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Ações de Alimentos e de oferta de alimentos simultâneas: conexão ou litispendência?
AÇÕES DE ALIMENTOS E DE OFERTA DE ALIMENTOS SIMULTÂNEAS: CONEXÃO OU LITISPENDÊNCIA?
Rafael Calmon Rangel
Mestre em Direito Processual Civil pela UFES
Juiz de Direito
Diante da corriqueira hipótese de o juiz de família se deparar com duas ações simultâneas e contrapostas, movidas pelas mesmas partes, em que se pedem e ofertam alimentos, respectivamente, costuma surgir a dúvida a respeito da medida processual a ser adotada: o reconhecimento da conexão ou da continência, com a correspondente reunião de processos, para julgamento conjunto (CPC, arts. 104 e 105), ou a extinção de uma das ações, sem resolução de mérito, com fundamento na litispendência (CPC, art. 267, V).
As opiniões se dividem. Na doutrina, YUSSEF SAID CAHALI[1], por exemplo, sustenta a ocorrência de continência, no que vai acompanhado por BASÍLIO DE OLIVEIRA[2]. Já o entendimento jurisprudencial é bastante oscilante e simples pesquisa à base da jurisprudência dos Tribunais estaduais revela a intensidade dessa divergência, rendendo ensejo ao surgimento de fundamentadas decisões abonando tanto uma tese quanto outra. Basta ver que, enquanto os TJMG[3], TJDFT[4] e TJSC[5] parecem possuir entendimento consolidado a respeito da ocorrência de mera conexão, o TJRS, aparentemente de forma pacífica, entende pela litispendência[6], ao passo que o TJSP possui julgados tanto em um quanto em outro desses sentidos[7], e o TJPR algumas decisões entendendo pela conexão[8] e outras pela continência[9].
As consequências advindas de cada um desses posicionamentos são tão diversas e conhecidas que não merecem maiores comentários, a não ser a mera lembrança de que, embora a conexão não induza à obrigatória reunião dos processos, implica necessariamente em dois julgamentos distintos, ainda que contidos, sob o ponto de vista da forma, em uma única sentença (CPC, art. 105), ao passo que a litispendência leva sempre e infalivelmente à extinção de uma das ações (CPC, art. 267, V). Por isso é que melhor do que fazer a abordagem dos efeitos isolados de tais institutos, parece ser a análise dos motivos que os orientam, pois é neles que reside o que talvez seja a principal razão para tamanha dissidência.
Ao que parece, os julgados que entendem pela ocorrência de conexão tendem a adotar uma interpretação mais aproximada da literal e restritiva do texto normativo do artigo 103 do CPC, pois, não raro, justificam-nos na descoincidência dos elementos da ação, especialmente das causas de pedir, por exemplo, ao argumento de que na oferta de alimentos “o autor tem por objetivo cumprir o seu dever de prestar alimentos” ao passo que naquela em que se pedem alimentos “o autor pretende a satisfação do seu direito a alimentos”, como ocorrido no Agravo de Instrumento nº 1.0607.13.005696-5/001, julgado pela 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, cuja ementa restou assim redigida:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE OFERTA DE ALIMENTOS E AÇÃO DE PEDIDO DE ALIMENTOS - CAUSA DE PEDIR DIVERSA - LITISPENDÊNCIA - INOCORRÊNCIA - EXISTÊNCIA DE CONEXÃO - ALIMENTOS PROVISÓRIOS - NECESSIDADE X POSSIBILIDADE - DESCOMPASSO DO BINÔMIO - DEMONSTRAÇÃO INEXISTENTE - DECISÃO MANTIDA.
Entre as ações de pedido e de oferta de alimentos não há que se falar em litispendência, por deterem causas de pedir diversas, mas sim em conexão, de forma a evitar-se julgamentos antagônicos.
O mesmo ocorre com aqueles em que a continência foi o motivo utilizado para justificar a reunião dos processos, onde o motivo exposto na fundamentação do pronunciamento judicial foi no sentido de que “a discussão posta à apreciação nas duas ações é a mesma, diferindo tão somente o fato de que em uma delas os alimentos são ofertados e na outra os alimentos são pedidos pelo alimentado” conforme pode se observar no julgamento do Agravo de Instrumento nº 4.173.984, decidido pela 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, cuja ementa segue abaixo transcrita:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE ALIMENTOS E AÇÃO DE OFERTA DE ALIMENTOS - REUNIÃO DOS PROCESSOS - CONTINÊNCIA - IMPRESCINDIBILIDADE DO JULGAMENTO SIMULTÂNEO UMA VEZ QUE O PEDIDO DE UMA DAS AÇÕES ENGLOBA O DA OUTRA [...].
Já os julgados que entendem pela ocorrência da litispendência parecem empregar uma interpretação mais próxima da ampliativa e teleológica ao enunciado do art. 301, §2º do CPC, pois, não só reconhecem que a principal função da conexão – evitar decisões contraditórias – seria desatendida pela mera reunião dos processos, como vislumbram a perfeita identidade dos elementos da ação, não raro sob o fundamento de que “embora em polos antagônicos, mas visando o mesmo objetivo, que é o fornecimento de alimentos ao filho, com discussão acerca do quantum, não existe entre os feitos apenas a conexão, mas litispendência”, como restou decidido no Agravo de Instrumento nº 70048324727, julgado pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sob a seguinte ementa:
ALIMENTOS. AÇÕES SIMULTÂNEAS COM PEDIDO E OFERTA DE ALIMENTOS. LITISPENDÊNCIA.
1. Ocorre litispendência quando as ações são idênticas, isto é, quando existe a identidade de partes, a mesma causa de pedir e é igual o pedido. 2. Havendo a coincidência das partes, embora em pólos antagônicos, mas visando o mesmo objetivo, que é o fornecimento de alimentos ao filho, com discussão acerca quantum, não existe entre os feitos apenas a conexão, mas litispendência, o que induz a reunião das ações, ou seja, a extinção da segunda ação.
3. Nas ações de pedido e oferta de alimentos a pretensão deduzida acerca do valor da pensão não vincula o juízo, a quem compete estabelecer o encargo alimentar tendo em mira apenas as diretrizes legais, isto é, o binômio alimentar, possibilidade e necessidade. Ou seja, os alimentos podem ser fixados em valor superior à oferta ou inferior ao pedido.
4. Presente a tríplice identidade, verifica-se a litispendência ex vi do art. 301, §3º, do CPC, sendo imperiosa a extinção do segundo processo, onde foi lançada a decisão recorrida.
Obviamente respeitando as primeiras posições, a última parece conferir maior utilidade ao processo, à medida em que otimiza a atividade jurisdicional. Isto porque a primordial função da conexão e da continência não é apenas criar o ambiente adequado para a realização de julgamento simultâneo (CPC, arts. 104 e 105), mas sim a de fazer com que esse julgamento impeça o surgimento de decisões contraditórias entre si, o que poderia acarretar, no mínimo, insegurança jurídica[10]. Tanto é assim que, havendo a reunião de processos, a sentença deve ser formalmente una, embora materialmente se encarregue de decidir todas as demandas envolvidas[11].
Acontece que a utilidade desta reunião e decisão simultânea parece restar seriamente abalada no modelo atual de processo, comprometido muito mais em atribuir concreção aos princípios e valores constitucionais, do que em preencher a estrutura de institutos estabelecidos pelo legislador, sem a observância das peculiaridades de cada caso concreto. Afinal, qual seria o propósito de se atribuir função social aos institutos de direito material, se no momento em que fosse instaurado litígio a respeito, o processo se limitasse a preencher estruturas fixas, delimitadas pelo legislador, sem se atentar para a circunstância de que ele também possui função social?
A funcionalidade do processo perpassa necessariamente pela máxima redução do tempo de sua duração (CR/88, art. 5º, LXXVIII), desde que não sejam comprometidas garantias de semelhante magnitude, por óbvio. Nesse contexto, ordenar-se a reunião de demandas cujo propósito é absolutamente idêntico não parece ser medida que prestigie esse objetivo, pois impõe a prática de atos desnecessários, como a própria abertura da fase probatória e a elaboração de relatório, fundamentação e dispositivo específicos na sentença, que comprometeriam tempo considerável de todos os sujeitos nele envolvidos.
A reunião de processos pela conexão e continência só se justifica quando há possibilidade concreta de decisões diferentes e contraditórias entre cada uma das demandas, pois seu pressuposto é a existência de ações distintas, mas que mantenham algum vínculo, mais ou menos intenso, entre si, como nas hipóteses de ação de consignação em pagamento movida simultaneamente à ação de resolução de contrato[12] e na de ação de despejo ajuizada concomitantemente à ação de anulação de cláusulas contratuais[13], em que a conexão é manifesta, ou, ainda no caso de ações simultâneas de cancelamento de hipoteca e declaração de nulidade de cláusula contratual[14], onde a continência é manifesta, e, por isso, seria virtualmente possível reconhecer-se a improcedência de uma e a procedência da outra, parcial ou totalmente, o que não ocorre nas ações sob estudo, onde não existe qualquer possibilidade, mínima que seja, de o magistrado fixar de forma diferente os alimentos pedidos e oferecidos, na medida em que o objetivo perseguido em ambas as ações é absolutamente o mesmo, qual seja, o arbitramento de alimentos, que deve levar em consideração, sempre, o binômino alimentar e suas implicações frente às circunstâncias do caso concreto (CC, art. 1.694), independentemente do valor ofertado/pedido pelas partes, que é recebido pelo juiz a título meramente estimativo, e por isso não vinculantes, tanto na ação em que se ofertam[15] quanto naquela em que se pedem alimentos[16].
Aparentemente, nem mesmo aquelas ações movidas pelo representante de incapazes, em seu próprio nome, mas contendo pedido de alimentos direcionados a eles escapariam da regra acima, pois há tempos vem sendo assegurado que “a mãe, conservando o pátrio-poder dos filhos menores, absolutamente incapazes, sob sua guarda, pleiteie alimentos para eles, em nome próprio"[17], sem que isso acarrete qualquer mácula ao processo[18].
Que fique claro. O que se defende aqui é a litispendência entre as ações que contenham como objeto único a oferta de alimentos e o pedido de alimentos, e não entre demandas que veiculem esses pedidos cumulados a outros, como acontece com frequência no divórcio, na declaratória de união estável e na investigação de paternidade, por exemplo, em que se poderia cogitar a ocorrência de outros fenômenos, diversos da litispendência.
Verifica-se, dessa forma, que a ausência de identidade entre os elementos das ações sob análise não passa de mera aparência, uma vez que, materialmente, as partes serão as mesmas, a causa de pedir de ambas repousará no inadimplemento (fato) e no dever de sustento (fundamento jurídico), e, o pedido imediato, isto é, a providência jurisdicional pretendida, se traduzirá na emissão de uma sentença que reconheça a obrigação de prestar alimentos, enquanto o pedido mediato, ou seja, o bem da vida perseguido será a forma e periodicidade com que esses alimentos deverão ser fornecidos.
Também não haverá absolutamente nenhuma distinção entre os ritos processuais dessas ações, pois ambas tramitam sob o rito especial previsto pela L. 5.478/68, como se observa do enunciado do art. 24.
Por isso é que se acredita que se os elementos das ações fossem vistos sob um critério mais elástico e a função social dos institutos processuais preponderasse sobre seu caráter estrutural, o processo seria mais econômico, rápido e eficaz. Inclusive sugere-se - até pela concorrência de legitimados ativos para o pedido de alimentos -, que a identidade de partes, por exemplo, seja analisada com base em critério semelhante ao que vem sendo empregado às ações coletivas, isto é, “sob a ótica dos beneficiários dos efeitos da sentença, ainda que, em princípio, as partes processuais sejam diferentes no momento da impetração”[19], por se acreditar que, mesmo sob fundamentos diversos, haveria menos entendimentos discrepantes em torno dessa possibilidade. Já a causa de pedir, de repente, poderia ser examinada à luz da finalidade buscada pelo autor e das especificidades das relações de direito material que subjazem a lide (relação de família), sobretudo porque o fato em que se fundamenta o pedido, isto é, o descumprimento do dever de sustento, é um “fato constante”, independentemente da forma pela qual se manifeste no caso concreto. Por fim, poderia ser dada maior relevância ao pedido mediato, de modo a se concentrarem todas as atenções no bem da vida perseguido pelo autor, relativizando-se, de certa forma, a importância dada à natureza ou conteúdo do provimento judicial responsável por sua entrega ao autor (pedido imediato), até porque toda e qualquer sentença civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia, configurará título executivo judicial (CPC, art. 475-N, I), municiando o credor com o instrumental necessário a promover o cumprimento forçado da obrigação reconhecida, sob os ritos específicos previstos pela lei para esse tipo de execução (CPC, arts. 732 e 733).
Mas, tudo isso é só uma opinião!
[1] CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 605.
[2] OLIVEIRA, Basílio de. Alimentos: revisão e exoneração. 3ed. Rio de Janeiro: Aide, 1994, p. 60/61.
[3] Ap. Cível 1.0570.13.002344-5/001, 4a Câm. Cível, Rel. Des. Duarte de Paula, DJ de 28.08.14; AI nº 1.0433.13.023409-2/002, 2ª Câm. Cível, Rel. Des. Hilda Teixeira da Costa, DJ de 21.05.14; Ap. Cível nº 1.0079.13.005309-7/001, 5ª Câm. Cível, Rel. Des. Barros Levenhagen, DJ de 15.05.14; AI nº 1.0607.13.005696-5/001, 2ª Câm. Cível, Rel. Des. Afrânio Vilela, DJ de 24.04.14.
[4] AI nº 20070020035823, 5ª Turma Cível, Rel. Des. Esdras Neves, DJU de 04.10.2007; Ap. Cível nº 20020110781482, 5ª Turma Cível, Rel. Des. Haydevalda Sampaio, DJU de 20.04.2006.
[5] AI nº 2013.030764-3, Rel. Des. Jairo Fernandes Gonçalves, 5ª Câmara de Direito Civil, J. em 20/03/2014 e Ap. Cível 2008.016682-1, Rel. Des. Fernando Carioni, 3ª Câmara de Direito Civil, J. em 06/05/2008.
[6] AI nº 70060936549, 7ª Câm. Cível, Rel. Des. Sandra Brisolara Medeiros, J. em 04.08.14; AI nº 70059019315, 7ª Câm. Cível, Rel. Des. Liselena Schifino Robles Ribeiro, J. em 21/03/2014; Ap. Cível nº 70052898301, 7ª Câmara Cível, Rel. Des. Jorge Luís Dall'Agnol, J. em 24.04.2013; AI nº 70048324727, 7ª Câmara Cível, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, J. em 27/06/2012; Ap. Cível nº 70041559535, 8ª Câmara Cível, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, J. em 30.06.11.
[7] Entendendo pela conexão: AI nº 0418184-90.2010.8.26.0000, 8ª Câm. D. Privado, Rel. Des. Salles Rossi, J. em 24.04.11. Entendendo pela litispendência: Ap. Cível s/ rev. n° 636.642-4/7-00, 2ª Câm. D. Privado, Rel. Des. Morato de Andrade, J. em 23.06.09.
[8] AI nº 747760-5, 12ª C. Cível, Rel. Des. José Cichocki Neto, J. em 09.11.11; Ap. Cível nº 1224534-8, 12ª C. CÍVEL, Rel. Des. João Domingos Kuster Puppi, DJ de 12.09.14.
[9] AI nº 4.173.984, 11ª C. Cível, Rel. Des. Themis Furquim Cortes, J. em 17.10.07.
[10] STJ, CC 126.601/MG, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe de 05.12.13.
[11] STJ, REsp 230.732/MT, Rel. Min. Castro Filho, DJ de 01.08.05; REsp 258.733/SE, Rel. Min. Milton Luiz Pereira, J. em 06.08.10.
[12] STJ, CC 121.390/SP, Rel. Min. Raul Araújo, DJe de 27.05.13.
[13] STJ, REsp 439.849/SP, Rel. Min. Félix Fischer, DJU de 30.09.02.
[14] STJ, REsp 1.051.652/TO, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe de 03.10.11.|
[15] STJ, AREsp 159.512/SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe de 09.11.12.
[16] STJ, REsp 6.169/SP, Rel. Min. Cláudio Santos, DJU de 16.01.95.
[17] RJTJESP nº 80/22.
[18] STJ, REsp 1.046.130/MG, DJe de 21.10.09 “Na ação em que se pleiteia alimentos em favor de filhos menores, é destes a legitimidade ativa, devendo o genitor assisti-los ou representá-los, conforme a idade. A formulação, porém, de pedido de alimentos pela mãe, em nome próprio, em favor dos filhos, em que pese representar má-técnica processual, consubstancia mera irregularidade, não justificando o pedido de anulação de todo o processo, se fica claro, pelo teor da inicial, que o valor solicitado se destina à manutenção da família. Ilegitimidade ativa afastada.”
[19] STJ, AgRg nos EmbExeMS 6864/DF, Rel. Min. Regina Helena Costa, DJe de 21.08.14.
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