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Família multiespécie: guarda compartilhada do animal de estimação na ruptura do vínculo conjugal
Família multiespécie: guarda compartilhada do animal de estimação na ruptura do vínculo conjugal
MULTISPECIES FAMILY: SHARED PET GUARD IN RUPTURE OF THE MARITAL BOND
Rebeca Sousa de Jesus[1]
Tagore Trajano de Almeida Silva[2]
RESUMO: Tendo em vista que, nos últimos anos, os animais de estimação têm assumido um papel importante dentro do núcleo familiar, principalmente no cenário brasileiro, pesquisa-se sobre o reconhecimento desse novo agrupamento familiar, qual seja a família multiespécie, e a situação jurídica dos animais após a ruptura do vínculo conjugal desta família. Para tanto, realiza-se um estudo doutrinário, com análise das decisões dos tribunais, bem como a legislação brasileira e as lacunas presentes nesta, trazendo para a discussão projetos de leis que visam regulamentar acerca do tema. Por fim, busca-se demonstrar como os animais são vistos pelo direito, e como são vistos na entidade familiar, fazendo-se necessária uma tutela jurídica distinta da que existe hoje.
PALAVRAS-CHAVE: Família Multiespécie. Guarda Compartilhada. Decisões dos Tribunais.
ABSTRACT: Taking into account that, in recent years, pets have assumed an important role within the family nucleus, mainly in the Brazilian scenario, this paper researches on acknowledgement of this new family group, which is, the multispecies family, and the legal situation of animals after the marital break of this family. Therefore, a doctrinal study is done with analyzes of court decisions, as well as Brazilian legislation and its gaps, bringing to discussion bills that aim to regulate about the subject matter. Finally, it seeks to demonstrate how animals are seen by law, and how they´re seen by the family entity, being necessary a legal protection different from that which exists today.
KEYWORDS: Multispecies Family. Shared Custody. Court Decisions.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA 2.1 DIREITO DE FAMÍLIA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 1916; 2.2 DIREITO DE FAMÍLIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988 E NO CÓDIGO CIVIL DE 2002; 2.3 DA FAMÍLIA MULTIESPÉCIE; 3 NATUREZA JURÍDICA DOS ANIMAIS NO ORDENAMENTO BRASILEIRO; 4 RUPTURA DO VÍNCULO CONJUGAL E A GUARDA DO ANIMAL DE CONVIVÊNCIA; 4.1 DECISÕES DOS TRIBUNAIS ACERCA DA GUARDA COMPARTILHADA DOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO; 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS; 6 REFERÊNCIAS
1INTRODUÇÃO
Em outros idos os animais sempre foram compreendidos como objetos de direito, sendo meramente mais um acessório nas famílias. Ocorre que, as relações entre humanos e animais vêm se tornando cada vez mais complexas, tomando proporções que vão além da relação de dono e coisa. Os animais passaram a serem vistos como um membro do agrupamento familiar, este novo agrupamento familiar ganhou a denominação de família multiespécie. Isto se deu principalmente pelo fato que a família deixou de ser o núcleo econômico e de reprodução, e passou a ser um espaço de afeto e amor, surgindo novas representações sociais destas.
Assim, o objetivo geral do presente trabalho visa analisar as relações entre humanos e animais e como esta tem tomado outras proporções, analisando suas vertentes no ordenamento jurídico brasileiro, em especial na ruptura conjugal das famílias multiespécie, que são aquelas compostas entre humanos e não-humanos, sendo este não-humano considerado um ente querido. Logo, há uma busca em solucionar qual o destino desses animais domésticos na ruptura desse vínculo conjugal, ressaltando-se que os animais ainda são vistos com o status jurídico de coisa no Código Civil de 2002, e há a necessidade de alteração dessa natureza jurídica, não só para fins de guarda compartilhada, mas para que estes também tenham outros direitos reconhecidos.
Os objetivos específicos, por sua vez, buscam traçar a evolução da concepção de família, a natureza jurídica dos animais, identificar os projetos em trâmite, no Senado Federal, bem como a regulamentação da guarda compartilhada destes. Há também um comparativo entre as legislações de outros países que já disciplinam acerca do tema em análise. Do ponto de vista teórico, busca-se possíveis convergências ou conflitos acerca da guarda compartilhada dos animais, estudando-se, também, as formas das rupturas conjugais, analisando-se jurisprudências dos Tribunais Superiores quanto à aplicação da guarda dos animais na ruptura do vínculo conjugal.
A natureza da pesquisa se traduzirá como básica, demonstrando conhecimentos acerca da guarda compartilha, com pesquisa descritiva, uma vez que o objetivo desta é descrever o fenômeno da guarda compartilhada dos animais e como ela é aplicada nos Tribunais, diante da lacuna no ordenamento jurídico brasileiro acerca de tal tema. Será feita, ainda, uma abordagem qualitativa, com o fim de interpretar e analisar jurisprudências, como artigos acadêmicos relacionados ao tema, tendo em vista que tal assunto ainda não se tornou uma discussão assídua entre os doutrinadores da área de Direito Civil, principalmente Direito de Família. O método de pesquisa será dedutivo, inferindo-se conclusões acerca do assunto a partir de pesquisa bibliográfica e de situações gerais que serão analisadas.
Inicialmente, o presente artigo irá abordar a evolução da família, não o direito de família propriamente dito, mas a construção do seio familiar desde os primórdios das civilizações, e como esta adapta-se a cada tempo, sendo berço de afeto, cuidado e amparo. Com ênfase ao reconhecimento das pluralidades familiar, como denota-se a Constituição Federal brasileira de 1988 e a Código Civil de 2002, trazendo consigo a possibilidade de reconhecimento da família multiespécie.
Posteriormente, será analisada a natureza jurídica dos animais no ordenamento jurídico brasileiro, fazendo-se uma digressão histórica desde os primórdios mostrando a evolução da relação entre os animais e os humanos. Após, busca-se a dificuldade em efetivar, no ordenamento jurídico brasileiro, os animais como seres sensíveis e aptos a possuir uma personalidade jurídica que saia do animal como objeto. Assim, será feito um comparativo entre legislações de outros países e como a mudança dessa natureza pode ser benéfica para os animais e para as famílias nas quais estes estão inseridos.
Por fim, serão apresentados como se dá a guarda compartilhada do filho menor quando há a ruptura do vínculo familiar e a possibilidade de aplicação, como analogia, da Guarda Compartilhada dos filhos menores para os animais de estimação, sendo apresentando alguns projetos de leis que visam legislar sobre o tema para que não haja mais esta lacuna processual. Para tanto será feita uma análise das jurisprudências que ganharam destaques acerca do tema.
2 EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA
Primeiramente deve-se ter em mente que o conceito de família evoluiu ao longo da história do mundo. Neste mérito, Coulanges (1961) defende que a religião foi a instituição que constituiu a família antiga, essas famílias não possuíam como princípio a geração, e isso se prova com o fato de que os filhos emancipados ou as filhas casadas deixavam de fazer parte da família. Logo, não havia o afeto natural na sociedade greco-romana, o que unia os membros de uma família seria a religião do fogo sagrado e dos antepassados, essa afirmação ganha força a partir do momento em que é sabido que na antiga língua grega podia se denominar família como epíston, ou seja, aquilo que está perto do fogo, essa mesma religião é que definia a superioridade do marido sobre a mulher.
Com o advento do Direito Canônico, a família sofreu diversas mudanças no sentido de sua constituição, a Igreja Católica elevou o casamento à sacramento. De acordo com Russo (2015), essa nova concepção passará a ocorrer por conta da decadência do Império Romano, trazendo a ideia de uma família alicerçada no casamento, sob a concepção de desejo e espontânea vontade das partes, aqui a mulher passar a ser responsável pelo governo doméstico e pela educação dos filhos.
Conforme fixado por Coulanges (1961), neste momento, a igreja passou a interferir diretamente na família, fortalecendo a autoridade do homem sobre a mulher, e lecionando sobre as temáticas que envolviam as famílias, tais como, aborto, adultério, e principalmente sobre o concubinato.
A partir da pós-modernidade, a família passa a ser marcada pelo afeto, ela se desvincula de toda aquela noção patriarcal e religiosa, para criar um vínculo, tal fato acontece principalmente pela Revolução Industrial, que tira as famílias do campo para a cidade grande e neste momento passa-se a alcançar a independência econômica da mulher, a igualdade e a emancipação dos filhos, afetividade, autenticidade, dentre tantos outros valores.
O afeto entrou no mundo do direito através daquilo que anteriormente lhe era excluído: as relações de filiação e as relações homoafetivas. Tem-se, com essas reflexões, a noção da tomada de consciência de questões envolvendo direitos fundamentais e o respeito ao futuro das próximas gerações. Assim, entrou em evidência a chamada ética do amor e da sexualidade, sendo a realidade sempre maior do que os rígidos esquemas preestabelecidos (MALUF, 2010, p. 38).
2.1 DIREITO DE FAMÍLIA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 1916
O Código Civil de 1916 foi a primeira legislação brasileira que abordou de forma mais abrangente sobre a família e o casamento civil entre homem e a mulher. Entretanto pode-se observar que nesta lei havia várias limitações, sendo dotada de impedimentos matrimoniais, estes que ainda obedeciam a preceitos impostas durante a Idade Média pela Igreja Católica.
Para justificar tal fenômeno, Chaves e Rosenvald (2016) explicam que a família funciona como uma realidade sociológica, contendo uma íntima ligação com as transformações operadas nos fenômenos sociais. Assim, o Código Civil brasileiro de 1916, que seguia um modelo patriarcal, hierarquizado e transpessoal da família, acaba decorrendo das influências da Revolução Francesa. Essa estrutura familiar tem como característica sine qua non o matrimônio, imperando a regra “até que a morte nos separe”.
É mister ressaltar que neste Código não era previsto o instituto do divórcio, logo, a dissolução conjugal só poderia terminar pela morte de um dos cônjuges, pela nulidade ou anulação do casamento, e pelo desquite, sendo este último possível se fosse fundado no Art. 317 daquele Código, sendo um rol taxativo.
Tais preceitos possuíam fundamento no fato de que as pessoas se uniam com vistas à formação de patrimônio, para superior transmissão aos herdeiros, não havendo os laços afetivos tanta importância (CHAVES; ROSENVALD, 2016).
Apesar do Código Civil de 1916 não apresentar que seria considerado família, este deixa claro que sua legitimidade está pautada no casamento civil, como é observado em seu Art.229 in verbis: “Criando a família legítima, o casamento legitima os filhos comuns, antes dele nascidos ou concebidos”.
Na vigência deste Código, em leitura do texto de lei, pode-se observar que se prevalecia a supremacia do marido, sendo este considerado como responsável financeiro do lar. No art. 233 deste Código, afirma-se que:
O marido é o chefe da sociedade conjugal”, sendo a mulher um mero objeto da relação, devendo esta auxiliar o seu marido, e cuidar dos encargos familiares, como dispõe o Art. 240: “A mulher assume, pelo casamento, com os apelidos do marido, a condição de sua companheira, consorte e auxiliar nos encargos da família (CÓDIGO CIVIL, art. 233, 1916).
Pode-se ainda observar que este Código, determinava uma distinção entre os filhos legítimos, oriundos do casamento, e os filhos ilegítimos, oriundos do concubinato, adultério etc., há também uma distinção entre os filhos naturais e adotivos.
Madaleno (2019), afirma que o Código Civil brasileiro de 1916 fora perdendo força, e a partir desse enfraquecimento se começou a pensar em um novo Código Civil, pois qualquer norma ou cláusula negocial deve estar em conexão com a orientação constitucional de privilegiar a dignidade humana.
2.2 DIREITO DE FAMÍLIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988 E NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
A Constituição Federal de 1988 conceitua no seu Art. 226, a família como a base da sociedade, e protegendo a mesma. Madaleno (2019) relaciona de maneira solar os pilares ao qual a Constituição repousou para definir a família, quais sejam: a) o da família plural, destacando suas diversas formas de constituição (casamento, união estável e monoparentalidade familiar); b) a igualdade no enfoque jurídico da filiação; e c) consagração da igualdade entre homens e mulheres.
Entretanto, vale ressaltar que independentemente de a Carta Magna estabelecer esses pilares, eles não traduzem todos os diversos enfoques que estabelecem o Direito de Família, não sendo possível desconsiderar as pluralidades familiares que não se encaixam no casamento, união estável ou monoparentalidade.
Essa nova arquitetura familiar, impõe uma família descentralizada, democrática, igualitária e desmatrimonializada, tendo seu escopo principal a solidariedade social e demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, regido pelo afeto, como principal mola propulsora (CHAVES; ROSENVALD, 2016).
Pode-se afirmar que Carta Magna de 1988, fora o maior fenômeno nesse processo de adaptação e evolução que o conceito de família apresenta, servindo como orientação para normas infraconstitucionais. No sentido de promover emendas constitucionais, temos a Lei nº 6.515 de 1977, que regulava a dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos, inclusive revogando leis do Código Civil de 1916, outra alteração importante neste sentido fora a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente. Houve também a Lei nº 8.560 de 1992 que visava regular o reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento, que até então eram considerados filhos ilegítimos, após a Constituição de 1988 também foram criadas leis que discorria acerca da União Estável, em que se discutia questão de direitos de alimentos e a meação da herança.
Assim sendo, a família vai ganhando novas proporções à medida que a sociedade evolui, trazendo consigo novas estruturas aptas a se conciliarem com novas necessidades, sejam elas no âmbito social, político ou econômico.
O Código Civil de 2002 nasce com o advento da Constituição Federal de 1988, este novo Código em consonância com a Carta Magna de 88 e com o ativismo judicial, traz um novo sentido para família contemporânea, estas Leis que prevê uma família pluralizada, democrática, igualitária, hétero ou homoafetiva, biológica ou socioafetiva. Este código traz consigo valores e princípios dos quais devem ser dotados as famílias, como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade familiar, igualdade entre os cônjuges, igualdade jurídica dos filhos de dentro e de fora do casamento, o pluralismo familiar, dentre vários outros princípios.
2.3 DA FAMÍLIA MULTIESPÉCIE
A Carta Magna de 1988 traz em seu bojo a desconstrução da família centralizada na figura paterna, edificada nos preceitos patrimoniais, e passa a respeitar a pluralidade das famílias. Mister ressaltar, que apesar da Constituição de 1988 lembrar das pluralidades das famílias contemporâneas, ainda não é possível abarcar todos os arranjos presentes em nossa sociedade atual, cujo vínculos requerem afeto, respeito, solidariedade, dignidade, dentre vários outros princípios. Essas novas famílias se afastam do precedente biológico para ceder lugar aos vínculos de afetividade que dialogam diretamente na formação do ser humano.
O afeto é que conjuga. Apesar da ideologia da família parental de origem patriarcal pensar o contrário, o fato é que não é requisito indispensável para haver família que haja entre homem e mulher, nem pai e mãe. Há famílias só de homens ou só de mulheres, como também há sem pai ou mãe. Ideologicamente, a atual Constituição brasileira, mesmo superando o patriarcalismo, ainda exige o parentalismo: o biparentalismo ou monoparentalismo. Porém, no mundo dos fatos, uma entidade familiar forma-se por um afeto tal – tal forte e estreito, tão nítido e persistente – que hoje independe do sexo e até das relações sexuais, ainda que na origem histórica não tenha sido assim. Ao mundo atual, tão absurdo é negar que, morto os pais, continua existindo entre os irmãos o afeto que define a família, quão absurdo seria exigir a prática de relações sexuais como condição sine qua non para existir a família. Portanto, é preciso corrigir ou, dizendo com eufemismo, atualizar o texto da Constituição brasileira vigente, começando por excluir do conceito de entidade familiar o parentalismo: a exigência de existir um dos pais (BARROS, 2002).
Neste sentido, pode-se dizer que a família contemporânea vai muito além do vínculo sanguíneo, mas decorre de uma relação mútua de afeto, respeito e solidariedade. Logo, não é possível conceituar família, por não mais existir um sentido único e absoluto decorrente dessa relação social. A expressão família é gênero que comporta diversas modalidades de constituição, devendo todas ser objeto da proteção do Direito (STOLZE; PAMPLONA FILHO, 2018).
Se as famílias atuais possuem outros perfis que se alargam para além daquilo que fora previsto na Constituição de 1988, em seu Art. 226, representados pelo casamento, a união estável e a família monoparental, cabe então ao Poder Judiciário, através do ativismo jurídico localizar e aplicar as pluralidades familiares ao caso concreto, para que assim faça jus ao preceito de que toda família possui proteção especial do Estado.
Assim, pode-se observar que as novas relações familiares têm como principal pilar o afeto, e juntamente com este, a priorização da felicidade do indivíduo inserido neste emaranhado familiar. Dentro destas relações, podem identificar o fortalecimento de relações entre humanos e animais de estimação, esta que passa a ser configurada como família multiespécie.
O número de animais de estimação aumenta cada vez mais nos lares brasileiros. De acordo com o IBGE[3], quase 48 milhões de domicílios no Brasil tem cães ou gatos. Sabe-se que nos primórdios da civilização os animais foram domesticados pelo homem para ajudá-lo em suas atividades diárias[4], bem como, para auxiliar na defesa contra o inimigo. Atualmente, os animais são considerados os “filhos de quatro patas”.
A família multiespécie pode ser definida como um grupo familiar que reconhece como seus membros humanos e animais, consistindo em uma convivência de respeito e afeto. De acordo com Bowen, esta configuração familiar multiespécie sugere a existência de um sistema familiar emocional que pode ser composto por membros da família estendida, isto é, pessoas sem grau de parentesco e por animais de estimação. Neste sistema, o vínculo entre os membros da família são os laços emocionais e não os de sangue.
3 NATUREZA JURÍDICA DOS ANIMAIS NO ORDENAMENTO BRASILEIRO
A legislação brasileira, em termos legais, até o presente momento não tem adotado um posicionamento frente à temática do animal nas relações familiares, motivo pelo qual, torna a questão ainda mais complexa frente às atuais decisões remetidas ao Poder Judiciário.
A tradição ocidental do antropocentrismo Grego[5] exclui os animais de quaisquer considerações morais. Naquele momento a civilização acreditava que a única finalidade do animal era de servir o homem. Neste contexto, o homem passa a ser objeto de si mesmo, reconhecendo-se livre, o que não aconteceria com os animais que não podem exercitar esse autoconhecimento. Não se sabendo livres, os animais se colocariam na posição de escravos, contentando-se com a escravidão, uma vez que são incapazes de pensar como um “eu”, podendo ser controlados através do medo e da dor (SANTANA, 2006, p. 54).
Os Romanos, por sua vez, inserem os animais em um contexto privatista em que a noção do direito alcançaria apenas os homens em sociedade. Ou seja, o direito era reduzido à realidade, caracterizando-o fundamentalmente por seu caráter objetivo, em algo externo ao sujeito, como a partilha de bens materiais, dentre os quais estavam os animais, que passaram a ser considerados como res, como coisas, e recebendo o mesmo tratamento jurídico conferido aos objetos inanimados e à propriedade privada (LEVAI, 2004, p. 19).
Com o passar das décadas, os vários ordenamentos jurídicos adotaram um conjunto de instrumentos de tutela ambiental que mesclavam entre objetivos de conservação e com programas de preservação. Chiara Silva (2014) fixa que os primeiros animais domésticos que desembarcaram no Brasil, no século XVI, desembarcaram com o intuito de serem utilizados nas lavouras, pecuárias, expedições dos bandeirantes e transportes em geral. Nesse contexto, havia a predominância da lógica mercantilista e do animal usando como objeto de facilitação das atividades do dia a dia.
Na Suíça, rege o fato federal para a proteção dos direitos dos animais. Ainda neste país, foi alterado o código civil para dispor que o animal não é coisa. No mesmo sentido, a França, em 2015, alterou sua lei civil para reconhecer que os animais não são meros objetos, mas sim seres sensíveis (MÓL, 2016, p. 81).
A legislação brasileira estabelece as diretrizes do direito civil em dois pilares: pessoas e coisas. A pessoa pode ser definida como aquele ente capaz de exercer direitos e submeter-se a deveres, na órbita da ciência do Direito, ou seja, é aquele que poderá se apresentar no polo ativo ou passivo de uma relação jurídica.
A coisa, por sua vez, é gênero, do qual bem se apresenta como espécie, com supedâneo no fato de que existem coisas que não têm valoração econômica e, por conseguinte, não seria possível considerá-las bens, assim assevera Silvio Rodrigues (2004?).
Afirma Tagore Trajano (2009) que o conceito de pessoa atribui dentro do direito um valor inerente ou instrumental no sistema jurídico. Coisas existem para pessoas, enquanto pessoas existem em função delas próprias.
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2016) defendem que a pessoa, enquanto sujeito de direito, prende-se e atrela-se, inexoravelmente, à ideia de personalidade. Para estes doutrinadores, a personalidade jurídica é muita mais que, simplesmente, ser sujeito de direitos. Titularizar uma personalidade jurídica significa ter uma tutela jurídica especial, consistente em reclamar direitos fundamentais, imprescindíveis ao exercício de uma vida digna. Ademais, os mesmos destacam que, a personalidade não se esgota no fato de alguém ser sujeito de direitos, mas, por igual, relaciona-se com o próprio ser humano, sendo uma consequência mais relevante do princípio da dignidade da pessoa humana.
Maria Helena Diniz (2018) acentua que os direitos da personalidade são absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis. De acordo com Sílvio de Salvo Venosa (2020), os animais e os seres inanimados não podem ser sujeitos de direito, assim, estes serão objetos de direitos. O Doutrinador defende que as normas que almejam proteger a flora e a fauna o fazem tendo em mira a atividade do homem e não o sentimento do animal não humano.
Entretanto, deve-se compreender que estas conceituações estão diretamente atreladas aos pensamentos filosóficos e políticos da antiguidade que compreendia, como já dito anteriormente, a dignidade como uma qualidade moral intrínseca ao ser humano, fazendo com que este fosse superior diante da opressão as outras espécies.
Peter Singer (2004), notório filósofo e bioético, em sua obra “Libertação Animal” defende que os animais devem ter o mesmo status moral das crianças e pessoas com deficiência mental. O filósofo levanta a questão que a linguagem não pode ser crucial ao se tratar do “sentir dor” ou “não ter sentimentos”, pois sendo assim, estaríamos até mesmo negando que uma criança que ainda não saiba falar, possa sentir dor. Logo, não existiriam afirmações válidas, científicas ou filosóficas, para negar que os animais sentem dor.
Neste diapasão, Tagore Trajano (2009), é assertivo em afirmar que à medida que passamos pela literatura jurídica referente ao conceito de sujeito de direito e pessoa, percebe-se que grande parte da doutrina adota a corrente de se pronunciar pela identidade de conceitos, reafirmando que “ser pessoa”, é sinônimo de sujeito de direitos.
O Código Civil elucida, ainda, a distinção entre bens móveis comuns e os bens móveis semoventes, indicando como móveis aqueles susceptíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social, tais como as moedas (comuns), ou animais (semoventes).
A ciência por muito tempo teve dificuldade em definir qual o nível de consciência dos animais. A senciência pode ser definida como a capacidade dos seres de entender o que está em sua volta, podendo experimentar diferentes sensações e sentimento. Assim, todo animal que é capaz de sentir dor, alegria e tristeza pode ser considerado um ser senciente.
Superada a definição se ser senciente, passa-se a possibilidade do animal ser dotado de personalidade jurídico. A personalidade jurídica pode ser comumente definida como uma aptidão genérica para adquirir um direito subjetivo, tal personalidade deve ser reconhecida a todo ser humano independentemente da consciência ou vontade do indivíduo.
Apesar da concepção trazida pelo nosso ordenamento Civil, a Constituição Federal de 1988 não parece adotar a concepção de animal como coisa. Tal conclusão se deve ao fato que a Carta Magna prevê a vedação de práticas cruéis contra o animal não humano, garantindo-lhes direitos subjetivos e possível reconhecimento de sua condição de sujeito de direito. Assim, elevando a proibição de práticas que submetem aos animais não humanos à prática de maus tratos, reforça-se a possibilidade de que os animais podem figurar como sujeitos de direitos, e consequentemente titulares de uma situação jurídica.
Neste sentimento, o Senado Federal aprovou, em 2019, a PL 27/2018 que visa acrescentar um novo dispositivo à Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais), dispondo sobre a natureza jurídica dos animais não humanos, visando um regime jurídico sui generis de sujeitos de direitos despersonalizados para os animais. Assim, os animais poderão ser alcançados à categoria de seres senciente, dotados de emoção e sentimento.
4 RUPTURA DO VÍNCULO CONJUGAL E A GUARDA DO ANIMAL DE CONVIVÊNCIA
A Carta Magna de 1988 trouxe consigo uma revolução social, principalmente no sentido de garantir a dignidade da pessoa humana, alargando direitos e se vinculando a deter a proteção de todos os cidadãos. Tal repercussão não poderia deixar de atingir o pilar da vida social, o berço dos nossos anseios, expectativas e amor, qual seja: a família.
Rompendo com o que era proposto pelo Código Civil de 1916, a Constituição Federal veio com o intuito de, não só oferecer proteção especial à família, mas também garantir a dignidade das pessoas que ali estão inseridas, bem como sua pluralidade. O Código Civil de 1916 que possuía um teor patrimonialista, onde o pai é o chefe de família, e que os filhos havidos fora do casamento, ou adotados, não são igualmente reconhecidos, é rechaçado com o advento da jovem Carta Magna, conforme destaca-se o Art. 226: “Art. 226. A Família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.
Da simples leitura pode-se observar que para ser família, não há necessidade de casamento. Tal interpretação abre o entendimento de que a CF abarca todas as pluralidades e heterogeneidade do conceito família, afirmando que a família deve e pode ser moldada em conformidade com a liberdade e autonomia daqueles inseridos naquele núcleo.
Historicamente, diante da ruptura uma relação matrimonial, os filhos permaneciam sob os cuidados e proteção da figura materna, restando ao pai pagar-lhes o que era necessário à manutenção e subsistência do menor. Entretanto, com a promoção da CF de 1988 fora possível promover o princípio da igualdade entre homens e mulheres no âmbito da sociedade conjugal.
No Direito de Família, a guarda não afeta o poder familiar dos pais em relação aos filhos. Em regra, a guarda é um atributo do poder familiar. Os filhos menores e incapazes são naturalmente frágeis, indefesos e vulneráveis, carecendo, portanto, de uma especial proteção que passa pela presença física, psicológica e afetiva dos pais, sendo esses os principais pressupostos da responsabilidade parental, assim entende o mestre Rolf Madaleno (2020).
O Prof. Silvio de Salvo Venosa (2020) aduz que, há que se pontuar que cabe em princípio aos pais dispor e acertar sobre a guarda dos filhos, sua forma de convivência, educação, convívio familiar etc. Nem sempre isso é possível de ser obtido harmoniosamente, mormente quando os casais que se separam usam os filhos menores como escudo e justificativas para suas dissidências. Maiores são as dificuldades quando os progenitores separados residem em cidades diversas ou até mesmo no exterior.
A guarda tão apenas identifica quem tem o filho em sua companhia, diante da inexistência ou dissolução da sociedade afetiva dos pais, permanecendo intacta a autoridade parental e a guarda jurídica do artigo 1.589 do Código Civil, que é representada pelo direito de o pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poder/dever de visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação (MADALENO, 2020).
Com isso, a Lei 13.058/14 veio para regulamentar acerca da guarda compartilhada. Assim a aplicação desta torna-se regra quando não há acordo entre os pais quanto à guarda do filho. Logo, deve o juiz, via de regra, aplicar a responsabilidade e exercício conjunto dos direitos e deveres aos genitores que não mais convivem juntos, visando sempre, a melhor proteção daquele menor inserido na relação. Os mestres Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald complementam afirmando que caso não se entenda viável esta opção, o juízo decidirá pela guarda unilateral, concedendo a guarda àquele que ofereça melhores condições à criança ou adolescente.
Há de se destacar que o Art. 227 da Constituição Federal traz consigo o chamado princípio da proteção integral do menor, garantindo a este o direito à convivência familiar continuada com ambos os pais, sem prejuízo ao direito à vida, à saúde, alimentação, bem como posto a salvo de toda forma de violência, negligência, discriminação, crueldade e opressão.
Partindo desta premissa, a solução de conflitos que envolvem a guarda do animal de convivência para os casais que se divorciam e litigam pela guarda do animal segue a mesma lógica disciplina pela guarda compartilhada dos filhos menores. Os animais que se encontram inseridos nas famílias multiespécie possuem um lugar especial dentro destas, sendo sua relação com os humanos fundamentada na afetividade, carinho, cuidado e solidariedade.
Ocorre que, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) é clara do aduzir que nos casos de omissão legislativa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Logo, diante da ausência de norma que regulamenta a guarda de animais de convivência no Brasil, deve o juiz pautar-se em situações análogas a tal situação, como a guarda compartilhada dos filhos menores, sendo a opção adequada, fazendo com que os ex-cônjuges possuam os mesmos direitos e deveres sobre o animal, sendo regulamentado o direito de visitas através de decisão judicial ou em comum acordo das partes.
Ademais, encontra-se em trâmite no Senado a PLS nº 542/18[6] que visa dispor sobre a custódia compartilhada dos animais de estimação nos casos de dissolução do casamento ou da união estável. A proposta tem como base o Enunciado 11 do IBDFAM, que defende que “na ação destinada a dissolver o casamento ou a união estável, pode o juiz disciplinar a custódia compartilhada do animal de estimação do casal”. O projeto também se pauta em julgamento do Superior Tribunal de Justiça[7] que pontuou que:
A ordem jurídica não pode, simplesmente, desprezar o relevo da relação do homem com seu animal de estimação, sobretudo nos tempos atuais. Deve-se ter como norte o fato, cultural e pós-modernidade, de que há disputa dentro da entidade familiar em que prepondera o afeto de ambos os cônjuges pelo animal. Portanto, a solução deve perpassar pela preservação e garantia dos direitos à pessoa humana, mais precisamente, o âmago de sua dignidade (Recurso Especial 1.713.167 do STJ).
O Projeto de Lei nº 1058/11[8], arquivado na Câmara dos Deputados, buscava tutelar no ordenamento jurídico brasileiro à situação que a família é formada por pessoas e animais, resguardando assim a sua dignidade, proteção e o seu bem-estar, quando há separação conjugal e inexistindo consenso entre ex-cônjuges a respeito do destino do animal.
Outro projeto de lei, recentemente arquivado, é a PL nº 1.365/15 que trata sobre a guarda dos animais de estimação nos casos de dissolução de união estável hétero ou homoafetivo e do vínculo conjugal entre seus possuidores, estabelece assim critérios objetivos a serem analisados pelo juízo no momento de definir a concessão da guarda.
4.1DECISÕES DOS TRIBUNAIS ACERCA DA GUARDA COMPARTILHADA DOS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO
Como já dito, diante da omissão legislativa, os Juízes e Tribunais vêm aplicando o instituto da guarda compartilhada de forma análoga. Na 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em janeiro de 2015, discutiu-se sobre a guarda do cãozinho “Dully”, em sede de apelação de uma decisão exarada pela 5ª Vara de Família do Fórum Regional do Méier em um processo que litigava-se a dissolução de união estável c/c partilha de bens, que determinou que a ex-companheira ficasse com a posse do cão de estimação, por ter comprovado ser sua legítima proprietária. Inconformado com a decisão, o ex-companheiro apelou da sentença, aduzindo que o verdadeiro proprietário do animal, tendo sido o responsável pelos seus cuidados durante a convivência com animal e a ex-companheira, dentre vários outros argumentos. O relator da demanda declarou se tratar de um tema extremamente desafiador e que tal assunto não poderia ser ignorado, suscitando ainda que o problema navega na falta de normatização do assunto.
O relator ainda sustenta a importância que os animais de convivência possuem em nossa sociedade, e principalmente nas relações familiares, a decisão acabou por determinar que a ex-companheira deveria ficar com a guarda do animal, pois o ex-companheiro não conseguiu comprovar a propriedade do mesmo, mas que por vislumbrar a importância de Dully para ambas as partes, o mesmo com fundamento de respeito à dignidade da pessoa sustentou a necessidade do julgador propor uma solução razoável e plausível do conflito, determinando que o recorrente tenha o direito de estar em companhia do animal, concedendo a possibilidade de o apelante ficar com o cachorro em fins de semana alternados, exercendo nesses momentos a sua posse provisória.
Diante deste caso, pode-se observar que fora aplicado o melhor para as partes, bem como para o animal doméstico. Logo, não é mais possível que ainda se trate o animal convivente como um mero objeto, uma mera propriedade, podendo ser comparada a um carro, a uma mesa, e até mesmo a uma cadeira.
Outra situação parecida chegou ao Supremo Tribunal Federal, o Recurso Especial nº 1.713.167[9]. O caso chegou ao Supremo como Recurso Especial, após uma decisão parcialmente provida ao recurso de apelação interposto perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Um dos cônjuges ajuizou a demanda visando a regulamentação das visitas ao animal de estimação. As partes conviveram em sede de União Estável por mais de sete anos, sob o regime de comunhão universal de bens. Em 2008 o casal adquiriu uma cadela chamada “Kimi” da raça Yorkshire. Com o tempo, houve intenso apego ao animal, surgindo um verdadeiro laço de afeto e amor entre eles. Em sede de dissolução da convivência, o casal declarou que não havia bens a serem partilhados, deixando de tratar em relação ao animal de estimação, tendo em vista que uma das partes permaneceu com o animal, enquanto o outro tinha o livre direito de visitar o mesmo, porém a ré passou a impedir que a outra parte continuasse tendo contato com “o filho de quatro patas”, trazendo imensa angústia a este ex-convivente.
O magistrado do primeiro grau julgou improcedente o pedido sob o fundamento de que “[...] malgrado a inegável relação afetiva, o animal de estimação trata-se de semovente e não pode ser alçado a integrar relações familiares equivalentes entre pais e filhos, sob pena de subversão dos princípios jurídicos inerentes à hipótese", concluindo que, em sendo o animal objeto de direito, não há falar em visitação. O juiz aduziu ainda, que a ré por apresentar prova de exclusiva propriedade sobre o cachorro, deveria, portanto, ser tida como sua única proprietária. Interposta apelação, o Tribunal de Justiça de São Paulo deu parcial provimento ao recurso, estabelecendo a forma de visitação, com base na aplicação da analogia do instituto da guarda de menores. Irresignada com a decisão, a ré interpôs recurso especial.
Em sede de recurso especial, o STJ entendeu que apesar de não ser possível equiparar animais de estimação e seres humanos, deve-se reconhecer a importância da discussão envolvendo a entidade familiar e o animal de estimação. O Ministro Luis Felipe Salomão foi assertivo ao destacar que as relações entre humanos e animais pautadas na afetividade do âmbito familiar é situação delicada e que deve ser cuidadosamente analisada, entretanto, o mesmo aduz que em razão da natureza de coisa dada aos animais, as decisões devem ser pautadas na dignidade da pessoa que está litigando pelo direito de convivência com aquele animal.
O relator, Ministro Luis Felipe Salomão, teceu seu voto no sentido de que deveria ser afastada a alegação de que a discussão envolvendo a entidade familiar o seu animal de estimação é menor, ou se trata de mera futilidade. Este ressalta que é cada vez mais recorrente no mundo pós-moderno e envolve questão bastante delicada, tanto pelo ângulo da afetividade em relação ao animal, como pela necessidade da preservação do mandamento constitucional, Art. 225, §.1º, inciso VII. Levanta-se, ainda que, problemáticas idênticas a esta já são analisadas em outros países e fora objeto de regulamentação por lei, o que ainda não ocorreu no Brasil. Sendo relevante que a Corte de instância superior se debruce acerca do tema, diante da dispersão da jurisprudência sobre a interpretação do diploma civil, e em face da forte controvérsia acerca do assunto.
Por fim, o Tribunal conclui que a ordem jurídica não pode desprezar o relevo da relação do homem com seu animal de estimação, sobretudo nos tempos atuais. Deve-se ter como norte o fato, cultural e da pós-modernidade, de que há uma disputa dentro da entidade familiar em que prepondera o afeto de ambos os cônjuges pelo animal. Portanto, a solução deve perpassar pela preservação e garantia dos direitos à pessoa humana, mais precisamente, o âmago de sua dignidade. Levando em consideração que os animais de companhia são seres que, inevitavelmente, possuem natureza especial e, como ser senciente - dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais, também devem ter o seu bem-estar considerado. Assim, na dissolução da entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao animal de estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, a resolução deverá buscar atender, sempre a depender do caso em concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução da sociedade, com a proteção do ser humano e do seu vínculo afetivo com o animal. Na hipótese, o Tribunal de origem reconheceu que a cadela fora adquirida na constância da união estável e que estaria demonstrada a relação de afeto entre o recorrente e o animal de estimação, reconhecendo o seu direito de visitas ao animal, o que deve ser mantido. Recurso especial não provido.
Diante disso, é clara a relevância das relações referentes à família multiespécie. Frisa-se a necessidade um tratamento diferenciado à essas situações, visto o amplo aspecto conceitual de família, função social e poder familiar envolvidos na questão.
Por fim, é proporcional e adequado utilizar-se do instituto da guarda para resolução das demandas judiciais acerca da guarda dos animais, pois essa relação é similar a condição de filho, não sendo cabível reduzir esses laços afetivos por conta de uma legislação ultrapassada e inadequada com o contexto social em que estamos inseridos, devendo-se tomar como base o melhor interesse do animal, preservando-se conjuntamente a dignidade do animal, conforme preceito constitucional, bem como a dignidade da pessoa humana, este sendo o pilar da Constituição Brasileira.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A relação de proximidade entre os humanos e os animais foi evoluindo ao longo dos anos. O homem acabou modificando sua relação de afetividade em relação aos outros seres, em especial os animais, tirando estes do papel de meros objetos utilizados para transporte, caça, guarda e os colocando no status de animal de estimação. Essa nova relação rompe com o viés utilitarista com qual era visto os animais, levando estes para dentro dos lares, com uma convivência próxima, de interação mútua.
Nos últimos anos, os animais de estimação têm assumido um papel importante dentro das famílias brasileiras, formando um novo tipo de família, a denominada família multiespécie, esta que possui no seu núcleo humanos e não humanos vivendo em harmonia, com vínculos de afetividade, carinho, responsabilidade e cuidado.
Neste contexto, nota-se que o ordenamento jurídico se encontra em descompasso com a nova realidade das famílias multiespécie, relação que não mais é regida pelo viés utilitarista e financeiro, mas principalmente pelo valor afetivo que o dono, ou “pai” e “mãe”, dispensa a estes animais.
1 - Assim, no primeiro tópico do presente artigo, há uma análise acerca do conceito de família e sua evolução ao longo dos séculos, trazendo uma concepção da pluralidade familiar, bem como a família dotada de proteção da pessoa humana e da afetividade abordada pela Constituição Federal de 1988. Havendo uma abordagem de como é constituída a família multiespécie e como o afeto é o fator principal desse novo agrupamento familiar.
2 – Posteriormente, fora analisado qual a natureza jurídica dos animais, trazendo uma distinção entre pessoas e coisas, de forma a considerar os animais como seres senciente, conforme PL 27/18, visando os animais como sujeitos de direitos despersonalizados. Diante da quantidade de animais de estimação nos lares brasileiros, é inegável a necessidade de o ordenamento jurídico ter uma legislação para cuidar destes, tirando os mesmos de uma relação de coisa, sem vontades, medos e anseios, passando-se a ser visto como um sujeito de direito, passível de ser polo de uma relação ou discussão jurídica.
3 – Por fim, volta-se a concepção de família e sua ruptura. O terceiro tópico aborda como ocorre a guarda compartilhada e sua previsão legal, fazendo uma breve explanação do que acontece com os filhos menores na hipótese da dissolução do vínculo conjugal dos seus pais/responsáveis. De acordo com a Lei Civil brasileira, sendo os animais coisas, devem estes ter sua destinação condicionada ao regime de bens adotados pelo casal, entretanto, o Poder Judiciário, sabendo dos anseios da família multiespécie e que aquele animal inserido na discussão não é visto como um mero animal, mas sim como um filho, acaba aplicando por analogia a guarda compartilhada do filho menor.
4 - É possível observar que não legislar sobre a guarda dos animais de estimação é opção do legislador, tendo em vista que, embora houvesse projetos legislativos que visavam regulamentar a guarda compartilhada dos animais de estimação nos casos de dissolução litigiosa e do vínculo conjugal entre seus possuidores, tais projetos foram arquivados. Restando em trâmite o PLS nº 542/18, que possui como base o Enunciado 11 do IBDFAM, defendendo que na ação destinada a dissolver o casamento ou união estável, pode o juiz disciplinar a custódia compartilhada do animal de estimação.
5 – Diante da análise de suas decisões dos Tribunais superiores pode-se observar que a aplicação da guarda compartilhada do filho menor nas relações da família multiespécie não possui como fundamento basilar o melhor interesse do animal, como ocorre nas relações com os filhos menores, essas decisões possuem como base a dignidade da pessoa humana, uma vez que, deve ser respeitando o vínculo afetivo que aquele humano possui como seu animal.
Assim, é possível compreender, a partir da análise das decisões contidas nesse trabalho, que não há uma vontade do judiciário em humanizar os animais de convivência inseridos nas famílias multiespécie, tratando-os como sujeitos de direito, embora os animais sejam seres dotados de sensibilidade, capazes de sentir dores e de demonstrar, ao seu modo, afeto. Tampouco nota-se uma inclinação dos Tribunais em equiparar a posse de animais de estimação com a guarda de filhos. Todavia, note-se uma tendência nas decisões em considerar o afeto envolvido na demanda, assim, esse magistrado julga sob a perspectiva de proteção da dignidade da pessoa humana, não elevando os animais ao status de pessoa jurídica, visando o melhor interesse do animal. Há a necessidade de abandonar preceitos arcaicos de que o animal é coisa, e passar a observar ideias modernistas de que os animais podem e devem figurar como sujeitos nas relações familiares, sendo este dotado de direitos.
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[1] Graduada em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal). Endereço eletrônico: rebecas.jesus@ucsal.edu.br
[2] Pós-doutor em Direito. Professor UFBA e UCSAL. Endereço eletrônico: tagoretrajano@gmail.com
[3] De acordo com dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019 divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística nesta sexta-feira (4/9) revelou que em 46,1% dos domicílios tinham pelo menos um cachorro. Já os gatos eram parte de 19,3% dos lares brasileiros.
[4] SILVA, Chiara Michelle Ramos Moura da. Direito animal: uma breve digressão histórica Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 jun, 2014. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39899/direito-animal-uma-breve-digressao-historica. Acesso em: 30 set. 2020.
[5] SILVA, Chiara Michelle Ramos Moura da. Direito animal: uma breve digressão histórica Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 jun, 2014. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39899/direito-animal-uma-breve-digressao-historica. Acesso em: 30 set. 2020.
[6] Projeto de Lei do Senado nº 542, de 2018. Autoria da Senadora Rose de Freitas. Projeto visa estabelecer sobre o compartilhamento da custódia de animal de estimação de propriedade em comum, quando não houver acordo na dissolução do casamento ou da união estável. Altera o Código de Processo Civil, para determinar a aplicação das normas das ações de família aos processos contenciosos de custódia de animais de estimação.
[7] Recurso Especial 1.713.167 do STJ.
[8] Projeto de Lei nº 1058, de 2011. Autoria do Deputado Dr. Ubiali. Projeto visava dispor sobre a guarda dos animais de estimação nos casos de dissolução litigiosa da sociedade e o vínculo conjugal entre seus possuidores, e dá outras providências.
[9] RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. ANIMAL DE ESTIMAÇÃO. AQUISIÇÃO NA CONSTÂNCIA DO RELACIONAMENTO. INTENSO AFETO DOS COMPANHEIROS PELO ANIMAL. DIREITO DE VISITAS. POSSIBILIDADE, A DEPENDER DO CASO CONCRETO. 1. Inicialmente, deve ser afastada qualquer alegação de que a discussão envolvendo a entidade familiar e o seu animal de estimação é menor, ou se trata de mera futilidade a ocupar o tempo desta Corte. Ao contrário, é cada vez mais recorrente no mundo da pós-modernidade e envolve questão bastante delicada, examinada tanto pelo ângulo da afetividade em relação ao animal, como também pela necessidade de sua preservação como mandamento constitucional (art. 225, § 1, inciso VII -"proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade"). 2. O Código Civil, ao definir a natureza jurídica dos animais, tipificou-os como coisas e, por conseguinte, objetos de propriedade, não lhes atribuindo a qualidade de pessoas, não sendo dotados de personalidade jurídica nem podendo ser considerados sujeitos de direitos. Na forma da lei civil, o só fato de o animal ser tido como de estimação, recebendo o afeto da entidade familiar, não pode vir a alterar sua substância, a ponto de converter a sua natureza jurídica. 3. No entanto, os animais de companhia possuem valor subjetivo único e peculiar, aflorando sentimentos bastante íntimos em seus donos, totalmente diversos de qualquer outro tipo de propriedade privada. Dessarte, o regramento jurídico dos bens não se vem mostrando suficiente para resolver, de forma satisfatória, a disputa familiar envolvendo os pets, visto que não se trata de simples discussão atinente à posse e à propriedade. 4. Por sua vez, a guarda propriamente dita - inerente ao poder familiar - instituto, por essência, de direito de família, não pode ser simples e fielmente subvertida para definir o direito dos consortes, por meio do enquadramento de seus animais de estimação, notadamente porque é um munus exercido no interesse tanto dos pais quanto do filho. Não se trata de uma faculdade, e sim de um direito, em que se impõe aos pais a observância dos deveres inerentes ao poder familiar. 5. A ordem jurídica não pode, simplesmente, desprezar o relevo da relação do homem com seu animal de estimação, sobretudo nos tempos atuais. Deve-se ter como norte o fato, cultural e da pós-modernidade, de que há uma disputa dentro da entidade familiar em que prepondera o afeto de ambos os cônjuges pelo animal. Portanto, a solução deve perpassar pela preservação e garantia dos direitos à pessoa humana, mais precisamente, o âmago de sua dignidade. 6. Os animais de companhia são seres que, inevitavelmente, possuem natureza especial e, como ser senciente - dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais -, também devem ter o seu bem-estar considerado. 7. Assim, na dissolução da entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao animal de estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, a resolução deverá buscar atender, sempre a depender do caso em concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução da sociedade, com a proteção do ser humano e do seu vínculo afetivo com o animal. 8. Na hipótese, o Tribunal de origem reconheceu que a cadela fora adquirida na constância da união estável e que estaria demonstrada a relação de afeto entre o recorrente e o animal de estimação, reconhecendo o seu direito de visitas ao animal, o que deve ser mantido. 9. Recurso especial não provido. (STJ - REsp: 1713167 SP 2017/0239804-9, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 19/06/2018, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 09/10/2018)
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