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Alabama equipara direitos do embrião aos de nascituro e pode criminalizar perda de embriões
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Uma decisão judicial em Alabama, nos Estados Unidos, espalhou incertezas sobre o futuro de procedimentos de fertilização in vitro no Estado. O entendimento do Tribunal estadual é de que os embriões são protegidos pela lei assim como crianças, de modo que a perda ou descarte dos óvulos fertilizados pode caracterizar homicídio.
A ação foi movida por três casais contra uma clínica que destruiu acidentalmente seus embriões congelados. Os casais pagavam para manter outros embriões congelados e armazenados após já terem tido nascimentos saudáveis. Em 2020, porém, um paciente entrou no local, deixou cair e destruiu os embriões congelados.
Para o Tribunal americano, o paciente pode ser responsabilizado por homicídio culposo, pois a proteção ao nascituro deve ser estendida aos embriões. Tom Parker, presidente do Tribunal do Alabama, citou a bíblia na decisão.
Amicus curiae na ação, a Associação Médica do Estado do Alabama afirmou que a decisão poderia encarecer o procedimento da fertilização in vitro ou provocar o fechamento de clínicas em razão do medo de processos judiciais.
No Alabama, uma lei estadual de 1872 permite que os pais entrem com processos contra pessoas ou entidades que causaram a morte de seus filhos. O magistrado utilizou a norma como fundamento e afirmou que “crianças não nascidas são crianças, sem exceções, com base no estágio de desenvolvimento ou localização física ou qualquer outra característica”.
Conforme o magistrado americano, a Justiça do Estado já havia decidido que fetos mortos em uma mulher grávida já eram cobertos pela lei de 1872, e que nada exclui crianças “extrauterinas” do artigo.
Diretora-executiva da Associação Nacional de Infertilidade dos EUA, Barbara Collura destacou que a decisão “que determina que um óvulo fertilizado, que é um amontoado de células, agora é uma pessoa, coloca em questão a prática de fertilização in vitro”.
Responsabilização
Diretora nacional do IBDFAM, a advogada Ana Carla Harmatiuk Matos entende que é necessário cuidado quando se debate sobre as repercussões jurídicas acerca de direitos pertencentes ao nascituro, “ou, como se pretendeu na referida decisão, ao embrião”.
“Isso porque, primeiramente, a laicidade é uma característica inerente ao Estado Democrático de Direito e, com frequência, as discussões relativas ao início da vida ou como deve o Direito tutelar situações nas quais há implicações relativas a isso – veja-se o aborto, por exemplo – são transversadas por motivações ou fundamentações de cunho religioso, de forma que a argumentação jurídica desloca-se para um segundo plano”, explica.
A advogada observa que a decisão do Estado americano teve como fundamento trechos da Bíblia. Segundo a advogada, “o aspecto jurídico e legal aparece como mero acessório à argumentação religiosa com a qual se pretendeu legitimar a decisão”.
“Tendo o voto do presidente da Corte 23 páginas, em 42 passagens ocorre a citação da figura de ‘Deus’. Ao mesmo tempo, a única menção à Constituição estadual do Alabama é feita com o fim de sustentar que, pelo fato do documento estabelecer ser uma política pública do Estado resguardar a santidade do feto e o direito das crianças ainda por nascer, devendo estes ser protegidos ‘de todas as maneiras e medidas legais apropriadas’, estaria aberta uma margem de discricionariedade para que o Legislativo determinasse a tutela a ser aplicada à vida do nascituro”, avalia a especialista.
“Decisão pautada, essencialmente, em preceitos religiosos”, diz especialista
De acordo com Ana Carla Harmatiuk, não se trata propriamente de um argumento de índole constitucional, “mas sim do uso da Constituição estadual como artifício apto a justificar uma decisão pautada, essencialmente, em preceitos religiosos”.
A advogada detalha que o procedimento de fertilização in vitro consiste em fecundar óvulo e espermatozoide em ambiente laboratorial, formando embriões que serão cultivados, selecionados e transferidos ao útero da mulher. “Nesse procedimento, alguns atos que podem vir a ser realizados com o material genético são consentidos (ou deveriam ser) pelas partes envolvidas, mesmo se tratando de assuntos ‘existenciais’.”
“É o caso de previsões ‘contratuais’ que determinam o descarte dos embriões após sua criopreservação por certo tempo, bem como sua destinação a entidades de pesquisa médica ou experimentos. É uma prática amparada em critérios que, afastada de princípios religiosos ou de natureza semelhante, não trata embriões de modo isonômico com a vida plena”, pontua.
Na visão da especialista, equiparar embriões aos nascituros, principalmente para fins de punição, é um equívoco. “Para além disso, é preciso considerar os impactos que tal interpretação teria em matéria de pesquisa científica e técnicas de reprodução assistida.”
Para ela, o principal ponto da decisão a ser questionado é o fato de não haver o desenvolvimento de um argumento jurídico que sustente a interpretação.
Responsabilidade civil
A diretora nacional do IBDFAM destaca que, no Brasil, seria possível a responsabilidade civil decorrente da falta de perícia técnica das clínicas que realizam os procedimentos ou mesmo por atos ou omissões de terceiros. “Em caso de negligência ou falta de observância de algum cuidado necessário, resultando no dano ao material coletado e armazenado ou dano moral aos envolvidos, é viável que alguma forma de responsabilidade ocorra.”
Ana Carla frisa, entretanto, não ser cabível uma responsabilização nos moldes alinhados pela decisão norte-americana, que equiparou a proteção destinada aos embriões àquela que é conferida às crianças, de forma a ser a perda ou o descarte dos óvulos fertilizados caracterizada como homicídio.
“Para além do embasamento religioso já comentado, o magistrado utilizou uma lei estadual de 1872 que permite que pais iniciem demandas judiciais contra pessoas ou entidades que causaram a morte de seus filhos. A equiparação de embriões a ‘filhos’ decorreu do argumento de que ‘crianças não nascidas são crianças, sem exceções, com base no estágio de desenvolvimento ou localização física ou qualquer outra característica’”, lembra.
Ela acrescenta: “Tratou-se, portanto, de realizar tal equivalência de forma a ensejar a possibilidade de se julgar criminalmente atos lesivos contra embriões, resultando na consideração de serem estes tutelados pelos mesmos direitos que nascituros ou propriamente crianças”.
A especialista comenta ainda que, na decisão, um dos ministros sustenta que a redação da Constituição estadual do Alabama, ao afirmar ser política pública "reconhecer e apoiar a santidade da vida e do feto e os direitos das crianças por nascer, incluindo o direito à vida", abriria margem para discricionariedade e, assim, com base nela se poderia decidir.
De acordo com Ana, no Brasil, uma possível responsabilidade civil a ser atribuída às clínicas ou a terceiros que danifiquem os embriões em suas instalações, decorrente de dano material, existencial ou moral causado, teria tratamento jurídico previsto no Código Civil. “Ainda que seja possível inferir algum viés subjetivo ao ato de verificação da existência de violação nesse sentido, não se deveria usar de tanta discricionariedade, sem esclarecer os limites ou parâmetros jurídicos adotados para efetivar a proteção de direitos.”
“Em face da ausência de regras e normas específicas sobre o assunto, não seria o caminho a ser seguido admitir a possibilidade de se punir criminalmente eventuais danos causados ao embrião. A postura punitivista como tratamento a ser dispensado nesses casos não se enquadra como solução adequada para se buscar lidar com a questão”, reconhece.
Biossegurança
Ana Carla Harmatiuk Matos esclarece que não há um regramento específico para lidar com essa situação no Brasil. “O que é possível é a análise de precedentes sobre temas correlatos e princípios constitucionais, cuja interpretação deve se dar de forma sistemática, bem como os parâmetros éticos das resoluções do Conselho Federal de Medicina – CFM sobre o tema.”
“Referente ao CFM, recentemente as normas reguladoras da utilização de técnicas de reprodução assistida foram atualizadas pela entidade, resultando na Resolução 2.230/2022. Nesta, estão previstas normas e diretrizes a serem seguidas quando da realização de algum dos procedimentos autorizados. Ainda que não trate de lei em sentido estrito, é uma norma que pode servir como parâmetro e auxiliar o debate jurídico”, afirma.
Acerca de precedentes, a advogada cita a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 3.510/2008, de relatoria do ministro Carlos Ayres Britto, a favor da pesquisa com células-tronco embrionárias. “Neste caso, sustentou o relator, em argumentação contra o artigo 5º da Lei de Biossegurança, que a vida humana se situa entre duas etapas: nascimento com vida e morte encefálica, período no qual a pessoa é dotada de personalidade jurídica, o que confere a ela direitos e obrigações na esfera civil.”
“Ainda argumentou o ministro que ‘embrião é embrião, pessoa humana é pessoa humana e feto é feto’. Nestes termos, discordou da tese defendida pela Procuradoria-Geral da República, conforme a qual a pesquisa com células-tronco embrionárias feria a proteção constitucional ao direito à vida e à dignidade humana, argumentando ser o embrião uma vida humana”, relembra.
Jurisprudência
Ana avalia que a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ possibilita ao nascituro a indenização por danos morais, na hipótese de terem ocorrido a partir de violação da dignidade da pessoa humana, “desde que comprometam seu desenvolvimento digno e saudável no meio uterino e o posterior nascimento com vida, havendo repercussões após isso”.
“Em julgamento acerca disso, no REsp. 1.170.239, ficou estabelecido que uma menina, à época dos fatos nascitura, não teria direito à indenização por danos morais em razão de exame de ultrassonografia, cujo resultado, de forma equivocada, indicou que ela teria Síndrome de Down. Contudo, tanto o centro radiológico, no qual foi realizado o exame, quanto a operadora do plano de saúde foram condenadas a, solidariamente, indenizar os pais da criança”, aponta a advogada.
O relator do caso, ministro Marco Buzzi, destacou haver avanço na doutrina e jurisprudência no que diz respeito à proteção dos direitos do nascituro. “Para além de teorias que buscam definir o exato momento em que um indivíduo adquire personalidade jurídica, sustenta, fato é que os nascituros, ainda que considerados como realidade jurídica distinta da pessoa natural, é titular de direitos da personalidade.”
A diretora nacional do IBDFAM cita ainda o REsp 931.556, no qual se negou provimento ao pedido de uma empresa condenada à indenização por danos morais e materiais pela morte de um empregado vítima de acidente de trabalho, e foi mantida em montante igual à fixação de indenização aos filhos nascidos da vítima e ao nascituro.
“Enfim, há mais precedentes que versam sobre direitos do nascituro. Nenhum trata de analisar a possibilidade de se equiparar o embrião ao nascituro, mas consistem em balizas jurídicas dentro das quais se pode refletir sobre a temática”, constata.
Ana Carla Harmatiuk ressalta que há, também, os princípios constitucionais, que se configuram como vetores a serem seguidos por todo o Direito. “Por representarem a essência da Constituição, é necessário considerá-los e interpretá-los de forma sistemática ao tratar de questões atinentes à garantia de direitos.
“Diante da inexistência de regulação específica, acredito serem estes os caminhos possíveis para pensar a questão”, conclui a advogada.
Por Débora Anunciação
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