Notícias
40 anos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; o que mudou?
.jpg)
Quarenta anos após a publicação pelo Brasil da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, desafios persistem e obstáculos tornam a isonomia, a igualdade e a equidade entre os gêneros ideais cada vez mais distantes.
Durante séculos, o patriarcalismo permeou a organização da sociedade, desde a educação até a produção, consumo, política e o próprio Direito. É o que lembra a professora Adélia Moreira Pessoa, presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
Adélia explica que no século XX, especialmente no período pós-guerra, foi marcado pelo processo de emancipação da mulher, com a inclusão feminina no mercado de trabalho, permeada pelas reivindicações de igualdade. É neste contexto que, em 18 de dezembro de 1979, foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW (Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women).
Assinada pelo Brasil, em 31 de março de 1981, com reservas na parte relativa à família – essas reservas estavam relacionadas ao artigo 15, § 4° e art. 16, § 1°, “a”, “c”, “g” e “h”, que tratam sobre a igualdade entre homens e mulheres na esfera familiar – a Convenção foi ratificada pelo Congresso Nacional, com a manutenção dessas reservas, em 1º de fevereiro de 1984.
“Em 1994, tendo em vista a isonomia entre homens e mulheres estabelecida na Constituição de 1988, o Brasil retirou as reservas, ratificando plenamente toda a Convenção. Nesses vários instrumentos internacionais ratificados, comprometeu-se o Brasil a garantir esses direitos a todas as mulheres e buscar sua plena efetividade”, aponta Adélia.
Ela complementa: “A proteção dos direitos da mulher é parte do processo de especificação de direitos que se afirmou por meio de diversas convenções que quebraram a dicotomia entre o público e o privado, alcançando diversas formas de violência de gênero, inclusive no âmbito familiar e explicitando a aplicabilidade do Direito a casos de violência ocorridos na esfera doméstica”.
Inovação
A discriminação contra a mulher é definida no artigo 1º da Convenção, como “toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”.
Para Adélia, o texto inova ao introduzir o conceito de violência baseada no gênero – critério ainda utilizado para criar espaços socialmente diferenciados e hierárquicos. “Preconceitos e estereótipos de gênero ainda estão presentes na sociedade brasileira.”
“O modelo da parceria, no qual homens e mulheres repartem as tarefas domésticas e de cuidado da família ainda está longe de ser alcançado. Grande parte do trabalho da mulher permanece invisível e desvalorizado, com salários mais baixos e ocupações precárias”, afirma.
A conquista de igualdade, acrescenta a especialista, perpassa pela igualdade profissional entre os gêneros, e não deve ser vislumbrada apenas do ponto de vista formal, mas também de maneira qualitativa e quantitativa. “Grande parte do trabalho realizado pelas mulheres é invisível e desvalorizado.”
Equidade de gênero
Adélia assegura que a erradicação de todas as formas de discriminação por motivo de sexo são objetivos prioritários da comunidade internacional. “A equidade de gênero, um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, aprovado em 2015 pela Organização das Nações Unidas – ONU, requer um equilíbrio entre homens e mulheres sem esquecer as necessidades específicas que podem ter as mulheres, diferenças biológicas que não podem ser confundidas com desigualdades de direitos.”
Na esfera de participação política, a especialista cita o ranking da Inter-Parlammentary Union. Conforme o levantamento, o Brasil está entre os piores em representação feminina no Legislativo.
Na visão da professora, “os números de representatividade feminina ainda são tímidos, mas não deixam de refletir a luta incansável de muitos movimentos e entidades que defendem a equidade de gênero na política – e em todas as áreas –, como um manifesto de uma sociedade de fato menos desigual e menos preconceituosa”.
“Por outro lado, é importante atentar para o contexto sociocultural: não basta apenas maior quantidade de mulheres. É preciso indagar: Quem são estas mulheres a ocupar espaços de poder no Brasil?”, questiona.
Vedação do retrocesso
Apesar de avanços, Adélia afirma que ainda é preciso enfrentar muitos obstáculos e desafios. “É urgente garantir a reserva de assentos para mulheres nas Casas Legislativas e não apenas cotas de candidaturas. E não pode ser de 15% como aventado por alguns parlamentares.”
“Há um princípio jurídico que nunca pode ser esquecido: a vedação do retrocesso. É necessária a garantia do espaço da mulher nas Casas Legislativas na proporção da população com seus recortes de gênero e raça”, frisa.
Na visão da especialista, também é fundamental uma formação continuada de homens e mulheres para efetivar os princípios assegurados na Constituição Federal, além de “um Direito realmente antidiscriminatório, com foco não só na lei, mas nas estratégias necessárias e políticas públicas para sua concretização, no viver do dia a dia das mulheres”.
“Por isso falamos em equidade. Não adianta um discurso de igualdade, quando na vida concreta isso inexiste”, pontua Adélia.
A professora reconhece a importância dos números, mas pondera: “É o aumento efetivo da participação feminina que fará a diferença na abordagem da criminalização do aborto, da violência obstétrica, da defasagem de salários, do desemprego que acomete mais a mulher; da violência silenciada e invisibilizada em processos de família; e da falta de políticas públicas consistentes de assistência à família”.
Violência doméstica
A presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM entende que as leis não bastam. “O acesso aos direitos exige, não apenas, o reconhecimento nas normas jurídicas, sejam internas ou internacionais.”
“Faz-se necessária a existência de mecanismos e estratégias para tornar o acesso formal em acesso real. E ainda é indispensável empoderar a mulher para se reconhecer como sujeito de direitos e acionar as leis na proteção de seus direitos”, ressalta.
Adélia percebe que a reprodução de estereótipos reforça a cultura de discriminação e violência contra a mulher. “A compreensão dos mitos é etapa importante do trabalho de intervenção. Negligências e omissões, muitas vezes, são justificadas com base nesses mitos e estereótipos.”
“Um longo caminho já foi percorrido, mas se desenha no horizonte um longo caminho a percorrer, com múltiplos desafios. Nunca é demais enfatizar a distância entre o que está previsto nas normativas internacional e nacional e a realidade”, analisa.
É preciso ainda, complementa Adélia, superar a dificuldade das mulheres em situação de discriminação/violência para denunciar e manter a denúncia, bem como a falta de apoio efetivo, no âmbito privado e público. Outros pontos nevrálgicos citados por ela “são a incompreensão e a resistência dos agentes sociais responsáveis pelos atendimentos e encaminhamentos, e a falta de programa de atendimento ao homem autor da agressão, que retorna a esta prática, mesmo que em outra família, ocorrendo elevados índices de reincidência específica”.
“Outro desafio refere-se à necessidade urgente de medidas de prevenção à discriminação/violência contra a mulher, compreendendo múltiplas ações educativas e culturais que interfiram nos padrões sexistas, pois as mudanças de posturas quanto aos direitos humanos das mulheres não são consequência automática da sociedade democrática. Além disso, são necessárias políticas públicas mais consistentes em assistência social e saúde, visando à proteção à vítima e à família”, comenta.
De acordo com a diretora nacional do IBDFAM, as relações entre homens e mulheres não são inscritas na natureza, e, justamente por isso, são passíveis de transformação. “É necessário trabalhar competências e habilidades de comunicação, trabalhar protagonismo social da mulher, ressaltando sempre que a violência contra a mulher é violência contra a família, de modo transgeracional.”
Ela conclui: “As intervenções do Estado precisam ir muito além de responsabilização criminal, enfatizando-se o exercício da cidadania das mulheres, as possibilidades de acesso à rede de serviços e à Justiça”.
Por Débora Anunciação
Atendimento à imprensa: ascom@ibdfam.org.br