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A contratualização do direito de família
Flávio Tartuce.
Doutor em Direito Civil pela USP.
Professor do programa de mestrado e doutorado da FADISP.
Professor do curso de graduação e coordenador dos cursos de pós-graduação da EPD.
Professor da Rede LFG.
Advogado e consultor jurídico.
Autor da Editora GEN.
Seria viável a contratualização do Direito de Família? Essa dúvida surgiu recentemente, quando participei da XV Conferência Mundial da International Society of Family Law, realizada em Recife, entre os dias 6 a 9 de agosto de 2014, coordenada pela Professora Doutora e psicanalista Giselle Groeninga. Tenho afirmado que esse foi o mais profundo e instigante evento do qual participei na área jurídica, nos últimos anos. A conferência demonstrou que os principais debates que temos no Brasil sobre o Direito de Família se repetem em todos os Países participantes.
A evidenciar o nível dos debates, a Contratualização do Direito de Família foi objeto de um painel do qual participaram os professores Frederik Swennen e Elisabeth Alofs, da Universidade de Antuérpia, Bélgica. O primeiro defendia a premissa da contratualização e a segunda a descontratualização. Raramente vemos juristas brasileiros fazendo tal contraponto em um mesmo painel. E quando a organização do evento tem a coragem de montar debates como esse, os nervos e as paixões se inflamam. Fica a reflexão se não seria interessante mudar o perfil já superado dos eventos jurídicos realizados no Brasil. A nossa comunidade e a sociedade agradeceriam a diminuição da paixão e o aumento da técnica.
Pois bem, várias foram as questões apresentadas no painel, sempre com um contraponto do outro professor. De início destaco o desenho apresentado pelo Professor Swennen, no sentido de ser a autonomia privada, a liberdade individual, um pêndulo. Expôs o jurista que existe um maior peso sobre o pêndulo da autonomia privada nas relações de família, em comparação ao que em regra se verifica nas relações contratuais. De fato, o Direito de Família convive com uma maior quantidade de normas de ordem pública, apesar de uma tendência intervencionista percebida nos contratos.
A Professora Alofs apresentou objeção, contestando a incidência da autonomia privada nas relações familiares, diante das diferenças econômicas existentes entre homens e mulheres, conforme dados empíricos e estatísticos que apresentou. Expôs, sucessivamente, a viabilidade de uma divisão patrimonial diferenciada para tutelar a parte mais fraca, afirmando que “a igualdade nem sempre é a justiça”. E acrescentou que caso seja reconhecida a contratualização do Direito de Família seria necessário utilizar parâmetros de proteção que existem nos contratos de consumo ou de trabalho, com vistas a tutelar os vulneráveis da relação, especialmente as mulheres.
Esse último aspecto também surgiu em outros painéis do evento e tem me gerado reflexões. Não seria possível mitigar o que foi convencionado entre os cônjuges quando da escolha do regime de bens, com uma divisão diferenciada de acordo com as diferenças fáticas existentes? Mais do que isso, essa divisão diferenciada não teria o condão de substituir os alimentos em suas funções?
Outro assunto debatido, conforme exposição do Professor Swennen, diz respeito à possibilidade de aplicação da cláusula rebus sic stantibus, de alteração das circunstâncias, para o regime de bens. A título de exemplo, alterando-se os fatos por algo que não foi previsto inicialmente pelos consortes, seria possível mitigar a convenção, premissa que há muito tempo incide para os contratos.
A propósito, polêmico julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo acabou por trazer a lume toda essa temática, concretizando a contratualização do Direito de Família. Trata-se do acórdão relativo ao Agravo de Instrumento n. 569.461.4/8, Acórdão 2706323, da 4ª Câmara de Direito Privado da Corte Bandeirante, tendo sido Relator o Desembargador Francisco Eduardo Loureiro (10 de julho de 2008). O aresto manteve a antecipação de tutela que suspendeu os efeitos do pacto antenupcial firmado entre as partes. Consta da ementa que o pacto, “como qualquer negócio jurídico, está sujeito a requisitos de validade e deve ser iluminado e controlado pelos princípios da boa-fé objetiva e da função social. Não se alega coação e nem vício de consentimento, mas nulidade por violação a princípios cogentes que regem os contratos. Pressupõe o regime da comunhão universal de bens a comunhão de vidas, a justificar a construção de patrimônio comum, afora as exceções legais. O litígio entre o casal, que desbordou para os autos do inventário da genitora da autora, e a significativa mutação patrimonial fundada em casamento de curtíssima duração, autorizam a suspensão dos efeitos do pacto antenupcial. Não há como nesta sede acatar os argumentos do recorrente acerca de violação a direito adquirido, ou a exercício regular de direito, pois o que por ora se discute é a validade do negócio nupcial, e sua aptidão a gerar efeitos patrimoniais”.
Como se nota, pelo trecho transcrito, o pacto antenupcial foi mitigado diante dos princípios de ordem pública da função social do contrato e da boa-fé objetiva, em uma tendência que se nota no campo dos contratos, transposta para instituto familiar. Acertaram os julgadores? Penso que sim. Todavia, o tema é polêmico, devendo ser refletido e debatido pela comunidade jurídica nacional.
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