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Violência patrimonial contra a mulher
Mário Luiz Delgado
Doutor em Direito Civil (USP). Mestre em Direito das Relações Sociais (PUC) . Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Advogado.
A Lei Maria da Penha é sempre festejada pelo grande avanço que representou na luta contra a impunidade em relação aos delitos de violência física contra a mulher, quando praticados por cônjuge ou companheiro.
Essa é a sua face mais visível, ou seja, a violência física sofrida pela mulher, abrangente de qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal.
Entretanto, a própria lei tipifica outras formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, além da violência física, as quais, apesar de muito freqüentes, são pouco invocadas como instrumentos de proteção à mulher agredida.
Nas demandas em curso nas varas de família, especialmente nos processos de divórcio com partilha de bens e de alimentos, são abundantes os crimes praticados contra o cônjuge virago e que passam despercebidos pelos advogados não militantes na advocacia criminal. Entre os tipos penais previstos na Lei Maria da Penha, um dos mais ocorrentes nas varas de família é a violência patrimonial contra a mulher.
O legislador entende por violência patrimonial qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
Na advocacia de família estamos habituados a identificar a violência patrimonial com a destruição de bens materiais e objetos pessoais, ou com a sua retenção indevida, nos casos de separação de fato, no afã de coagir a mulher a retomar ou a manter-se na convivência conjugal. Todavia, a violência patrimonial não se limita a tais condutas.
Até a partilha dos bens, é corriqueiro que o cônjuge na posse dos bens amealhados durante o casamento pelo esforço comum e, por isso mesmo, reconhecidamente bens comuns partilháveis, sonegue ao meeiro a sua parte dos frutos, recebendo sozinho aquilo que seria destinado a ambos. A conduta do marido, recebedor da integralidade dos alugueres de imóvel pertencente a ambos os cônjuges, por exemplo, equivale à retenção ou apropriação de bens ou recursos econômicos, exatamente como previsto na Lei n. 11.340/2006.
Outra conduta que pode caracterizar o tipo penal de violência patrimonial, mediante a retenção de recursos econômicos, consiste em furtar-se ao pagamento de pensão alimentícia arbitrada em benefício da mulher, especialmente por se tratar de valor destinado a satisfazer necessidades vitais. O cônjuge alimentante que, mesmo dispondo de recursos econômicos, adota subterfúgios para não pagar ou para retardar o pagamento de verba alimentar está, em outras palavras, retendo ou se apropriando de valores que pertencem à mulher, com o agravante de tais recursos destinarem-se à própria sobrevivência daquele cônjuge.
Caberia à mulher, ou mesmo ao Juiz, sempre que verificar a prática de apropriação ou retenção de bens ou valores pelo marido ou companheiro, comunicar ao Ministério Público, nos termos do art. 40 do CPP[1], c/c os artigos 16[2] e 25[3] da Lei nº 11.340/2006 para a instauração da competente ação penal. A violação patrimonial tipificada na Lei Maria da Penha tem a mesma natureza dos demais crimes contra o patrimônio previstos no Código Penal e assim deve ser tratada.
Além das conseqüências penais, a lei também prevê medidas protetivas ao patrimônio da mulher, tanto no tocante à proteção da meação dos bens da sociedade conjugal como dos bens particulares, e que poderão ser adotadas em caráter liminar pelo juiz, tais como: I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Esse elenco de medidas, previsto no art. 24 da Lei Maria da Penha, não é exaustivo, podendo o juiz determinar outras medidas inominadas de proteção patrimonial da mulher. Cada situação concreta haverá de ditar qual a mais apropriada e poderá exigir, inclusive, uma decisão construtiva do magistrado.
Sabemos que uma aplicação mais rigorosa e abrangente da Lei Maria da Penha, visando à proteção patrimonial da mulher, enfrentará resistências. Mas haveremos de vencê-las.
As modificações no âmbito de abrangência das disposições normativas não advêm apenas das modificações legislativas, mas também dos diversos processos de interpretação. O sistema jurídico está sempre em mutação. Muda na mesma proporção em que são alterados os valores que regem a sociedade. Quando os valores da sociedade mudam, o direito é alterado. E essa alteração se opera muitas vezes não por obra do legislador, mas do hermeneuta. Lembra Carlos Maximiliano, ícone da hermenêutica tradicional, que o intérprete, “mostrando sempre o puro interesse de cumprir as disposições escritas, muda-lhes insensivelmente a essência, às vezes até malgrado seu, isto é, sem o desejar; e assim exerce, em certa medida, função criadora: comunica espírito novo à lei...”.[4]
O direito atua como um organismo vivo, concebido à imagem e semelhança da sociedade que o produziu. E esse sistema vivo é diuturnamente construído e reconstruído por seus exegetas. Uma mesma norma jurídica pode ser interpretada de uma forma ou de outra, de acordo com os valores vigentes numa dada sociedade.
[1] Art. 40. Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia.
[2] Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
[3] Art. 25. O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher.
[4] Hermenêutica e aplicação do direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 278.
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