de Elzanara, que é portadora de deficiência cognitiva e interditada civilmente. Em entrevista ao IBDFAM, ela lembra que tudo começou antes mesmo de seu nascimento. “Ubiratan e Elza, sabendo da condição da filha, procuraram saber de que maneira dentro da lei poderiam me adotar.”
Segundo Nayara, o casal descobriu que, naquela época, poderiam ter apenas a documentação da guarda, e assim o fizeram, “sabendo que esse era o único meio legal naquele momento e com esperanças de que isso bastasse para que aos olhos da lei eu fosse filha deles”.
“Nasci em 1993, em um lar onde tive uma avó/mãe amorosa e muito cuidadosa comigo e um avô/pai amoroso, meu exemplo de caráter e honestidade, meu melhor amigo, enfim, eles realmente foram tudo pra mim, e minha mãe biológica Elzanara que seguia tendo a mesma educação e cuidados que eu.”
Nayara, em seu aniversário de dois anos, ao lado do pai, Ubiratan (Arquivo Pessoal)
“Eu era a queridinha do papai e sempre fui muito mais agarrada com ele. Minha mãe Elza era a típica mãe mesmo, a quem eu recorria para as coisas de menina.”
Nayara diz que sempre soube que não tinha uma “família comum”. “Minha mãe biológica foi criada comigo igualmente, semelhante a uma irmã por conta de sua incapacidade. Minha avó materna também era minha mãe e meu avô materno também era meu pai, inclusive o melhor pai que eu poderia ter tido.”
“Desde que nasci meus pais já eram idosos e aposentados. Ao longo do tempo, essa diferença na idade em relação aos meus pais e os pais das pessoas da minha idade ficava mais evidente. Próximo ao fim do ensino médio, eu já era a ‘chefe’ do lar, ou seja, a responsável por todos em casa (Elzanara, Elza e Ubiratan), e também por administrar contas e etc.”
Aniversário de um ano de Nayara. Foto: Ubiratan, Nayara e Elzanara (Arquivo Pessoal)
Na época de prestar vestibular, o desconforto aumentou. “Me deparei com um incômodo profundo, que sempre me deixava sensível e emotiva: na parte de colocar os dados pessoais iguais aos do RG, eu não poderia preencher no campo ‘nome do pai’, o nome do cara que foi o meu pai a vida inteira.”
“Não tive uma adolescência comum, nem vivi os momentos de lazer e viagens com colegas de faculdade, pois tinha que estar sempre cuidando dos meus pais e minha mãe biológica. Para mim, chegou mais cedo aquele momento no qual trocamos de papel com nossos pais. Mas eu apreciei cada momento, dando amor e desfrutando do amor deles.”
Direito das Famílias
Os pais socioafetivos de Nayara morreram em 2016, em um intervalo de 14 dias entre um e outro. “Meu mundo de fato caiu, apesar de eu ser o pilar da casa, apenas a presença dos meus pais ali me dava mais forças, eles ainda eram o meu chão.”
“Em todas as minhas conversas, eu sempre os citava, afinal, eles foram a minha vida. Em 2022, uma amiga me incentivou a procurar um profissional do Direito de Família, pois a lei já havia mudado e eu talvez pudesse ter o reconhecimento da minha história de vida. Ainda naquela semana, ouvindo a rádio da UNAMA, o tema foi justamente o reconhecimento da paternidade post mortem, e foi quando eu, de fato, busquei indicação de profissionais da área.”
Nayara, Elza e Ubiratan (Arquivo Pessoal)
“Eu só queria ter em meu documento a verdade: que eu tive, além da minha mãe biológica, outra mãe (Elza) e que sim, eu tive um pai (Ubiratan), e finalmente conseguir preencher formulários da maneira correta, sem ficar emotiva por não poder preencher as lacunas do documento com os nomes dos meus pais de fato.”
Na ação, os autores frisaram que Nayara sempre foi reconhecida pela família como filha de Ubiratan e Elza. Todos estavam cientes e de acordo com o processo.
A maior dificuldade, segundo Nayara, foi a demora dos Correios – apenas a irmã e a mãe biológica vivem na mesma cidade. “No meu caso, houve uma audiência em fevereiro de 2024 onde todos foram ouvidos e tivemos que aguardar a manifestação do Ministério Público sobre a audiência.”
A manifestação favorável do MP chegou em 22 de maio de 2024, e o veredito da juíza em 15 de julho. “Finalmente respirei aliviada e logo enviei para os meus irmãos e pessoas próximas que estavam torcendo por mim, e comemoramos com muita alegria!”
“Foi uma mistura de sentimentos de felicidade, gratidão e saudade dos meus pais. Consegui fazer o que eles queriam, mas infelizmente não estão mais fisicamente comigo. Nunca deixei de senti-los sempre perto, afinal eu sou uma parte de cada um deles, tudo o que sou hoje foi fruto da criação deles.”
A decisão da 1ª Vara de Família de Belém reconheceu a multiparentalidade e manteve o nome da mãe biológica no registro de Nayara, com a inclusão dos nomes dos pais socioafetivos.
Multiparentalidade
A advogada e professora Jamille Saraty, membro da diretoria do Instituto Brasileiro de Direito de Família, seção Pará – IBDFAM-PA, atuou no caso. Ela explica que a multiparentalidade é o fenômeno que alcança pessoas criadas por mais de um pai e uma mãe.
De acordo com a especialista, a filiação socioafetiva já está consolidada no Direito brasileiro, mas há falta de informação acerca deste direito. “A filiação socioafetiva já está consolidada sobretudo na jurisprudência, e também por meio de resoluções do Conselho Nacional de Justiça – CNJ que regulamenta o processo extrajudicial. Ademais, leis como Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Código Civil – CC e Lei Maria da Penha (11.340/2003), já mencionam a palavra afetividade.”
No caso dos autos, Jamille esclarece que a incapacidade da mãe foi determinante. “A adoção entre avós e netos é proibida pelo ECA, primeiro pela confusão de constituição familiar e seus efeitos, segundo pelas tentativas de fraude à previdência. No caso em comento, a relação foi natural e se desenvolveu em razão da impossibilidade da mãe de cuidar e da cliente não ter pai registrado.”
Com a inclusão, a filha se torna herdeira dos avós. A partilha, porém, já havia sido realizada de forma fática, pois os demais herdeiros estavam de acordo. A autora também permanece como herdeira da mãe, tendo em vista que o vínculo não foi desfeito.
O principal desafio enfrentado por famílias que buscam o reconhecimento da filiação socioafetiva, segundo a advogada, é a falta de informação sobre direitos e vias competentes para o pleito. “Também ainda enxergo uma certa reticência dos magistrados sobre o assunto.”
“Vejo como fundamental o papel do advogado para a melhor fundamentação do pedido. A ação era de jurisdição voluntária, por exemplo, no entanto, o Ministério Público e o juiz decidiram por bem, fazer uma audiência de justificação”, comenta.
Jamile afirma que, apesar de o CNJ regular o assunto, é imprescindível que o tema seja abordado no Código Civil de forma expressa.
Por Débora Anunciação
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