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Por que não estamos fazendo audiência de custódia para os presos por dívida de alimentos?
Por que não estamos fazendo audiência de custódia para os presos por dívida de alimentos?
Daniel Ferreira de Lira[1]
Dimitre Braga Soares de Carvalho[2]
Sumário:
1) Breve introdução.
2) A audiência de custódia no Direito brasileiro e sua origem histórica.
3) A natureza jurídica dos alimentos e a justificativa da prisão do devedor.
4) A audiência de custódia nas hipóteses de prisão civil do devedor de alimentos: discussão do Agravo Regimental na Reclamação nº 29.3030/RJ.
5) Conclusões.
Referências Bibliográficas.
1) Breve Introdução.
A dificuldade de cumprimento e satisfação das obrigações de alimentos no Brasil é histórica, e está fundamentada em aspectos socioeconômicos e em questões jurídicas. A vulnerabilidade econômica de parte significativa da população brasileira, por si só, já é indicador robusto das barreiras enfrentadas para a execução de decisões ou acordos que fixam alimentos. Do ponto de vista eminentemente jurídico, uma evolução histórica confusa e a criação de diversos institutos jurídicos que foram se sobrepondo ao longo do tempo, em distintos conjuntos normativos, também resultou em complexa e intrincada aplicação da matéria e execução das medidas.
Apesar dos entraves, a prisão civil do devedor de alimentos vem se mantendo como um dos mais sólidos instrumentos de justiça para atender aos anseios dos credores, medida que se caracteriza pela rapidez na sua aplicação e objetividade no acompanhamento do seu conteúdo.
A despeito das nítidas virtudes da prisão do devedor de alimentos, mais recentemente, forte corrente doutrinária nacional (muitas vezes equivocadamente amparada em experiências européias) vem propondo o fim da prisão civil do devedor de alimentos, e sua substituição por medidas alternativas, sob dois argumentos gerais, ambos falaciosos: i) o devedor que não paga a pensão solto, também não o fará preso; ii) a prisão do devedor de alimentos teria o condão de criar uma ruptura afetiva definitiva entre credor e devedor, sobretudo quando se trata de relação entre ascendentes e descendentes.
Ressalte-se que a prisão do devedor de alimentos (com suas peculiaridades e desdobramentos) está assentada na própria natureza jurídica do instituto, cujo conteúdo é majoritariamente patrimonial, como se demonstrará a seguir.
Superado o (necessário) debate acadêmico, a realidade da prática familiarista é de ampla utilização da prisão civil do devedor como meio coercitivo para o cumprimento da dívida, e embora não haja dados estatísticos concretos sobre sua eficácia, a experiência diária demonstra cabalmente seu sucesso.
Cumpre lembrar que a prisão do devedor de alimentos está lastreada, dentre outras normas, na Lei de Alimentos, que remonta ao já distante ano de 1968. Sinal dos tempos, as comuns alterações procedimentais para matéria de tamanha importância são não apenas bem-vindas, mas necessárias. É exatamente nesse contexto que se insere a realização de audiência de custódia para réus presos por dívida de alimentos: forçosa uma atualização para efetivar garantias de cunho humanitário, critérios legalistas para prisão de qualquer cidadão no país, e averiguar a pertinência e a oportunidade da prisão fundada em execução de dívidas alimentares.
Oportunizar a atualização dos procedimentos para prisão de devedores de alimentos é, de certa forma, compatibilizar a atuação das Varas de Família com um conjunto de críticas legítimas contra excessos nas prisões civis por débitos alimentares e justifica, vivamente, a necessidade de utilização da audiência de custódia em tais procedimentos.
Por fim, faz-se preciso destacar que a matéria é atualíssima, vez que está pautada para deliberação pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal para o próximo mês de fevereiro de 2021, nos termos do julgamento do Agravo Regimental na Reclamação nº 29.3030/RJ, interposto pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
2) A audiência de custódia no direito brasileiro e sua origem histórica.
Nos idos de 1998, a Corte Constitucional da Colômbia declarava Estado de Coisas Inconstitucional (ECI), face ao quadro de superlotação das penitenciárias do país. Por meio de uma sentencia de tutela, a Corte Colombiana reconhecera grave violação aos direitos humanos da população carcerária em todas as prisões do país e estruturou um conjunto de providências positivas e negativas que deveriam ser levadas a efeito pelo Estado colombiano.
Alguns anos depois, em 2004, sem estudos correlacionais conhecidos das consequências da decisão de 1998, a Corte Colombiana produziu nova decisão estruturante reconhecedora de ECI, desta feita, sobre um possível efeito oblíquo do mesmo tema, referente aos “deslocamentos compulsórios de pessoas, autoridades, vítimas ou testemunhas”, de seus próprios domicílios ou cidades para outros locais, ou mesmo países, afugentadas pela violência e ações do crime organizado.
Quaisquer semelhanças com as terras de Ernesto Neto, Fernando Sabino e do feijão com pequi não podem ser mera coincidência, em se tratando de sistemas judiciais de países periféricos.
Nos dois casos - sentencia de tutela (T) – 153, de 28 de abril de 1998 e sentencia de tutela (T) – 025, de 22 de janeiro de 2004 - a Corte Constitucional Colombiana determinou uma série de providências a serem adotadas pelos demais poderes da república, com o objetivo de eliminar as violações apontadas.
No Brasil - dezoito anos depois - influenciado pelas decisões da Corte Colombiana, o Supremo Tribunal Federal nos autos da ADPF nº 347/DF declarou o inédito ECI em sua história constitucional, também para reconhecer as mazelas medievais do sistema prisional nacional. Nessa senda, deferiu parcialmente uma série de medidas cautelares, dentre as quais a realização de audiências de custódia no prazo de até 90 dias (Adota-se aqui a expressão “sistema prisional nacional” para diferenciá-lo do “sistema penitenciário nacional”, expressões que volta e meia são tratadas, ou apresentadas, como sinônimas, a despeito do sistema penitenciário abranger o sistema prisional).
Decerto, a decisão estabeleceu diretrizes essencialmente para o Poder Judiciário, para além de uma ou outra requisição de informação do Poder Executivo, e a determinação de descontingenciamento dos recursos do Funpen.
De lá para cá, sucederam-se diversas outras decisões que objetivaram pela via judicial compelir ou estruturar, na melhor das intenções políticas, o equacionamento dos dilemas da “hiperlotação”, que muito se confunde com o “hiperencarceramento”. Outra confusão terminológica intencional e usual.
Inobstante, tal-qualmente ocorrera na Colômbia, passados mais de cinco anos da decisão do STF, o sistema prisional brasileiro não apresenta melhora significativa em suas condições. Muito pouco, ou quase nada mudou, o que ajuda corroborar a tese do Professor de Direito da Universidade de Chicago Gerald Rosemberg lançada no famigerado The Hollow Hope (1991), obra em que analisou a real capacidade da Suprema Corte dos Estados Unidos em promover mudanças sociais.
Para Rosemberg[3], mudanças top-down, de caráter social, operadas pelo Direito construído pelas cortes superiores, sem apoio político e popular, prévios e significativos, não surtem os efeitos pretendidos e podem até mitigar a autoridade das cortes constitucionais.
A doutrina constitucional da época se dividiu sobre o tema no Brasil, poucos não foram os críticos à decisão do STF, dentre os quais Glezer e Machado[4] (2015), Colaço Filho[5] (2018) e Lênio Streck[6] (2015). Teses importantes de doutorado foram produzidas, a exemplo do trabalho de Carlos Alexandre de Azevedo[7] (2015). O fato é que essa discussão gravitou sobre um tema maior, qual seja: o do ativismo estrutural, que não é objeto da presente análise.
Mais recentemente, o Prof. Dr. Breno Baía Magalhães[8] (2019) realizou mais uma científica análise dessa temática, levantando o estado da arte e, dentre outras considerações, constatou um traço comum entre os trabalhos produzidos até então: “a não problematização quanto às consequências jurídicas e políticas da decretação judicial desse estado de coisas”. Breno Baía diga-se, en passant, tem problematizado essa questão proficuamente no Brasil.
O fato é que, para além de decisões judiciais pontuais, estendidas coletiva ou difusamente, não houve melhora do sistema e, no máximo, impediu-se que ele fizesse outras “vítimas”.
A despeito disso, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº213/2015, amparado no art. 9º, item 3, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (PIDCP), bem como o art. 7º, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) e na decisão da ADPF nº 347 do Supremo Tribunal Federal.
A Resolução, que foi além das medidas cautelares deferidas inicialmente na ADPF, disciplinou a realização das audiências de custódia no prazo de 24 horas, e não mais em 90 dias. Tratou-se de bandeira política e jurídica do Supremo Tribunal Federal, durante a gestão do Eminente Min. Ricardo Lewandowski, para além do próprio ECI. Não obstante, o STF já houvesse reconhecido a necessidade de realização de audiências de custódia no julgamento da ADI 5.240/2015, de 20 de agosto de 2015.
3) A natureza jurídica dos alimentos e a justificativa da prisão do devedor.
A natureza jurídica dos alimentos é obrigacional e patrimonial, tendo por fundamento o parentesco ou as relações de casamento ou companheirismo. É norma genericamente vitalícia, e seu fundamento nasce com a própria condição humana. A concepção de sustento da pessoa surge com a vida e com a paternidade, como um elevado direito.[9] Trata-se de um conceito mais filosófico que propriamente jurídico, a justificar a essência da prestação como um ônus natural do nascimento de filhos, ou do cuidado de idosos, por exemplo.[10]
Muito se discutiu na doutrina clássica de Direito de Família, acerca do pretendido caráter não patrimonial dos alimentos, no afã de resguardar um interesse superior voltado muito mais para o interesse de subsistência familiar. Entretanto, esse não foi o adjetivo primordial que restou configurado na prestação alimentar, sendo indispensável reconhecer seu aspecto econômico, para dar vazão a demandas específicas da realidade jurídica, como a prisão do inadimplente, ou a constrição patrimonial do devedor, dentre outras.
É certo, como sugere Yussef Said Cahali, que “o débito por alimentos não constituiria, no patrimônio do alimentante, uma verba a ser incluída sem seu passivo, pois não é levado em linha de conta quando se tem ao avaliar o patrimônio do prestante, na sua consistência econômica”. De igual forma, tampouco se insere o crédito de alimentos como um direito de que se poderia dispor o alimentando, fugindo, nesse ponto, à natureza obrigacional em sentido estrito do Direito Civil.
Outras correntes teóricas sustentam a tese de natureza jurídica não patrimonial dos alimentos, a fim de lhes diferenciar de obrigações derivadas puramente de negócios jurídicos em sentido estrito ou de contratos em geral. Se assim fosse, a matéria seria analisada no âmbito das obrigações em geral, ao invés do Direito de Família, hipótese que não justificaria a prisão quando da sua execução.
Em nosso entendimento, reafirme-se, a prestação de alimentos consolida-se em viés econômico, com natureza jurídica de obrigação patrimonial especial própria do ramo familiarista, de cunho personalíssimo. De fato, a obrigação de dar alimentos é obrigação com prestação determinada, cuja satisfação se atinge através do seu cumprimento, gerando a quitação da dívida e a extinção da pendência jurídica entre ambos. Sem dúvidas, haverá para o devedor diminuição patrimonial, e para o credor acréscimo do seu acervo econômico.[11]
Inobstante considerações excessivamente acadêmicas, resta clarividente que a obrigação alimentar se enquadra na exata perspectiva de todo o Direito de Família, ao consolidar, simultaneamente, aspectos pessoais e patrimoniais, em legítima simbiose jurídica típica desse ramo do Direito. De todo modo, parece-nos possível afirmar que há supremacia do conteúdo econômico sobre o pessoal, em detrimento de sólida corrente doutrinária sem sentido oposto. Tal supremacia do conteúdo econômico justifica, fortemente, a necessidade da realização da audiência de custódia nas prisões do devedor de alimentos, vez que tal oportunidade procedimental humaniza o instante da privação de liberdade do executado e possibilita, ao Poder Judiciário, verificar as singularidades do caso concreto, corrigir desvios e avaliar, mais uma vez, sua oportunidade.
4) A audiência de custódia nas hipóteses de prisão civil do devedor de alimentos: discussão do Agravo Regimental na Reclamação nº 29.3030/RJ.
Timidamente, em todo o país, as audiências de custódia foram se tornando realidade nos plantões judiciais criminais e na rotina de juízes, promotores de justiça, advogados e defensores públicos, com atuação na seara criminal. Ainda era discutível a sua aplicabilidade por alguns juízos ou tribunais, dada improvável competência normativa do CNJ para estabelecer regras processuais penais, notadamente tocante ao prazo de 24 horas para a sua realização, por todos os juízes criminais brasileiros.
No início, a Resolução nº 213/15 do CNJ foi replicada por atos internos dos tribunais, os quais, não raro, limitavam-na apenas às prisões decorrentes de flagrante delito, porquanto a priori entendeu-se que nestas prisões, eventualmente, as autoridades policiais, civis ou militares, ou demais agentes públicos em geral, estariam tentados a abusarem de seus poderes estatais, realizando abordagens à margem constitucional, inclusive, com suposto emprego de tortura ou violência.
As custódias, num primeiro momento, não constataram o abuso policial como regra, e de partida, não houve diminuição efetiva na quantidade de flagrantes homologados, na presença do réu e do seu defensor.
Nessa escalada, várias decisões judiciais continuaram sendo produzidas no sentido de combater o estado de coisas inconstitucional das prisões brasileiras. Associações importantes de advogados criminais, de espectro nacional ou regional, defensorias públicas estaduais e da União denunciavam aos tribunais e as Cortes Superiores a não aplicação extensiva da decisão da ADPF 347/DF, e da própria resolução do CNJ.
Nessa linha, podemos citar, dentre várias outros, o RE 641.320/RS, em que o Min Gilmar Mendes trouxe o complex enforcement ao sugerir que a Corte acolheria, em sua jurisprudência, sentenças manipulativas de efeitos aditivos, embora a tese do Ministro não tenha encontrado ampla assentada naquele momento perante seus pares. Neste julgamento, o STF atestou ser viável o cumprimento de pena em regime menos rigoroso que o previsto em lei, inclusive prisão domiciliar, desde que não existente estabelecimento penal adequado, o que praticamente extinguiu o regime semi-aberto em boa parte do interior do território nacional; houve ainda a Rcl 23.872/DF proposta pela Anadep, a Rcl 26.111/DF, proposta pela DPU, e o famigerado HC 143641/2018 cujo julgamento determinou a substituição da prisão preventiva por domiciliar de mulheres presas com filhos menores de 12 anos, em todo o território nacional; além da Rcl 34835/RJ, da relatoria do Min. Ricardo Lewandowski, julgada em 22/05/2019 e a Rcl 35148/CE, de relatoria do Eminente Min. Alexandre De Moraes, julgada em 11.06.2019, as quais garantiram o direito de realização da audiência de custódia também em situações de prisão decorrente de cumprimento de mandados de prisão preventiva.
Em virtude do estado de calamidade pública, reconhecido pelo Decreto Federal nº 06/2020, decorrente da pandemia mundial por Covid-19, amparou-se Recomendação do CNJ, a qual reestabeleceu a liberdade de aproximadamente 60 mil presos no Brasil no ano de 2020, inclusive, depois, suspendeu-se a prisão civil do devedor de alimentos, estabelecendo a regra do regime domiciliar, por fim, passou-se a permitir a realização de custódias por videoconferência (Resolução CNJ nº 376/20).
Sem discutir o mérito ou acerto dessas decisões, o fato é que tais soluções judiciais inevitavelmente produzem e produziram linhas argumentativas de efeitos imprevisíveis. Mais recentemente, precisamente em 10 de dezembro de 2020, em sede de Agravo Regimental na Reclamação nº 29.3030/RJ, interposto pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, o STF voltou a enfrentar o tema da extensão das audiências de custódia.
Alegou o Recorrente que a Resolução 29/2015 editada pelo TJRJ limitava as audiências de custódia às prisões decorrentes de flagrante. Sustentou-se que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos que prevê a apresentação de um preso a uma autoridade judiciária constitui direito subjetivo de toda pessoa custodiada, independentemente da modalidade de ordem prisional.
Desse modo, requereu-se o reconhecimento da realização da custódia também nos casos de prisões preventivas, temporárias e prisões penais. Importante pontuar que em 18/12/2017, o Min. Edson Fachin já havia negado seguimento monocraticamente à reclamação. Desta feita, o agravo foi levado ao Plenário em 12/02/2019, em julgamento realizado pela 2ª Turma do STF. Nesse ínterim, o pacto anticrime foi aprovado pelo Congresso Nacional e já havia estabelecido por força da lei nº 13.964/2019 a obrigatoriedade da audiência de custódia, no prazo de até 24 horas, inclusive, nos casos de cumprimento de mandado de prisão.
Mesmo assim, pontuou o Eminente Ministro Edson Fachin no julgamento da Rcl 29303 AGR / RJ, em 10/12/2020 :
[…] Essa realidade da audiência de custódia, como se vê, não se cinge à ambiência das pessoas presas em razão de flagrância, alcançando, como agora disposto no Código de Processo Penal, também os presos em decorrência de mandados de prisão temporária e preventiva. Aliás, as próprias normas internacionais que asseguram a realização de audiência de apresentação, a propósito, não fazem distinção a partir da modalidade prisional, considerando o que dispõem a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Artigo 7.5) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 9.3). Tais normas se agasalham na cláusula de abertura do § 2º do art. 5º da Constituição Federal. (destaques nossos).
Doutra banda, a doutrina nacional sempre retirou do texto da Convenção interpretação mais abrangente sobre as prisões, é o caso de Andrey Borges de Mendonça[12] para quem “[..] Interessante anotar que o texto da Convenção Americana não se refere apenas à pessoa detida, mas também à pessoa retida”. Para o referido autor: “[...] qualquer forma de restrição da liberdade individual, mesmo que temporária ou de curto tempo, deve ser submetida ao controle judicial imediato”.
De fato, inescapável observar que o art. 9º, Item 3, do PIDCP preceitua que “qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais” (destaques nossos).
Porém, quando observamos o art. 7º, item 5, da CADH não há qualquer referência à prisão necessariamente penal, vide: “Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais” (destaques nossos).Como se não bastasse, ao tratar do direito à liberdade pessoal, o art. 7º da CADH faz referência expressa à prisão civil (item 7). Afinal, qual mazela decorrente da prisão processual penal não poderia ser encontrada no mau cumprimento da prisão civil?
Nessa linha, mesmo sem fazer menção expressa à prisão civil, aduziu o Min. Fachin em sua decisão no exercício da relatoria que:
[…] a audiência de apresentação ou de custódia, seja qual for a modalidade de prisão, configura instrumento relevante para a pronta aferição de circunstâncias pessoais do preso, as quais podem desbordar do fato tido como ilícito e produzir repercussão na imposição ou no modo de implementação da medida menos gravosa. Enfatize-se, nesse contexto, que diversas condições pessoais, como gravidez, doenças graves, idade avançada, imprescindibilidade aos cuidados de terceiros, entre outros, constituem aspectos que devem ser prontamente examinados, na medida em que podem interferir, ou não, na manutenção da medida prisional (art. 318, CPP)”
E arrematou o Eminente Ministro no dispositivo da decisão produzida nos autos do Ag.Reg. na Reclamação nº 29.303 do Rio de Janeiro que:
[…] diante da plausibilidade jurídica do pedido nesta reclamação e da possibilidade de lesão irreparável a direito fundamental das pessoas levadas ao cárcere, reconsidero a decisão agravada e defiro medida liminar, ad referendum do E. Plenário, para determinar que a autoridade reclamada realize, no prazo de 24 horas, audiência de custódia em todas as modalidades prisionais, inclusive prisões temporárias, preventivas e definitivas. (grifos e destaques nossos)
Como se percebe a expressão “todas as modalidades prisionais” se repete ao longo da decisão. A questão ainda depende de manifestação do plenário que, à luz de decisões monocráticas já produzidas por outros ministros, tende a referendar a decisão do Eminente relator in casu.
Porém, inegável que há um tipo de prisão, decorrente de mandado que, embora explicitamente não tenha sido mencionada na decisão em testilha, inegavelmente se enquadra na descrição genérica: “em todas as modalidades prisionais”.
Ao que parece, a prisão civil do devedor inadimplente em execução de alimentos a partir, especialmente, do teor da decisão produzida pelo Min. Edson Fachin, em 10 de dezembro de 2020 - Dia Internacional dos Direitos Humanos - também estão sujeitas ao regime de audiência de apresentação ou de custódia a fim de que o juiz reavalie a necessidade e legalidade da prisão?
Parece evidente, que o pano de fundo da questão constitucional é outro ou há também no Brasil estado de coisas inconstitucional referente às prisões de devedores de alimentos?
É cediço que os devedores de alimentos ingressam no sistema prisional brasileiro em uma condição singular. Embora as cadeias públicas brasileiras também não sejam primores arquitetônicos, e operem em condições de dignidade ideal, o preso civil goza de tratamento diferenciado e de recolhimento em cela distinta, inclusive separado dos presos provisórios.
Entretanto, se a audiência de custódia é compulsória para a perfectibilização de qualquer modalidade prisional, para fins de verificação de possível ocorrência de tratamento desumano ou degradante, inclusive, em relação aos possíveis excessos do perp walk, durante o cumprimento da ordem prisional, por qual razão deixaria de ser aplicada nas questões envolvendo dívidas de alimentos? Parece, ainda nesse contexto, que para aferir as diversas condições pessoais, como doenças graves, idade avançada, imprescindibilidade aos cuidados de terceiros, dentre outros, a audiência de custódia deve ser aplicada à prisão civil.
Diferentemente das demais prisões, via de regra, o devedor de alimentos é previamente intimado para manifestar-se sobre o débito alimentar em três dias, inclusive justificar o inadimplemento, sob pena de prisão, ora meio indireto de execução. Dessa forma, é de se ponderar que o devedor de alimentos, diferente do preso em flagrante, ou mesmo decorrente de preventiva ou temporária, via de regra, manifesta-se previamente. Desse modo, a audiência de custódia limitar-se-ia ao modo de cumprimento da prisão e a necessidade de sua manutenção pelo Juízo de Família, cabendo ao juiz que a decretou realizar a custódia cível, a qual estaria também sujeita ao prazo de 24 horas para a sua realização, sob pena de ilegalidade.
O CPC, no Capítulo II, ao tratar “Da Aplicação das Normas Processuais”, estatuiu que: “Art. 13 A jurisdição civil será regida pelas normas processuais brasileiras, ressalvadas as disposições específicas previstas em tratados, convenções ou acordos internacionais de que o Brasil seja parte” (grifos nossos). Desse modo, parece insustentável posição diversa e talvez esta seja uma consequência interpretativa não prevista no recente decisium sob análise.
Mas, como nas prisões decorrentes de mandado no âmbito criminal, eventual abuso de poder pela “autoridade executante” não deve necessariamente macular a “decisão judicial cível autorizativa”, mas permitir responsabilização do agente que durante a execução dolosamente empreendera na ilegalidade, sem prejuízo de que, excepcionalmente, possa sim até resultar em relaxamento da prisão, em caso de flagrante ilegalidade no cumprimento, a exemplo da não observância das regras de inviolabilidade de domicílio asseguradas constitucionalmente.
Deve, portanto, o Juízo de Família que decretou a prisão realizar a custódia, ou estando o preso civil em comarca diversa ser apresentado a autoridade judicial competente.
5) Conclusões.
A forma pela qual a audiência de custódia foi incorporada ao Direito brasileiro, sem o saudável debate legislativo acerca de suas filigranas, gerou controvérsias significativas e dúvidas sobre sua eficiência e aplicabilidade. No campo específico do Direito de Família, a utilização do procedimento nas hipóteses de prisão civil do devedor de alimentos é tema urgente, que vem sendo aplicado de maneira pouco uniforme no país de dimensões continentais.
O debate que se levanta é ainda mais necessário, haja vista a existência de discrepâncias em cada jurisdição estadual. Alguns juízos entendem pela obrigatoriedade da realização da audiência de custódia nas prisões por dívidas de alimentos, outros não, gerando confusão interpretativa e procedimental.
A despeito da obrigatoriedade (ou não) da audiência de custódia, em tais hipóteses, algumas questões merecem atenção da doutrina familiarista: a) O exequente poderia participar da custódia? Ou estaria limitada à presença do Ministério Público, Advogado ou Defensor Público do preso e o Magistrado? b) Na oportunidade, o preso civil poderia, inclusive, promover o pagamento ou comprovar que já o fez, ilidindo o mandado prisional e assegurando o fim último dessa modalidade de prisão? c) A audiência estaria limitada às mesmas preocupações das custódias criminais, inclusive quanto à discussão do mérito executivo, ora questão de fundo? d) Haveria ofensa ao princípio da preclusão no tocante às justificativas apresentadas, estas estariam limitadas a fatos novos? e) Caberia pedido de relaxamento de prisão civil, em caso de qualquer ilegalidade? f) O juiz de família, mutatis mutandis, estaria sujeito às disciplinas e procedimentos da Resolução nº 213/15 do CNJ e ao procedimento insculpido no Art. 310, §§ 3º e 4º do CPPB? f) O eventual relaxamento da prisão, em tais casos, diminuiria a força da medida, vulgarizando ainda mais o já desgastante processo de execução de alimentos? g) A competência seria sempre dos Juízos de Família, inclusive nas prisões civis efetivadas no período de plantão do Poder Judiciário?
Em nome da estabilidade do Direito, sobretudo em época como a nossa, em que decisões judiciais “criam a norma”, não é suficiente a “afirmação” de uma posição interpretativa razoável e idônea (constitucional e convencional), mas sim, que as decisões se preocupem em estabelecer respostas às possíveis interpretações vindouras possíveis e previsíveis, inclusive as indesejáveis, já na sua edição.
A iminência da análise da matéria pelo Supremo Tribunal Federal evoca essas e várias outras questões, que demandam rigoroso exercício crítico da doutrina especializada.
Referências Bibliográficas.
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[1] Promotor de Justiça do Estado do Ceará, com atuação na área de família. Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Estadual da Paraíba. Ex-advogado civilista.
[2] Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco / Faculdade de Direito do Recife (PPGD/UFPE/FDR). Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN e da UNIFACISA. Advogado.
[3] ROSENBERG, Gerald N. The hollow hope: can courts bring about social change? Chicago: The University of Chicago, 2011.
[4] GLEZER, Rubens; MACHADO, Eloísa.Decide, mas não muda: STF e o estado de coisas inconstitucional [on-line]. JOTA, 9 set. 2015. Disponível em: https://goo.gl/Xck1iL.Acesso em: 25 jan. 2021.
[5] COLAÇO FILHO, Raimundo Evandro. O “Estado de Coisas Inconstitucional” e a Judicialização da Política Pública no Âmbito do Sistema Carcerário Brasileiro: Mitigação do Princípio da Separação de Poderes? Disponível em: <http://www.mpce.mp.br/wp-content/uploads/2018/05/10-O-Estado-de-Coisas-Inconstitucional-e-a-Judicializa%C3%A7%C3%A3o-da-Pol%C3%Adtica-P%C3%Bablica.pdf>. Acesso em: 25 de jan. 2021.
[6] STRECK, Lenio Luiz. Estado de coisas inconstitucional é uma nova forma de ativismo [on-line]. Revista Consultor Jurídico, 24 out. 2015. Disponível em: https://goo.gl/ jk0ALM.Acesso em: 25 jan. 2021.
[7] CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Da Inconstitucionalidade por Omissão ao Estado de Coisas Inconstitucional. Tese de Doutorado, UERJ, 2015.
[8] MAGALHÃES, Breno Baía. O Estado de Coisas Inconstitucional na ADPF 347 e a sedução do Direito: o impacto da medida cautelar e a resposta dos poderes políticos. Revista Direito GV, v. 15, n. 2, 2019, e1916. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2317- 6172201916. Acesso em: 26 jan. 2021.
[9] “Desde o momento da concepção, o ser humano – por sua estrutura e natureza – é um ser carente por excelência; ainda no colo materno, ou já fora dele, a sua incapacidade ingênita de produzir os meios necessários à sua manutenção, faz com que se lhe reconheça, por um princípio natural jamais questionado , o superior direito de ser nutrido pelos responsáveis por sua geração.” CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 25.
[10] “Dentro desse raciocínio filosófico de direito enquanto 'arte do bom e do justo', a obrigação alimentar visa suprir as necessidades dos familiares que não são objeto da solidariedade que os valores de nossa sociedade pregam necessitar. Em resumo, portanto, a obrigação alimentar surge para forçar as pessoas a se ajudarem, quando deveriam fazê-lo e assim não agem.” LADEIRA, Paulo Ribeiro Soares de. Natureza jurídica da obrigação alimentar conforme o art. 1698 do Código Civil. In: Revista IBDFAM de Família e Sucessões. Belo Horizonte: IBDFAM, (jan/fev), 2018, p. 137.
[11] “Assim, embora localizada no direito privado como uma das manifestações do direito à vida, sendo por isso mesmo personalíssima, nem por isso a obrigação alimentícia deixa de ter representação material, quer dizer, patrimonial, uma vez que há uma prestação econômica exigível a uma pessoa em favor de outra; há um devedor e um credor caracterizando uma relação obrigacional (...) embora seja certo que se trate de uma obrigação com caráter especial, que se distingue não só de qualquer outra, como também das próprias obrigações alimentares não vinculadas à relação familiar”. CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 33.
[12] MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão Preventiva na Lei 12.403/2011, Salvador: Editora JusPodivm, 2016, p. 163.
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