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Mulher consegue autorização judicial para interromper gravidez de risco
A 1ª Vara do Júri Central do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP autorizou uma mulher a interromper a gravidez. De acordo com os autos, exames gestacionais evidenciaram que o feto apresentava quadro de malformações renais e pulmonares, além de ausência de líquido amniótico, anomalias que inviabilizam a vida do bebê após o nascimento, o que gerou grave sofrimento emocional e psicológico à requerente. O caso foi considerado urgente e foi expedido alvará para realização do procedimento mediante intervenção médica.
Na decisão foram mencionados casos análogos julgados pelo TJSP em que se autorizou a antecipação do parto, diante de anomalias fetais que tornavam impossível a sobrevida. O juiz relator também ressaltou que seria uma “clara afronta a direitos básicos da mulher gestante” obrigá-la a levar até o fim uma gestação sabidamente frustrada.
No entendimento do magistrado, tornam-se evidentes as severas sequelas que decorrem da frustração e tristeza da desumana sina de levar a termo gestação de desejados filhos que certamente não sobreviverão.
Ainda de acordo com a decisão, é clara a afronta a direitos básicos da mulher gestante, tais como ao direito à sua liberdade de pensamento e consciência, o direito de ver respeitada a sua integridade física, psíquica e moral, o direito ao respeito à sua dignidade, o direito de não ser submetida a nenhum tratamento desumano ou cruel, no âmbito físico ou mental, aspectos da dignidade da pessoa humana. Neste cenário, não pode o Estado laico, consubstanciado na figura do Estado juiz, obrigando que a gestante leve a termo tal gravidez, sofrendo verdadeiro calvário.
O juiz também apontou que, no caso apresentado, não há que se falar em reprovação ou censura da interrupção da gravidez, afastando, assim, a hipótese de culpabilidade da mulher gestante.
Especialista comenta
A advogada e professora Joyceane Bezerra de Menezes, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, destacou que a decisão responde ao pedido de “antecipação terapêutica do parto” para afastar eventual tipicidade da conduta como crime de aborto, previsto no art.124 do Código Penal Brasileiro. Segundo os médicos especialistas do Departamento de Obstetrícia da Faculdade de Medicina de São Paulo, a Requerente cumpria uma gestação gemelar, com os dois fetos afetados por um gravíssimo problema de saúde, incompatível com a vida pós-natal.
A especialista lembra que no caso, a mulher não vivia a gestação na expectativa de adiante embalar, amamentar e cuidar dos seus filhos. A gestação trazia-lhe, além dos riscos à saúde biopsíquica, o intenso sofrimento psicológico por saber que nunca teria aqueles bebês.
“Quais interesses jurídicos estavam em questão: de um lado, a integridade biopsíquica da gestante e de outro, a preservação de uma gravidez sem possibilidade de vida extrauterina viável. Optou o julgador por preservar a saúde e dignidade da mulher”, afirma.
Joyceane Bezerra de Menezes opina que a decisão não chancelou qualquer prática de eugenia – recusando o nascimento de uma criança com deficiência ou doença crônica. No caso, autorizou-se a interrupção da gravidez gemelar cujos fetos foram diagnosticados sem possibilidade de vida extra-uterina em virtude de grave anomalia nos rins.
“Inexistia qualquer expectativa de um nascimento com vida viável. Sopesando os interesses jurídicos em cena, o julgador entendeu que mereciam tutela os direitos básicos da mulher gestante: quais fossem a sua integridade física, psíquica e moral, a sua saúde, a sua liberdade de consciência e pensamento, além do direito de não ser submetida a tratamento desumano ou cruel”, destaca.
Por isso, para ela não houve uma discussão sobre a interrupção voluntária da gravidez, pautada em uma possível liberdade de autodeterminação reprodutiva da gestante; e sim o pleito para uma interrupção seletiva da gestação admissível nas hipóteses em que há grave anomalia fetal que inviabiliza a sobrevivência extrauterina.
“A anencefalia é um dos mais exemplares casos, mas há outras anomalias que lhe são análogas: ‘são casos, por exemplo, em que órgãos vitais como cérebro, rins ou bexiga não se formam, incluindo defeitos de formação, como no caso de não fechamento do tubo neural, fechamento de parede abdominal e algumas anomalias cromossômicas.’ Em um quadro como esse, há muito mais uma antecipação terapêutica do parto e não exatamente um aborto que ocorre quando há possibilidade de vida do feto após o nascimento”, diz a advogada, citando o artigo Considerac?o?es e?ticas sobre o aborto e a doac?a?o de o?rga?os de fetos anence?falos.
Interrupção terapêutica ou seletiva
A professora enfatiza que a decisão autorizou à requerente a “interrupção terapêutica” ou “interrupção seletiva” da sua gestação”, sustentando uma “excludente de culpabilidade em face da inexistência de reprovabilidade ou censurabilidade da conduta”. Em apertada síntese entendeu pela inexigibilidade de conduta diversa.
“Muitas são as decisões judiciais que se assemelham a essa. Não há grave problema jurídico quanto ao fundamento jurídico do pedido, haja vista o risco da gestação inócua para a mãe e a inocorrência de vida viável para o feto. Observam-se diversos outros julgados na mesma linha no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e de outros estados. Pesado ônus seria impor à mãe o dever de carregar fetos que não lograrão um nascimento e vida. Seria uma apropriação desarrazoada do seu corpo e da sua autonomia. Em que pese o debate sobre o aborto, com todas as vicissitudes que o tema encerra, um caso como o que se examina seguiu outra abordagem e outra configuração”, afirma.
Considerando ainda que a legislação não pune o aborto essencial à preservação da vida da gestante, mesmo que o feto tenha viabilidade de vida (art.128, inciso I, Código Penal). Igualmente não traz punição quando a gravidez resulta de estupro (art.128, inciso II, do Código Penal). A professora concluir, em sendo assim, por que se puniria o médico ou a mãe, quando há uma interrupção terapêutica da gravidez que somente traz riscos e sofrimento à parturiente, sem chances de vida para o feto?
“O Supremo Tribunal Federal já examinou a matéria em ADPF nº 54, decidindo pela interrupção gestacional do feto anencéfalo, comprovada a inviabilidade da vida extrauterina. Do contrário, consoante trecho da decisão que rememora a Professora Debora Diniz: ‘O dever de gestação se converte no dever de dar a luz a um filho para enterrá-lo’. Ou seja, a gestação se distanciaria de sua finalidade e se converteria em um prolongado velório”, finaliza a advogada.
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