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Avanço ou ‘inchaço’? O que levou o Brasil a bater recorde de registros de mudança de gênero
Entre 2021 e 2022, o Brasil registrou um aumento de 70% no volume de registros de mudança de nome e gênero em cartórios de registro civil. Em entrevista ao IBDFAM, especialistas avaliam dados recentemente divulgados pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais – Arpen-Brasil e refletem sobre o cenário atual brasileiro.
Segundo a Arpen-Brasil, entidade que reúne todos os 7.741 Cartórios de Registro Civil do Brasil, nos últimos dois anos o número de registros de mudança passou de 1.863 para 3.165. O número é recorde no país desde que a alteração passou a ser possível diretamente nos cartórios, em 2018.
Conforme os dados divulgados pela entidade, do total de atos realizados em 2022, 43% se referem a pessoas que mudaram seu gênero de feminino para masculino, enquanto 51,3% mudaram de masculino para feminino, uma proporção que vem-se mantendo ao longo dos anos. Já 5,7% mudaram o nome, mas ainda não realizaram ou estão em procedimento para mudar de sexo.
No mesmo período, o Estado de São Paulo registrou um aumento de 40% na alteração de gênero em documentos pessoais nos cartórios. De acordo com informações compiladas pela Arpen-SP, do total de procedimentos realizados em 2022, cerca de 45% envolveram alteração do gênero feminino para o masculino e de nome; 49%, do gênero masculino para o feminino, incluindo nome; e 6% optaram por fazer somente a mudança no registro do gênero, mantendo o mesmo nome.
“Alguns fatos podem ter influenciado incidentalmente esse aumento, como o arrefecimento da pandemia da Covid-19”, avalia Márcia Fidelis Lima, oficial de registro civil e presidente da Comissão Nacional de Notários e Registradores do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
Segundo a especialista, a crise sanitária criou um gargalo entre 2020 e 2021, adiando os atos que deveriam ser requeridos nesse período, “tendo por consequência um certo alargamento dos números atuais”. Ela pondera, contudo, que o maior impacto veio da edição de normas.
Ela cita o Provimento 16/2022/CGJRS, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que dispensou a via judicial e autorizou a alteração da manifestação de gênero no registro para não binário, diretamente perante o registrador civil.
Inclusão social
Márcia Fidelis reconhece que a decisão do Supremo Tribunal Federal – STF no âmbito da ADI 4275 representou um grande marco para a garantia da dignidade da pessoa transgênero. O Tribunal entendeu pela constitucionalidade do requerimento de alteração do prenome e do sexo no registro da pessoa transgênero diretamente nos ofícios de registro civil.
Ela lembra, no entanto, que o Provimento 73/2018, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, de abrangência nacional, ateve-se a regulamentar essas alterações dentro da binaridade. “Ou seja, o campo ‘sexo’ no registro de nascimento pode ser alterado de ‘feminino’ para ‘masculino’ e vice-versa.”
Essa dicotomia, segundo a especialista, não alcança a realidade de grande parte dos transgêneros. “Tanto o sexo da pessoa, biologicamente falando, quanto a sua identidade de gênero são espectros e não uma dualidade.”
“Essa maior amplitude garante reconhecimento jurídico e inclusão social, direitos de todos os cidadãos e cidadãs no nosso país, já que retrata no registro a sua realidade identitária, que não se limita à dualidade homem/mulher”, frisa Márcia.
Abrangência nacional
A diretora nacional do IBDFAM acredita que uma regulamentação de abrangência nacional é necessária para garantir de forma efetiva o direito desta população na seara registral brasileira.
“Essa medida, além de atender a todo o público brasileiro, evitará variações nas regras a depender da Unidade Federativa. Urge o tratamento do assunto pela Corregedoria Nacional do Conselho Nacional de Justiça”, comenta Márcia Fidelis.
De acordo com a especialista, também “é imprescindível que se dê maior divulgação desse direito para que alcance a população mais distante dos grandes centros, mais alheias ao debate público e à informação de qualidade”.
Transfobia
A tabeliã de notas Carla Watanabe, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, vê o aumento de forma crítica. Para ela, o crescimento nada representa diante do número de pessoas que têm desejo de proceder à retificação, mas não o fazem devido à transfobia da estrutura e de alguns oficiais.
“Não é um crescimento. É um inchaço”, acredita Watanabe.
Em contrapartida, a professora e pesquisadora da CAPES, Sara Wagner York, aponta a existência de dois movimentos: “Um que expande o conceito de gênero desvinculado ao sexo, como várias correntes teóricas têm demonstrado; e um que é acionado pelo sujeito ao compreenderem que suas identidades e modos de estarem no mundo não cabem em conceitos fechados como tínhamos no século passado”.
“Roupas, brinquedos e coisas de meninos, já não são apenas deste grupo. Somos como a natureza, diversos, diferentes e múltiplos, ainda que pareçamos tão iguais, ainda somos únicos”, conclui a pesquisadora.
Por Débora Anunciação
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