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A violência doméstica e seus aspectos psicológicos
(texto produzido a partir de material colhido no Congresso “Diálogos Interdisciplinares”, da Escola Superior da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul)
Mônica Barros Reis, advogada, Vice-Presidente do Instituto dos Advogados do MS, Presidente da Comissão de Violência Contra a Mulher do IBDFAM/MS.
1. Introdução:
A violência doméstica e familiar contra a mulher – ou violência de gênero - é uma chaga que aflige grande parte das mulheres no Brasil e no mundo.
É o fenômeno mais democrático que existe: não faz distinções de classe econômica, idade, raça ou cultura.
E, na maior parte das vezes, essa violência ocorre no seio familiar, local onde deveriam imperar o respeito e o afeto mútuos.
No Brasil, a cada 15 segundos uma mulher é agredida.
Para enfrentar esse problema, editou-se a Lei nº. 11.340/2006, denominada popularmente ”Lei Maria da Penha”, que criou mecanismos efetivos para punir os agressores.
Estão ali elencadas as várias formas de violência doméstica e familiar perpetradas contra a mulher: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Mato Grosso do Sul é o sétimo Estado brasileiro em morte de mulheres por violência doméstica, a maior parte cometida com requintes de crueldade.
A todo momento, somos surpreendidos com a divulgação de novos casos pela mídia, envolvendo, inclusive, jovens em fase de namoro.
Com índices tão alarmantes, necessário fazer uma reflexão sobre as causas dessa violência epidêmica, que tem raízes culturais e passa pelos papéis tradicionalmente reservados aos homens e mulheres em nossa sociedade.
2. Processo de Construção da Vítima:
De onde surge a violência?
A forma como meninos e meninas são socializados pode desencadear a violência, pois, ao se depararem com padrões que “fogem” daqueles estabelecidos na sociedade em que vivem, podem reagir com intolerância e violência por vezes incontroláveis.
É bom lembrar que o “aprendido” nos deixa na zona de conforto.
Às vezes, é preciso desaprender o aprendido para apreender o mundo e nós mesmos.
É preciso deixar de pensar com base em padrões machistas que nos foram incutidos desde o nascimento para construir relações de afeto verdadeiramente horizontais, onde imperem o respeito e a igualdade material.
Até poucos anos atrás, homens e mulheres tinham papéis estratificados em nossa sociedade, com diferenças culturalmente construídas e apresentadas como justificativa das relações desiguais.
O homem era o marido-provedor e a mulher a esposa-mãe, submissa e dedicada ao lar.
Era comum ouvir as avós falando às mais jovens: “Como é que vai se casar se nem sabe bater um bolo?”
Por mais que tenhamos presenciado enormes avanços sociais, cuidar da casa e dos filhos ainda é papel essencialmente feminino, reservado às mães, tias, avós.
São as mulheres as “cuidadoras” da família.
E muitas vezes vítimas da violência doméstica ainda na fase do namoro.
Isso porque os meninos que foram socializados em um ambiente machista vão reproduzir esse comportamento controlador e possessivo na fase adulta, em seus relacionamentos amorosos.
Por sua vez, as meninas que foram socializadas de forma submissa também vão se posicionar dessa forma no namoro.
Dirão eles às namoradas: “Mude essa roupa, porque está muito curta! Não corte o cabelo, porque não gosto! Não quero ver você conversando com aquela amiga, porque ela não é boa companhia pra você!”
Quando jovens e imaturas, as mulheres geralmente se encantam com o ciúme excessivo dos seus namorados, achando que é pura demonstração de amor. “- Ele faz isso porque me ama, porque quer cuidar de mim!”
Não conseguem enxergar que o ciúme exagerado muitas vezes disfarça uma noção de “propriedade”, uma visão distorcida de que o corpo do outro lhe pertence, e, como mero objeto que é, deve satisfazer as suas vontades.
É comum encontrar entre as mulheres agredidas a ideia de que buscavam figuras masculinas com perfil “protetor”, e que afinal se depararam com homens “controladores” e “agressores”.
Ouvidos os agressores envolvidos em relações conjugais violentas, é no contrato conjugal que buscam o sentido dos seus atos violentos, considerados por eles como atos “corretivos”.
Alegam que as mulheres não obedeceram ou não fizeram o que deviam ter feito no cuidado com os filhos ou em razão de serem casadas ou “amigadas”.
A violência é sempre narrada como um “ato disciplinar”.
Como a sua função masculina na relação do casal é a de “disciplinar”, eles podem e devem usar a força física contra as mulheres.
As famílias, em geral, adotam posições arcaicas e preconceituosas com relação aos papéis masculino e feminino na sociedade, ajudando a manter a ideologia sexista que serve de base ao preconceito e à discriminação de gênero.
Em uma mesma situação, o homem é considerado “pegador” e a mulher “fácil”.
Há muitas músicas, inclusive, que retratam esse viés machista tão presente em nossa sociedade.
Se a jovem estiver presa a um relacionamento doentio como esse, e chegar a trair o parceiro, estará sujeita a reações por vezes incontroláveis, pois o rapaz se sente “proprietário” dessa moça, tendo o direito de “discipliná-la”, caso não siga suas ordens ou não se comporte da forma como ele deseja.
A toda hora vivenciamos casos de jovens espancadas pelos namorados, sob a fútil alegação de que foram traídos – como se isso justificasse qualquer tipo de agressão à parceira, seja física ou psicológica.
A independência da mulher pode parecer elemento de atração para alguns homens, porém para outros ainda é símbolo de ameaça e quebra de controle.
Homens assim têm enorme dificuldade em lidar bem com o sucesso da companheira, porque ela passa a ter opinião própria e a discutir com eles em condições de igualdade.
O preocupante é que o agressor geralmente acusa a vítima de ser a responsável pela agressão, de tê-lo “provocado”.
E a mulher sente culpa e vergonha após ser agredida.
De fato, um padrão logo se estabelece após o ato de violência: o homem promete que nunca mais vai repeti-lo, criando um período de relativa calma, chamado pelos especialistas de “lua-de-mel”.
3. Ciclo da Violência Doméstica:
O ciclo da violência doméstica se compõe de 3 (três) fases:
1a. Fase: Evolução da Tensão – agressões verbais e psicológicas, crises de ciúme, ameaças, destruição de objetos, xingamentos, críticas constantes, humilhação psicológica e pequenos incidentes de agressão física;
2a. Fase: Explosão – incidente de agressão com danos físicos mais sérios, violência aguda acompanhada por severa agressão verbal;
3a. Fase – Lua de Mel – comportamento gentil e amoroso do agressor, desculpas e promessas de mudanças.
Com o tempo, a distância entre os ciclos vai diminuindo e as agressões vão se intensificando.
Em média, a mulher agredida leva 10 anos para conseguir quebrar esse ciclo pérfido.
Isso porque os períodos de calma são sedutores. O agressor se mostra arrependido e amoroso e faz a mulher acreditar que “tudo vai dar certo”.
Quando essa ilusão se desfaz, o medo ou a dependência econômica a mantêm ao lado do parceiro violento.
Ela pensa: “– Para onde vou? Como vou me sustentar? Onde estiver, ele vai me encontrar, vai me ferir e aos meus filhos!”
5. A Culpa não é da Mulher:
As mulheres agredidas muitas vezes sentem que “a sociedade as quer caladas”.
O medo imobiliza a mulher e ela não se sente segura para procurar ajuda.
A maior parte delas disfarça os hematomas com roupas e maquiagem e segue a vida escondendo a sua condição de vítima.
Já aquelas que tomam a iniciativa de fazer a denúncia sentem na pele a fragilidade e o machismo de nossas instituições, que historicamente encaram a violência doméstica como “crimes de bagatela”.
O homem bate porque é um método efetivo para manter o controle sobre a companheira e porque, normalmente, não sofre as consequências adversas do seu comportamento.
Por isso, quando uma delas finalmente se encoraja a denunciar o agressor, o sistema deveria acolhê-la e atendê-la efetivamente.
Delegados, juízes, promotores, advogados, todos os envolvidos no sistema, enfim, deveriam humanizar o olhar social sobre essa mulher e sobre essa violência, que é epidêmica em nosso país.
Pois o grito da vítima já é tardio, vem sufocado pela opressão da própria sociedade.
Mas, infelizmente, procurar a polícia, o juiz ou outros meios afins raramente assegura a proteção da vítima.
Por falta de capacitação e sensibilidade dos operadores do Direito, muitas vítimas de violência não encontram no Judiciário o apoio necessário para enfrentar os seus problemas e ter os seus agressores efetivamente punidos.
Importante combater o mito de que “mulher apanha porque gosta ou porque provoca”.
Na verdade, quem vive em situação de violência gasta a maior parte do seu tempo tentando evitá-la, protegendo-se e aos seus filhos.
As mulheres ficam ao lado dos seus agressores para preservar a relação e não a violência.
Na maior parte dos casos, o que existe é mulher machucada demais para reagir, com medo demais para acusar e pobre demais para ir embora.
6. Novo Olhar:
A violência doméstica é um problema de todos nós, pois afeta não só as relações privadas, mas também tem um impacto poderoso sobre a saúde, a economia e a segurança públicas.
Enquanto permanecermos omissos diante da violência doméstica, por achar que “roupa suja se lava em casa”, os cofres governamentais continuarão sendo onerados com aposentadorias precoces, licenças médicas, consultas e internações.
Para coibir essa chaga, é necessário um amplo processo educativo voltado à infância, para que as relações entre homens e mulheres sejam construídas desde muito cedo, sem componentes de agressão para obtenção e manutenção do poder.
Os homens não nascem violentos, eles se tornam violentos por uma construção cultural, assim como também o papel da mulher é aprendido pela sua inserção na cultura.
Precisamos de um novo olhar para as relações entre homens e mulheres, com uma ampla quebra de paradigmas.
O exemplo tem que ser para “fora de casa” e para “dentro de casa”.
Se houver tarefas a desempenhar no ambiente doméstico, filhos e filhas devem partilhá-las igualmente.
Intrigante que sejam as próprias mulheres a perpetuar o comportamento machista em nossa sociedade, na medida em que, desde a infância, poupam os meninos das tarefas domésticas, sobrecarregando as meninas.
Precisamos urgentemente desconstruir o antigo modelo de dominação feminina, o mito de que as mulheres sofrem violência doméstica porque “provocam”, e evoluir para relações mais equilibradas e igualitárias entre os sexos.
Caso contrário, nossa Constituição Federal, que prega a igualdade material entre os gêneros, não passará de uma mera folha de papel.
Diante de tais fatos, fica a pergunta: “E se fosse com você? Ou com sua filha, sua irmã, sua mãe??”
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