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STF: audiência de ratificação de representação em acusações de violência doméstica devem ser pedidas pelas vítimas
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O Supremo Tribunal Federal – STF formou maioria para determinar que audiências de ratificação de representação a acusações de violência doméstica não possam ser determinadas por iniciativa própria dos juízes, apenas por pedido das vítimas. O julgamento ocorreu no dia 21 de agosto, em sessão virtual.
Com isso, a Corte entende que a garantia da liberdade só existe se a mulher puder solicitar a audiência de retratação prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha (11.340/2006). Determinar o comparecimento da vítima a essa audiência significa violar sua intenção e, portanto, discriminá-la.
O artigo 16 da Lei Maria da Penha prevê que"nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público".
Ajuizada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – Conamp, a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 7267 pedia que o STF garantisse a continuidade das ações penais nos casos em que a vítima de violência doméstica não comparecesse à audiência de retratação.
Segundo a Conamp, o não comparecimento da vítima a tal audiência vinha sendo interpretada como renúncia tácita, com extinção da punibilidade do agressor e arquivamento do processo. Na visão da entidade, esse entendimento viola os princípios da dignidade da pessoa humana e do devido processo legal, além de retirar do MP a titularidade exclusiva para promover ação penal pública.
Conforme a autora da ação, o objetivo da audiência é a verificação do real desejo da vítima de retirar a representação contra o agressor, e não a sua confirmação.
Prevaleceu o voto do ministro Edson Fachin, relator da ADI, segundo o qual o artigo 16 da lei "não deve ser lido de forma isolada, como se contivesse apenas dispositivos dirigidos ao juiz".
Segundo o magistrado, a função da audiência não é apenas "avaliar a presença de um requisito procedimental". "Não cabe ao juiz delegar a realização da audiência para outro profissional, nem cabe ao juiz designar, de ofício, a audiência", concluiu o relator.
Confirmar a retratação
A professora Adélia Moreira Pessoa, presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM, relembra que a questão foi tratada quando o Superior Tribunal de Justiça – STJ examinou o Tema 1.167, firmando a tese de que “a audiência prevista no art. 16 da Lei 11.340/2006 tem por objetivo confirmar a retratação, não a representação, e não pode ser designada de ofício pelo juiz. Sua realização somente é necessária caso haja manifestação do desejo da vítima de se retratar trazida aos autos antes do recebimento da denúncia".
“Para o STJ, não há como interpretar que a audiência mencionada no artigo 16 da Lei Maria da Penha seja destinada apenas à confirmação do interesse da vítima em representar contra seu ofensor, pois isso implicaria estabelecer uma condição de procedibilidade não prevista na lei”, analisa.
Segundo ela, a questão diz respeito apenas à hipótese de ações penais públicas condicionadas à representação, o que exclui casos de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher, “pois a ação penal relativa ao crime de lesão corporal é pública incondicionada, não se exigindo representação da ofendida, conforme Súmula 542 do STJ”.
‘Audiência de desencorajamento’
Para Adélia, a decisão do STF tem o objetivo de evitar que, sem pedido da vítima, o Judiciário continue a marcar audiências para que ela confirme que quer processar o agressor nos crimes de violência doméstica.
“Depois de percorrer um caminho de muitas violências, a ofendida toma coragem e vai à delegacia denunciar a violência, muitas vezes reiteradas agressões há anos. E não podemos esquecer as pressões que esta mulher sofre, até mesmo de parentes próximos. Sempre chamei essa audiência de ‘audiência de desencorajamento da vítima’, trazendo a revitimização da mulher ou estimulando a subnotificação de comportamentos violentos”, afirma.
A especialista aponta que muitos crimes que dependem de representação não chegam ao conhecimento da Justiça. Em relação à violência doméstica, “só aparece a ‘ponta do iceberg’”.
“Sendo assim, o juízo só pode marcar a audiência se a vítima manifestar o desejo de retirar a representação. Além disso, o não comparecimento da vítima não pode ser interpretado como renúncia tácita, com o arquivamento do processo pois, como sustentou a Conamp, no pedido, a finalidade da audiência é verificar o real desejo da ofendida, se for o caso, de retirar a representação contra o agressor, e não confirmá-la”, pontua.
Ela lembra que pode ser designada uma audiência de acolhimento da vítima para que ela seja ouvida separadamente, sem a presença do agressor, juntamente aos encaminhamentos necessários para a assistência jurídica e psicossocial, principalmente quando a instrução processual está marcada para meses após o fato.
“Nesta seara de violência doméstica e familiar, é indispensável a interdisciplinaridade, o diálogo com outros saberes, especialmente a psicologia e o serviço social que podem contribuir com as lentes de gênero e tornar mais visíveis os dramas que chegam à Justiça”, afirma.
Mulheres se sentem desassistidas
De acordo com o relatório “O Poder Judiciário no Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres”, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, mulheres em situação de violência se sentem desassistidas pela Justiça, que não faz muitas vezes os encaminhamentos aos Centros de Referência Especializados de Assistência Social – CREAS, Centro de Referência de Atendimento à Mulher – CRAM e outros equipamentos assistenciais.
“Sendo assim, essas audiências de acolhimento precisam ser feitas com esmero, com a participação de técnicos e não só profissionais com formação jurídica. E essa audiência que é feita em alguns juízos, em hipótese alguma, pode ser para desestimular as mulheres na busca de seus direitos”, comenta.
Adélia Moreira Pessoa destaca ainda que a posição do STF reforça o entendimento de que o acesso da mulher à Justiça depende não só de leis, mas também do reconhecimento dos direitos da mulher pelo Estado e sua formalização por meio de normas.
“Fazem-se necessárias a existência de mecanismos e estratégias para tornar o acesso à Justiça formal em acesso real, com sua efetividade por meio da organização, administração e distribuição da Justiça”, afirma.
Isso está presente na Recomendação 33 do Comitê da Organização das Nações Unidas para Eliminação da Discriminação contra as Mulheres – CEDAW/ONU que, em seu item 28, dispõe sobre a necessidade de as mulheres poderem “contar com um sistema de justiça livre de mitos e estereótipos, e com um Judiciário cuja imparcialidade não seja comprometida por pressupostos tendenciosos. Eliminar estereótipos no sistema de justiça é um passo crucial na garantia de igualdade e justiça para vítimas e sobreviventes”.
Para isso, seriam necessárias medidas, tais como “programas de conscientização e capacitação a todos os agentes do sistema de justiça e estudantes de direito, para eliminar os estereótipos de gênero e incorporar a perspectiva de gênero em todos os aspectos do sistema de Justiça”.
“São necessárias e urgentes ações educativas de sensibilização de mulheres para que possam se reconhecer como sujeitos de direitos e acionar as leis na proteção de seus direitos. Precisamos trabalhar para o empoderamento das mulheres, na linha do que é proposto nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS para a Agenda 2030”, afirma.
ADI 7.267
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