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Os alimentos nas uniões homoafetivas: uma questão de respeito à Constituição
É certo e incontroverso que o Direito de Família da pós-modernidade (e o Direito Civil como um todo) não pode distanciar-se da legalidade constitucional, impondo uma estrita obediência às premissas postas na Magna Charta, que irradia os valores fundamentais da ordem jurídica brasileira.
Nesse desenho, foi talhado o nosso mais precioso valor jurídico, estatuído como princípio fundamental da República (art. 1o, III): a dignidade da pessoa humana, elevando o ser humano ao ápice de todo o sistema jurídico. O princípio da dignidade humana, pois, serve como mola de propulsão da intangibilidade da vida do ser humano, dele decorrendo o necessário respeito à sua integridade física e psíquica e às condições básicas de igualdade e liberdade, além da afirmação da garantia de pressupostos materiais mínimos para que se possa viver.
Assim, aportado na (necessária) ótica civil-constitucional, a família, fundamento da sociedade (LEVY-STRAUSS), tem de ser compreendida a partir de um novo tecido normativo, permeada por valores mais éticos e afinados com a realidade que lhe incumbe regular. É a família do afeto, realçando os valores existenciais do homem, sobrepujando o caráter patrimonial, até então prevalecente. Nesta linha de raciocínio, fácil notar que as relações familiares, compreendidas na legalidade constitucional, deram origem “a um berço de afeto, solidariedade e mútua constituição de uma história em comum”, na feliz percepção de LUIZ EDSON FACHIN (Elementos críticos de Direito de Família, Rio: Renovar, 1999, p.97).
Por isso, ao regular a matéria, o Texto Magno reservou “especial proteção do Estado” (art. 226) ao núcleo familiar, deixando antever que o pano de fundo da tutela que lhe foi emprestada é a própria afirmação da dignidade da pessoa humana. Significa dizer: a proteção à família somente se justifica para que se implemente a tutela avançada da pessoa humana, efetivando no plano concreto, real, a dignidade afirmada abstratamente. É a família servindo como instrumento para o desenvolvimento da personalidade humana e para a realização plena de seus membros.
Ora, a afirmação da fundamentalidade do princípio da dignidade da pessoa humana impõe uma nova postura aos civilistas pós-modernos, que devem, na interpretação e aplicação de normas e conceitos jurídicos, prosseguir na luta incansável contra tudo que ameace a completa integridade humana, como ressaltou GABRIEL MARCEL, em seu “Brado de Alerta”.
É nesta exuberante arquitetura civil-constitucional, construída para a proteção da pessoa humana, que sobreleva afirmar a possibilidade de alimentos nas uniões homoafetivas. E não são poucos os motivos que, emanando da Lei Maior, justificam tal assertiva.
Primus, embora a Lex Fundamentallis não tenha, expressamente, contemplado a união homoafetiva como relação familiar, uma visão unitária e sistêmica conduz, com tranqüilidade, a esta conclusão, especialmente quando considerados os princípios basilares da dignidade humana, da igualdade substancial, da não discriminação (inclusive por opção sexual) e do pluralismo familiar, consagrando diferentes modelos de entidade familiar (não se pense, todavia, que a família homoafetiva se confunde com a família casamentária – fundada no casamento, união formal entre pessoas de sexos diferentes – ou com a família convivencial – fundada na união estável, como laço informal entre pessoas de sexos diferentes. Trata-se de modelo familiar autônomo, como a comunidade entre irmãos, tios e sobrinhos e avós e netos, merecedor de especial proteção do Estado).
Secundus, importa realçar que a família moderna tem o seu ponto de referência no afeto, evidenciado como verdadeiro direito à liberdade de autodeterminação emocional, que se encontra garantida constitucionalmente.
Tertius, a justificativa básica da obrigação alimentar é o princípio constitucional da solidariedade social (art. 3o), tornando evidente que a ratio essendi dos alimentos é a busca da afirmação, no plano concreto, da própria dignidade humana.
Assim, mesmo não contemplados no art. 1.694 do novo (?) Código Civil – que prevê sua possibilidade apenas entre parentes, cônjuges ou companheiros – os alimentos são devidos na união homoafetiva, eis que decorrem, logicamente, de princípios constitucionais, especialmente do dever de solidariedade social e da afirmação da dignidade humana, que, repita-se à exaustão, não pode ser vislumbrado como valor abstrato, desprovido de concretude. Ora, se a relação homoafetiva, como qualquer outro relacionamento heterossexual, lastreia-se no afeto e na solidariedade, não há motivo para deixar de reconhecer o direito a alimentos, em favor daquele que necessita de proteção material.
Não fosse bastante a regra constitucional, vale lembrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, assegura que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, obstando discriminação de qualquer espécie. Aliás, a vedação à discriminação em razão de orientação sexual impede que o preconceito e a intolerância prevaleçam sobre o direito fundamental à igualdade substancial, que serve de âncora para um convívio social democrático, respeitada a dignidade de cada pessoa humana.
Deste modo, com espeque nos primordiais e inafastáveis valores constitucionais e tendo em mira que é objetivo fundamental da República construir uma sociedade solidária, justa e igualitária, visando a promoção do bem-estar de todos, indistintamente, sem preconceitos, não se pode negar a possibilidade de alimentos nas uniões homoafetivas, sempre que um dos parceiros deles necessitar, como forma de manter sua integridade, tal como sói ocorrer em qualquer outra união familiar. Já são encontrados, aliás, na literatura jurídica, relevantes escritos admitindo a tese ora esposada, como na avançada literatura argentina (Graciela Medina), além de referências em escritos oriundos do Rio Grande do Sul (Belmiro Pedro Welter) e de Santa Catarina (Marco Aurélio Gastaldi Buzzi).
É que a proclamada dignidade humana torna cada pessoa merecedora de respeito e proteção autônomos, concretos, voltados para as suas prementes necessidades básicas vitais, assegurada sua integridade física e psíquica contra todo ato que possa violar suas condições existenciais mínimas.
E, como ponderou o eminente jurista português JORGE MIRANDA (Manual de Direito Constitucional, Coimbra: Coimbra editora, 2000, p.188), “enquanto houver uma pessoa que não veja reconhecida a sua dignidade, ninguém pode considerar-se satisfeito com a dignidade adquirida”.
(*) Promotor de Justiça – BAHIA; Professor de Direito Civil; Mestrando em Ciências da Família na UCSal. – Universidade Católica do Salvador; Membro do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família e do IBDP – Instituto Brasileiro de Direito Processual
Nesse desenho, foi talhado o nosso mais precioso valor jurídico, estatuído como princípio fundamental da República (art. 1o, III): a dignidade da pessoa humana, elevando o ser humano ao ápice de todo o sistema jurídico. O princípio da dignidade humana, pois, serve como mola de propulsão da intangibilidade da vida do ser humano, dele decorrendo o necessário respeito à sua integridade física e psíquica e às condições básicas de igualdade e liberdade, além da afirmação da garantia de pressupostos materiais mínimos para que se possa viver.
Assim, aportado na (necessária) ótica civil-constitucional, a família, fundamento da sociedade (LEVY-STRAUSS), tem de ser compreendida a partir de um novo tecido normativo, permeada por valores mais éticos e afinados com a realidade que lhe incumbe regular. É a família do afeto, realçando os valores existenciais do homem, sobrepujando o caráter patrimonial, até então prevalecente. Nesta linha de raciocínio, fácil notar que as relações familiares, compreendidas na legalidade constitucional, deram origem “a um berço de afeto, solidariedade e mútua constituição de uma história em comum”, na feliz percepção de LUIZ EDSON FACHIN (Elementos críticos de Direito de Família, Rio: Renovar, 1999, p.97).
Por isso, ao regular a matéria, o Texto Magno reservou “especial proteção do Estado” (art. 226) ao núcleo familiar, deixando antever que o pano de fundo da tutela que lhe foi emprestada é a própria afirmação da dignidade da pessoa humana. Significa dizer: a proteção à família somente se justifica para que se implemente a tutela avançada da pessoa humana, efetivando no plano concreto, real, a dignidade afirmada abstratamente. É a família servindo como instrumento para o desenvolvimento da personalidade humana e para a realização plena de seus membros.
Ora, a afirmação da fundamentalidade do princípio da dignidade da pessoa humana impõe uma nova postura aos civilistas pós-modernos, que devem, na interpretação e aplicação de normas e conceitos jurídicos, prosseguir na luta incansável contra tudo que ameace a completa integridade humana, como ressaltou GABRIEL MARCEL, em seu “Brado de Alerta”.
É nesta exuberante arquitetura civil-constitucional, construída para a proteção da pessoa humana, que sobreleva afirmar a possibilidade de alimentos nas uniões homoafetivas. E não são poucos os motivos que, emanando da Lei Maior, justificam tal assertiva.
Primus, embora a Lex Fundamentallis não tenha, expressamente, contemplado a união homoafetiva como relação familiar, uma visão unitária e sistêmica conduz, com tranqüilidade, a esta conclusão, especialmente quando considerados os princípios basilares da dignidade humana, da igualdade substancial, da não discriminação (inclusive por opção sexual) e do pluralismo familiar, consagrando diferentes modelos de entidade familiar (não se pense, todavia, que a família homoafetiva se confunde com a família casamentária – fundada no casamento, união formal entre pessoas de sexos diferentes – ou com a família convivencial – fundada na união estável, como laço informal entre pessoas de sexos diferentes. Trata-se de modelo familiar autônomo, como a comunidade entre irmãos, tios e sobrinhos e avós e netos, merecedor de especial proteção do Estado).
Secundus, importa realçar que a família moderna tem o seu ponto de referência no afeto, evidenciado como verdadeiro direito à liberdade de autodeterminação emocional, que se encontra garantida constitucionalmente.
Tertius, a justificativa básica da obrigação alimentar é o princípio constitucional da solidariedade social (art. 3o), tornando evidente que a ratio essendi dos alimentos é a busca da afirmação, no plano concreto, da própria dignidade humana.
Assim, mesmo não contemplados no art. 1.694 do novo (?) Código Civil – que prevê sua possibilidade apenas entre parentes, cônjuges ou companheiros – os alimentos são devidos na união homoafetiva, eis que decorrem, logicamente, de princípios constitucionais, especialmente do dever de solidariedade social e da afirmação da dignidade humana, que, repita-se à exaustão, não pode ser vislumbrado como valor abstrato, desprovido de concretude. Ora, se a relação homoafetiva, como qualquer outro relacionamento heterossexual, lastreia-se no afeto e na solidariedade, não há motivo para deixar de reconhecer o direito a alimentos, em favor daquele que necessita de proteção material.
Não fosse bastante a regra constitucional, vale lembrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, assegura que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, obstando discriminação de qualquer espécie. Aliás, a vedação à discriminação em razão de orientação sexual impede que o preconceito e a intolerância prevaleçam sobre o direito fundamental à igualdade substancial, que serve de âncora para um convívio social democrático, respeitada a dignidade de cada pessoa humana.
Deste modo, com espeque nos primordiais e inafastáveis valores constitucionais e tendo em mira que é objetivo fundamental da República construir uma sociedade solidária, justa e igualitária, visando a promoção do bem-estar de todos, indistintamente, sem preconceitos, não se pode negar a possibilidade de alimentos nas uniões homoafetivas, sempre que um dos parceiros deles necessitar, como forma de manter sua integridade, tal como sói ocorrer em qualquer outra união familiar. Já são encontrados, aliás, na literatura jurídica, relevantes escritos admitindo a tese ora esposada, como na avançada literatura argentina (Graciela Medina), além de referências em escritos oriundos do Rio Grande do Sul (Belmiro Pedro Welter) e de Santa Catarina (Marco Aurélio Gastaldi Buzzi).
É que a proclamada dignidade humana torna cada pessoa merecedora de respeito e proteção autônomos, concretos, voltados para as suas prementes necessidades básicas vitais, assegurada sua integridade física e psíquica contra todo ato que possa violar suas condições existenciais mínimas.
E, como ponderou o eminente jurista português JORGE MIRANDA (Manual de Direito Constitucional, Coimbra: Coimbra editora, 2000, p.188), “enquanto houver uma pessoa que não veja reconhecida a sua dignidade, ninguém pode considerar-se satisfeito com a dignidade adquirida”.
(*) Promotor de Justiça – BAHIA; Professor de Direito Civil; Mestrando em Ciências da Família na UCSal. – Universidade Católica do Salvador; Membro do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família e do IBDP – Instituto Brasileiro de Direito Processual
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