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O afeto e o direito, para onde estamos caminhando?!
Marco Túlio Murano Garcia
Advogado Especializado em Direito de Família. Sócio do IBDFAM.
Membro da Comissão do Idoso e da Pessoa com Deficiência.
Email: marcotulio@associadossc.com.
É inquestionável a importância do afeto nas relações humanas. Todavia, no direito de família contemporâneo, o que se vê é um grande exagero na extração de efeitos jurídicos do afeto. Sempre tem alguém, na doutrina e na jurisprudência, querendo interpretar, catalogar e julgar as manifestações de afeto dos outros, positivas ou negativas, comissivas ou omissivas, a elas atribuindo as mais diversas conseqüências jurídicas.
A situação está tão grave que temos que ser muito comedidos ao demonstrar afeto por uns e somos obrigados a ser afetuosos com outros por imposição legal.
O fenômeno se torna muito mais interessante em vista do paradoxo que esta interferência exagerada do Estado, na regulamentação do afeto, estabelece com a maior liberdade de autodeterminação que se vem apregoando, por exemplo, na dissolução do matrimônio, onde foi abolida a figura da separação e toda a carga subjetiva que a necessidade de invocação de causas para a denúncia do casamento impunham, tendo remanescido apenas o divórcio, puro e simples, que se faz até em cartório e prescinde, absolutamente, da invocação de qualquer causa subjetiva. Separo-me pela mesma razão que me levou a casar (e ninguém me perguntou porque motivo eu me casava), só que ao contrário, casei porque desejava, me divorciei porque não desejava mais o casamento. Ou casei porque amava e me divorciei porque não amava mais ao ponto de querer dividir minha vida com determinada pessoa.
A propósito, a tendência moderna é impedir a discussão da causa ou motivação do divórcio. Não é que eu não precise dizer, ao requerer meu divórcio, qual a motivação implícita neste pleito. Mesmo querendo, eu não devo apresentar a motivação.
Todavia, na contramão absoluta desta grande abertura que se deu ao divórcio, desta quase que nenhuma interferência estatal no ato, diante de outros institutos o que se percebe é uma postura completamente antagônica do Estado, através de seus juízes. Evidentemente que os juízes, ao decidirem causas desse jaez, o fazem inspirados em muitas manifestações doutrinais que defendem a mesma posição.
Muitos que bradam em defesa da liberdade materializada na conquista do divórcio sem culpa acabam exacerbando a importância desta mesma culpa na indenização por abandono afetivo, só para se ter uma idéia do que estou tentando dizer. Como se quando um pai não amasse seu filho ou um filho não amasse seu pai, fosse simples e fácil estabelecer o culpado por este desamor e resolver tudo em perdas e danos, como se diante de uma relação objetiva contratual estivéssemos.
Ora, quando estamos falando de afeto ou desafeto em terreno de abandono afetivo, estamos falando de motivação, estamos falando de culpa, queremos encontrar o responsável pelo fim do afeto ou pelo seu não aperfeiçoamento e puní-lo, tal qual se fazia com o cônjuge culpado pela separação do casal.
Geralmente se atribui ao pai toda a culpa pela falta de afeto a um filho, sem se indagar quais foram os motivos subjetivos psíquicos que o afastaram do filho. Não se indaga qual foi o comportamento da genitora da criança, dos seus familiares e da sociedade ao construir, na criança e no próprio pai, um enorme vazio e, no mais das vezes, um grande antagonismo, através da prática que hoje começa a se discutir da alienação parental. Outrora um pai não tinha recursos para evitar a alienação parental e, agora, este mesmo pai é punido por abano afetivo cometido em um período no qual ele não dispunha de mecanismos jurídicos, para além do simplista direito de visitas, capazes de garantir-lhe o pleno exercício da paternidade e convivência com o filho.
De outra banda, os mesmos que defendem a liberdade para a dissolução do vínculo matrimonial querem impor vínculo onde as partes não desejaram expressamente, declarando uniões estáveis despidas de qualquer formalização por seus atores, resolvendo, o Estado, contra a vontade de um dos envolvidos, que tipo de relacionamento ele viveu, agredindo frontalmente sua liberdade.
E toda esta interferência se faz em nome, por causa e em defesa do afeto, algo extremamente íntimo, personalíssimo, subjetivo, que tentam interpretar e dele extrair efeitos jurídicos.
Aliás, o afeto foi mesmo elevado à categoria de princípio, através do princípio da afetividade.
Que direito é este de invadir minha esfera mais privada e dizer se meu relacionamento era tão significativo assim a ponto de equipará-lo ao casamento se eu não quis casar, se eu não desejei viver união estável, não pactuei este relacionamento com ninguém?! O Estado não pode mensurar e classificar meu afeto e minhas relações afetivas.
A interferência estatal no campo do afeto é enorme e descabida, capaz de produzir grandes problemas.
A própria e malsinada atribuição da paternidade que se generalizou no país ante a simples recusa ao exame de DNA pelo suposto pai é um sério exemplo do que me refiro. Banalizou-se a recusa a tal ponto de diante dela e apenas dela, independentemente de um contexto probatório testemunhal e documental razoavelmente sólido no sentido da paternidade (prova de uma relação estável ou eventual da mãe com o pai, por exemplo), se impor um vínculo tão importante.
Há um célebre caso em Minas Gerais, de um sujeito, que tendo tido uma relação sexual com uma profissional do sexo, mediante paga, aliado a recusa a se submeter a um exame de DNA, foi declarado pai do filho da tal profissional do sexo.
Verdade que a situação poderia ser resolvida pela simples realização do exame. Mas ninguém pode ser obrigado a fazê-lo. E nem por isso, em casos como estes, aquele que se recusa pode ser punido com a declaração de paternidade. Aliás, neste caso a punição atinge tanto ao reconhecido como aquele que reconheceu, pois se impõe uma relação tão importante onde não há base alguma para ela.
É mais ou menos como instalar o Estado de Israel na Palestina! Precisamos entender e acima de tudo admitir que não há solução ideal para tudo. Alguns filhos ficarão sem ter sua paternidade reconhecida até a morte do suposto pai, quando uma exumação será possível. E nem por isso devemos impor a paternidade baseada em presunção assim tão frágil. Alguns sofrimentos são inevitáveis. E não se pode para resolvê-los criar outros ainda mais graves.
No âmbito das relações entre adultos, é absurda a insegurança, a dificuldade que se tem hodiernamente de demonstrar afeto por outrem por período mais ou menos prolongado.
Se demonstro afeto público por uma mulher ou um homem por algum tempo posso ser enquadrado em uma relação estável com efeitos jurídicos tão importantes quanto o casamento, regida, do ponto de vista patrimonial, pelo regime da comunhão parcial de bens.
Divorcio-me quando quero e sem ser obrigado a declarar qualquer motivação, sem que o Estado interfira em minhas razões, mas não tenho liberdade para decidir se quero e quando quero viver um relacionamento estável com alguém porque aí o Estado aparece para dizer que espécie de relacionamento era o meu.
Curioso né?!
Se o afeto é demonstrado por uma criança, filha da pessoa com quem me relaciono, posso correr o risco de ver configurada uma filiação sócio- afetiva. Também pode ocorrer que se termino com a genitora ou genitor da criança e, cessando a convivência, “paro de dar afeto a ela”, esteja cometendo abandono afetivo. Posso ainda ser chamado a pagar alimentos se durante o relacionamento contribuía, graciosamente, com o sustento da criança.
Por outro prisma, se o convivente/marido da mãe do meu filho for afetuoso com o meu filho que esteja sob a guarda dela, corro o risco de, amanhã, ver este sujeito pleiteando a guarda do meu filho, o direito de visita ou convivência ou quiçá a paternidade afetiva da criança. Daqui a pouco terei que dividir minha paternidade, mesmo sendo um pai presente na vida do meu filho.
Não seria tão mais simples dizer a uma criança que o padrasto não é o seu pai. É um amigo, alguém que gosta dela, mas não é o pai! Porque temos esta tendência a brincar de Deus através do direito?! De criar relações de laboratório. É muita insegurança jurídica e psíquica. É muita falta de realidade!
Exagero?!
Não sei, estamos caminhando para isto nesta “superfetação” do afeto, para criar relações falsas, de laboratório, que de tão sérias não deveriam ser cogitadas e muito menos ainda ser impostas as pessoas, por obra do Estado. Já se fala em paternidade socioafetiva, sucessão socioafetiva, guarda, alimentos socioafetivos e etc.
É mais ou menos como inventar para a criança cujo pai morreu ou abandonou a família que ele foi viajar! Ou querer processar o Vaticano porque o pai de uma criança morreu.
E a amizade, que efeitos jurídicos revela? O afeto pode implicar no direito de um amigo ter que sustentar o outro? Por que não? Qual o fator de distinção com os demais casos de paternidade afetiva, de união afetiva. Parece que quando queremos pode, quando não queremos não pode, sem motivação lógica alguma.
Até bem pouco tempo atrás pai era pai, padrasto era padrasto, enfim cada coisa era uma coisa, agora tudo se misturou e se confundiu, então pergunto, seria absurdo sustentar que diante de uma longa amizade poderia haver alimentos, partilha de bens ou direito sucessório?
Entre a herança ir para o Estado ou para o melhor amigo, o ideal seria o melhor amigo! Aí alguém vai dizer, com razão, mas porque não deixou testamento? Sim, porque, porque não queria que o amigo fosse seu herdeiro, mas apenas amigo. Então porque no caso de um relacionamento de cunho sexual longo onde não houve formalização de casamento nem de união estável queremos impor uma união com efeitos sucessórios, alimentares, patrimoniais e etc.? Porque neste caso queremos então pode, no outro não queremos então não pode.
É preciso extrema cautela, muito mais do que temos tido até aqui para tratar destes temas tão importantes, porque a cada concessão aqui se abre outra ali. O direito é um sistema que se completa. Não existem compartimentos estanques.
Se podem dois homens ou duas mulheres se casar entre si, pode um homem com duas mulheres ou duas mulheres com um homem e assim por diante, então também pode um pai se casar com uma filha, um irmão com uma irmã? Não, porque? Alguém dirá que eticamente é inaceitável? Pode ser? Mas a união entre um homem e outro homem também não era inaceitável por este mesmo prisma até pouquíssimo tempo atrás? Qual o fator de discriminação? Porque um pode e o outro não? Religião?
Precisamos refletir mais sobre o tema, para não criarmos uma situação de insegurança sem precedentes, um vale tudo jurídico que sabe-se-lá aonde vai nos levar.
Amizade é afeto, simpatia é afeto, paixão é afeto, amor é afeto, afeto é sentimento de inclinação por alguém, então porque amizade não pode dar ensanchas a direito alimentar, sucessório, patrimonial e etc?!
Qual é o limite da juridicização do afeto?!
Um homem maduro e com profissão se relaciona com uma mulher igualmente madura e com profissão. Relacionam-se por anos. Moram juntos, fazem sexo, viajam, passeiam, dividem as despesas da casa, numa espécie de condomínio, mas cada qual tem seu trabalho e suas economias, não há esforço comum para a aquisição de patrimônio, não formalizam nem união nem casamento.
Dissolve-se esse relacionamento pela morte de um deles, que não deixou testamento instituindo o outro herdeiro e vem o Estado e resolve, sem perguntar para o morto, que não quis casar, não quis pactuar união, não quis deixar herança, que ali houve uma união estável e impõe todos estes efeitos jurídicos, tudo porque não seria justa outra solução. Por que não seria justa se eles nunca se preocuparam com esta solução em vida?!
De outro lado, uma irmã solteira passa a viver na casa da irmã mais velha casada com um militar, por exemplo, ajuda a cuidar de todos os filhos da irmã e do marido. Não há qualquer relação entre ela e o marido da irmã, apenas afeição pela irmã e pela família dela. Abdica de sua vida pessoal e profissional para ajudar a irmã e o marido a criar os filhos. Vive sustentada pelo cunhado militar e/ou pela irmã, que é professora da rede pública. Os filhos crescem, casam e saem de casa. O cunhado morre e a irmã mais nova segue vivendo com a mais velha.
Agora ela cuida da mais velha e os filhos acham ótimo porque a titia cuida melhor da mamãe do que empregados ou asilos, vivem da aposentadoria da mais velha e da pensão deixada pelo militar morto. A casa onde vivem é da irmã e metade já é dos filhos pela herança do pai morto. Assim também o restante do patrimônio familiar.
Pois bem, morre a irmã mais velha, que direito tem a mais nova? Nenhum. Tem que sair da casa onde mora, não tem direito a pensão por morte da irmã ou do cunhado. Não tem direito sucessório. Por que ninguém diz que haveria ali uma entidade familiar complexa e esta sobrevivente teria direitos hereditários, pensão e usufruto vidual e etc.
Porque não houve contrato escrito de união poliafetiva ou casamento poliafetivo?! Porque não se deixou testamento; dois pesos duas medidas.
Assim, é preciso cautela, muita cautela, ao se examinar as relações interpessoais e familiares, para não banalizarmos o afeto em alguns casos e ignorarmos em outros.
As pessoas têm que ser livres para constituir família, também tem que se igualmente livres para desconstituir esta mesma família e, também, para não constituir família.
Se não há mais um único modelo de família, de outra banda não se pode impor qualquer um dos múltiplos modelos imaginários sem que eu tenha desejado expressamente vivenciá-lo e, pior, sair por ainda judicializando afeto.
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