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Coisa de Criança?
Creio que uma sociedade plural deve saber conviver com a diversidade de opiniões. Como se depreende do pensamento de Norberto Bobbio, as construções sociais humanas são históricas e, portanto, obedecem às configurações sociais, políticas e econômicas de cada momento cronológico. Isso vale para as leis.
Crianças e adolescentes nem sempre foram tratadas como sujeitos de direito como o são na atualidade – em boa parte dos países. Igualmente no Brasil essa realidade é relativamente recente – não conta sequer com um quarto de século.
Considero que nada melhor para se tomar uma posição do que conhecer os fatos e circunstâncias que envolvem a demanda em questão. Nesse sentido a imprensa e as lideranças sociais ocupam um importante papel – notadamente se agirem com lisura. Falsear a realidade é temerário, pois, no mínimo desacredita aquele veículo de comunicação, ao respectivo comunicador e às lideranças sociais; notadamente as políticas.
Posso admitir que um profissional de imprensa, por desinformação ou até ideologia, defenda determinadas teses como justas – embora essa “justeza” seja questionável. Entretanto não posso tratar com a mesma generosidade as lideranças sociais; em especial aos políticos – destes, como agentes públicos, se exige muito mais transparência.
Sabemos que as matérias legislativas têm órbitas especificas de produção. Por exemplo, as afetas à família, ao mundo do trabalho, à infância e ao sistema penal são da órbita do Congresso Nacional. Não é segredo também que os Deputados Federais e Senadores contam com um competente corpo de assessores – formados por servidores públicos federais da carreira das duas casas legislativas e outros escolhidos pelos parlamentares.
Onde quero chegar? Num ponto: é impossível que um parlamentar federal não tenha acesso a informação de que, durante o Império e início da República (Códigos Criminais de 1830 e 1890), a maioridade penal no Brasil era inferior a 13 anos. Então, por que propor uma volta à Monarquia e à Republica Velha?
Num concerto internacional, os documentos da ONU tratam como “crianças” todos os menores de 18 anos – nos seria inconcebível agir de forma semelhante. Ora, o Brasil é herdeiro recente – pouco mais de um século – da escravidão. Doutra sorte, somente a partir dos anos 1960 as mulheres casadas em nosso país tiveram direito de dispor sobre o fruto do seu trabalho e somente no final do século XX (1988) os filhos – de qualquer espécie – passaram a ser considerados iguais perante a lei. Não dava para chamarmos de crianças todos os menores de idade.
Há de se observar que apesar da sua juventude política (pouco mais de 500 anos) o Brasil se porta como uma potência em ascensão. Sendo assim, é inexplicável somente termos adotado a Teoria (para muitos, doutrina) da Proteção Integral – defendida pela ONU desde 1959 – a partir da Constituição de 1988; quando o poderíamos ter feito desde 1979 (via Código de Menores).
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) vem sendo vendido à opinião pública por parte da mídia e dos políticos como o responsável pela maioria dos problemas de segurança vividos na nossa sociedade. Os parlamentares federais se esquecem de dizer é que as linhas gerais do ECA foram esculpidas pela Constituição – aquela que Ulisses Guimarães nos ensinou a chamar de “cidadã”. Esquecem também de informar que o capitulo relativo à família foi votado por ampla maioria dos constituintes (e inclusive contou abaixo com um assinado contendo mais de 1.500.000 subscrições). Também se esquecem de dizer que o ECA já foi alvo de várias modificações – diretas ou indiretas – desde a sua edição (relativas, por exemplo, ao trabalho, ao aprendizado, a adoção, ao cumprimento de medidas socioeducativas, às prerrogativas, funções e funcionamento dos Conselhos Tutelares etc.).
Por tudo o acima afirmado, é desonesto com a população um parlamentar (estadual) comparar o ECA à Bíblia, para dizer que esta Lei não é imutável. É desonesto porque um parlamentar é eleito para representar os cidadãos; não para enganá-los. É desonesto porque se utiliza da religião para estabelecer um sofisma – o de que não sendo sagrado tudo pode ser feito. É desonesto porque omite que mesmo a Bíblia possui várias tradições, traduções, versões e interpretações. É desonesto porque deixa de informar à população das variadas alterações que o ECA já sofreu.
Frei Beto afirmou, nos anos 1980, à revista Teoria e debate, que o Concilio Vaticano II era um grande osso engasgado na garganta romana – querendo dizer que aqueles documentos ao arejar a Igreja Católica romperam com séculos de monopólio do poder na instituição pelo clero. O ECA rompe com a Teoria (doutrina) da Situação Irregular, inaugurando a Teoria da Proteção Integral. O que isso quer dizer? Significa que todas as crianças e adolescentes são sujeitas de direito e não apenas aquelas que têm pais responsáveis e atentos ao seu desenvolvimento sadio. Significa que todos (família, sociedade, comunidade e poder público – art, 4º do ECA) somos simultaneamente responsáveis por essas pessoas em condição particular de desenvolvimento. Assim, é mais fácil transferir a responsabilidade do que ocupar um lugar ativo na resolução dos problemas afetos à infância.
Apenas para uma reflexão final cabe perguntar: a) A quem interessa o rebaixamento da idade penal? Creio que aos que querem mascarar a realidade. b) O rebaixamento da idade penal irá afastar os delinquentes adultos dos adolescentes na prática de crimes? Não, no máximo fará que recrutem crianças e adolescentes mais jovens. c) Quantas visitas a maioria dos parlamentares fazem por ano às unidades de semiliberdade e internação? d) Quantos parlamentares destinam Emendas ao orçamento destinadas à efetivação do ECA e em quais valores? Estas duas últimas questões não me cabem responder, mas aos parlamentares (federais e estaduais).
O assunto está longe de se esgotar com esse curto artigo, porém reflita sobre o fato de que uma alteração na maioridade penal afeta a todas as crianças e adolescentes – seu filho, seu neto, seu sobrinho... Não se esqueça de que qualquer um deles pode: matar alguém (no trânsito, ao cabo de uma discussão, numa brincadeira etc.); praticar um furto; consumir e até vender drogas; e, serão julgados e sentenciados como adultos.
Agora se a questão é endurecer as sanções aparentemente brandas do ECA... Vamos discutir a questão.
Marcos Colares
falecommc@gmail.com
Advogado, Doutor em Educação,
Prof. de Direito da criança e do adolescente
da Faculdade de Direito da UFC
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